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A Mulher por trás do FIM
"Se você quer viver em um mundo que não tem utopia, isso é problema seu. Deus me livre de viver em um mundo que não tem utopia."
Minon Pinho
A frase, que causa um misto de fascínio e intimidação, foi dita pela produtora cultural e sócia-diretora da Casa Redonda Produções Culturais, cujo currículo não caberia nesse espaço, e que há anos luta pela igualdade de gênero no audiovisual brasileiro. Estar diante dela causa o mesmo impacto do ouvir suas palavras.
A utopia a que ela se refere seria a de viver em um mundo em que um Festival como o FIM não fosse necessário.
Um mundo em que a equidade de gênero no audiovisual fosse uma realidade.
Um mundo em que todos entendessem que essa luta das mulheres não é para ser melhor nem pior. A luta é para que todos sejamos iguais.
Segundo dados da Ancine, 17% das produções realizadas em 2016 foram dirigidas por mulheres.
Entre os filmes de longa-metragem voltados às salas de cinema, a participação de diretoras foi ainda menor, apenas 15%.
Se formos levar em consideração a questão racial, os números são ainda mais alarmantes.
Mas quem é essa mulher, que resolveu dar um basta na sub-representatividade e na desigualdade de gêneros no audiovisual?
Mino Pinho é produtora cultural e produtora cinematográfica há mais de 20 anos e ainda dá aula de financiamento à cultura
Atua pelos selos Casa Redonda, Mão Direita e Firmamento. Através desse selos, atua em 3 seguimentos: Artes Visuais, Cinema e Tv (Produzindo Séries, Curtas e Longas de Ficção) e também com plataformas criativas,que operam para fortalecer a cadeia do audiovisual.
Aproveitamos que o festival acabou de entrar em cartaz para bater um papo com ela, A mulher por trás do FIM.
De onde veio a ideia do FIM?
O FIM - Festival Internacional Mulheres no Cinema parte de alguns fatores.
Tem os movimentos intensos que surgiram não apenas em Hollywood, mas também na Europa e em vários outros lugares, que abordam a questão de como as mulheres estão colocadas na indústria cinematográfica.
Que é uma indústria milionária, que é uma indústria com um grande potencial de influenciar o imaginário coletivo de cada pais. Ai quando você começa a olhar a participação da mulher, as questões de equiparação de salário, e as questões da presença feminina atrás das câmeras, na construção das narrativas, nas diversas funções por trás de uma obra de cinema e de tv, os números são assustadores.
No panorama internacional, (não que aqui no Brasil não tenhamos situações semelhantes) há pautas muito claras. Mulheres muito poderosas do audiovisual começaram a se mobilizar em movimentos como o “Me Too”, “Time is up” e isso começou a ocupar festivais e premiações e esse movimento todo mudou e está mudando muito o conjunto de paradigmas que a gente tem não apenas no setor cinematográfico, mas ai é um bom lugar para gerar visibilidade para a situação das mulheres na sociedade.
O Festival Internacional Mulheres no Cinema, ou simplesmente o FIM quer de fato o fim da sub-representatividade das mulheres no audiovisual. Isso é uma questão que tá tomando pautas em agendas públicas, pautas jornalísticas e pautas de mídia no mundo inteiro.
Porque a questão da sub-representatividade e da desigualdade de gênero é uma questão central.
Então a gente quer o fim de várias coisas nessa indústria. Marcar isso através do longa-metragem, mexe nesse lugar de poder. (As mostras competitivas possuem produções exclusivamente dirigidas por mulheres, enquanto as outras mostras permitem direções mistas).
A gente vem ai num reboque de um conjunto de movimentos que estão acontecendo das mulheres no mundo, cujas pautas básicas são:
Quantas mulheres estão dirigindo as narrativas que estão chegando aos expectadores do mundo inteiro num mercado crescente de conteúdo tanto em cinema quanto em séries? Essas histórias estão sendo construídas, dirigidas por mulheres? Qual a situação dessas mulheres no quesito equiparação de salário? Qual a situação das mulheres que atuam na indústria cinematográfica? Há assédio, não há assédio?
Os números são um pouco assustadores quando olhamos para eles.
É um mercado hegemonicamente masculino, e é um mercado milionário.
Então a gente fala aqui sobre dois elementos. O elemento socioeconômico e o elemento dessas múltiplas narrativas, que as mulheres podem falar sobre tudo, mas até que ponto essas mulheres estão representadas na construção dessas narrativas.
Esse seria o único objetivo do Festival?
O objetivo do FIM é, por um lado, chacoalhar essas estruturas de poder do longa metragem no Brasil. (nos dados mais recentes a gente chega no máximo em 20, 21 por cento?)
Esse elementos internacionais, essas políticas no Brasil e essas pautas da sociedade civil, que ai entram o feminismo ativista na internet, o feminismo e seus trançamentos com o cinema, e que não tocam exatamente a questão de que como essas produções vem sido conduzidas pelos homens. É ótimo que tenham homens. Mas é ótimo que tenham mulheres. Ai com isso você consegue, de fato, uma visão plural na forma como a gente é representado em imagens e sons.
Tem uma pauta muito interessante também que diz respeito ao protagonismo feminino em tela. Ano passado, junto com a Ancine, nós trouxemos a sueca Ellen Tejle que desenvolveu o selo de Bechdel, que pergunta:
O filme tem duas ou mais personagens com nomes? Elas conversam entre si? O assunto da conversa é algo que não seja homem ou assuntos relacionados a romances?
Gente, o número de filmes que atende a essas 3 perguntinhas é mínimo.
Isso é uma estratégia de reflexão sobre como essas mulheres aparecerem em tela. E a gente vê ai milhões de estereótipos. Que vão reproduzindo modelos que não tem nada a ver com as mulheres que a gente conhece na vida real.
