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Entre chegadas e partidas...

O jornalista Hermano Henning conta sua memória afetiva com o Interior. Hermano é natural de Guararapes/SP e desde adolescência atua no jornalismo nacional e internacional, sendo um dos profissionais responsáveis pelas coberturas mais importante do mundo nos últimos 20 anos. 

Meu primeiro natal em Londres como correspondente da rede Globo na Europa deixou lembranças bem fortes. Estava baseado em Bonn e fui deslocado para a Inglaterra numas das primeiras missões fora da então Alemanha Ocidental, onde dividia meu trabalho na televisão com a de locutor da rádio Deutsche Welle, que transmitia uma programação especial para o Brasil pelas ondas curtas. Londres era território da repórter Sandra Passarinho. Depois de três anos sem folgas, ela voltaria para o Brasil para um descanso de dois meses. Fui escalado para cobrir as férias de Sandra, pioneira dos correspondentes brasileiros no exterior. Era dezembro de 1977. O dia 25 caiu num domingo, dia do Fantástico. Acordei com a notícia da morte de Charlie Chaplin, o Carlitos, tema de abertura da revista dominical da globo. Reportagem de Hermano Henning, num de seus primeiros trabalhos de fôlego na fria e cinzenta capital inglesa.

Engraçado que a lembrança que tenho daquele fim de ano em Londres não tenha sido ofuscada pelo desafio de falar sobre o desaparecimento de alguém tão marcante na história da humanidade, o nosso Carlitos. Teve algo mais que não consigo esquecer. Aquela semana foi ocupada também por um deslocamento pelo interior do país na companhia de Jader de Oliveira, locutor do serviço brasileiro da BBC e correspondente da revista Veja no Reino Unido. Fomos de trem. E cada uma das cidadezinhas nas cercanias de Londres tinha uma estação igualzinha àquelas da minha região no interior de São Paulo. Elas me lembraram minha terra. O "Baixo da Linha".

Nasci em Guararapes e fui criado na beira da estrada de ferro que unia nossas cidades. Elas, essas cidades, faziam parte do meu mundo: Valparaiso, Rubiácea, a própria Guararapes, Araçatuba, Penápolis, seguindo para Promissão e Lins, passando por Birigui.
As cidades, para nós, eram suas estações de trem. Todas construídas como no interior da Inglaterra e muitas delas em pé até hoje. Mas todas, todas as cidades de nossa vizinhança, viviam em torno de suas praças, a Igreja matriz, o cinema (com o cheiro de pipoca que senti em todas as cidades do mundo onde andei) e, principalmente, a estação de trem. A Noroeste nos unia.
Ver o trem de passageiros chegar e partir era um acontecimento importante. Chegava até a ser um evento social. Era a despedida dos amigos e parentes que partiam e os abraços calorosos nos que chegavam. E os trens de madeira puxados pelas máquinas grandiosas (até os anos cinquenta eram as inesquecíveis Maria Fumaça e depois as americanas movidas a óleo diesel) seguiam para o oeste em direção a Mato Grosso e para o leste até Bauru, o fim da linha pra gente de lá, ou o começo, para os que vinham de São Paulo. Sempre carregando gente e mercadoria.

A região acompanhou o Brasil, mas sempre à distância. A viagem a São Paulo sempre demorava mais de um dia, com baldeação em Bauru, o pernoite no hotel da Estação, o embarque no trem da Paulista ou Sorocabana no dia seguinte. Nossa vizinhança teve seus