Então as mulheres são histéricas, estão sendo salvas por homens, ou estão chorando, ou estão berrando…
Essa prática nos faz repensar que tipo de conteúdo estamos levando para o nosso espectador, enquanto produtores audiovisuais e mobilizadores de políticas nesse setor.
O Festival tem ainda outra função incrível: reunir esse conjunto de mulheres, num festival exclusivo (Num melhor dos mundos nem deveria existir um festival exclusivo de mulheres. Todos o espaços em telas, todos os festivais, os conteúdos que você vê no VOID, na televisão, no cinema, na internet, deveriam ser preenchidos com diversidade, com pluralidade de narrativas e de gêneros), reunir todos esse conteúdo e levar para públicos maiores de homens, mulheres, transgêneros, todos os gêneros, todas as pessoas que estivessem interessadas em entender qual é essa produção. Como ela é percentualmente menor diante do número que as mulheres ocupam no Brasil, por exemplo, somos mais da metade da população, a gente estar com menos de 20% dos filmes tem alguma coisa muito mal posta ai.
Então a ideia é promover essa reflexão política mesmo, chacoalhar políticas públicas municipais, estaduais, federais, para onde a gente está encaminhando esse dinheiro, como acontece esse fluxo decisório nas produtoras e nas distribuidoras, e ao mesmo tempo levar par ao público um conjunto de filmes dirigidos por mulheres, identificar quem são essas mulheres, e oferecer a esse público que frequenta cinemas em São Paulo, a possibilidade de ver esse conjunto de mulheres reunidas apresentando seus filmes recentes e extremamente inspiradores.
Poderia falar um pouco sobre as atividades formativas, que acontecem no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc?
Junto com tudo isso, nós temos uma demanda por formação.
As mulheres de ponto de vista universitário, elas se formam em um percentual maior que os homens. E isso não se reflete na construção das narrativas.
Pensando nisso, nós compusemos junto com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc um programa onde a gente traz uma série de masterclasses, cursos e encontros para também descobrir quem são esses novos talentos, as pessoas interessadas em conteúdos ligados a esses elementos das mulheres no audiovisual e também nos elementos técnicos, como distribuição, fotografia, elaboração de documentário…
Enfim, trazer todos esses conteúdos diversos possíveis e trazer monitores de excelência para oferecer esses cursos a preços acessíveis.
Essa primeira edição homenageia Zezé Motta, um dos ícones do cinema nacional. Por que vocês optaram por esse nome?
Cacá Diegues costuma dizer que se o cinema nacional tivesse uma face, seria de Zezé Motta. Ele fez um conjunto de filmes com ela. Ela já foi dirigida por um conjunto de mulheres. Tem uma carreira tanto na área da música quanto na área de atuação absolutamente impressionante. Revirou todas as lógicas do protagonismo feminino em tela, em papéis como Xica da Silva, Dandara dos Palmares, Carolina de Jesus…
Ela sintetiza tudo o que o Festival quer chacoalhar e quer influenciar.
Ter a Zezé Motta como homenageada dessa primeira edição do FIM, na verdade é uma honra.
Isso não acontece por acaso. A gente tem uma situação no Brasil de luta e de interação do feminismo interseccional no cinema. Você não pode olhar só as questões de gênero sem olhar as questões de raça e etnia e as questões de classe.
Essa é uma pauta do feminismo interseccional em várias áreas e não pode ser diferente no cinema.
Será que as demandas das mulheres brancas é a mesma das mulheres negras? Tem essas questões.
A gente tem muitas vezes o estereótipo da mulher negra em tela, colocada ali a serviço de um conjunto de elementos e a Zezé revirou todas essas lógicas e é ativista da questão dos atores negros, da participação dos negros nessa indústria e na sociedade como um todo.
E aqui no FIM a gente quer o fim de determinados números. A gente tem zero por cento de mulheres negras dirigindo filmes nos últimos anos no Brasil. Zero Porcento!
A gente tem o caso da Adélia Sampaio, de 1984 com o longa “Amor Maldito”, e dai em diante a gente cai em um vazio absoluto.
Então se a questão da sub-representação das mulheres no cinema é um problema, a questão das mulheres negras é um super problema. Como a gente está em um festival de longa-metragem, então esse problema fica muito saliente.
As mulheres negras representam 38% da população brasileira. Logo 38% da nossa população não tem voz na indústria cinematográfica. Isso é mais uma coisa que a gente quer mudar. Que a gente quer por um fim.
Para você mudar uma realidade, você precisa iluminá-la. E a vinda da Zezé é para a gente iluminar isso. Tanto o protagonismo atrás das câmeras quanto o protagonismo em tela. São realidades que o conjunto de tomadores de decisão precisam começar a olhar no Brasil. Porque você está deixando de falar comercialmente com 38% da população do Brasil. E se a sua produção não tem mulheres, você não está falando com 50% da população.
Pensar nesse protagonismo atrás da tela, é sim, uma forma de enriquecer o imaginário do cinema nacional mas é também uma forma de entender esse diálogo mercadológico. Segundo dados recentes, a indústria do cinema movimenta cerca de 24.5 bilhões de de reais.
Então, na hora que você não tem essas mulheres atrás das câmeras e não tem esse protagonismo qualificado, você está movimentando esse dinheiro e deixando de fora uma parte imensa da população, que deveria estar incluída economicamente, decisoriamente, e com voz ativa nessas narrativas.
Que venham outras edições do FIM. Ou não. Caso o desejo de Minon e de tantas outras pessoas que trabalham no Audiovisual deixe de ser uma utopia.
Quer saber o que te espera no FIM?
Confira aqui, o FIM e os meios para a representatividade de mulheres no cinema.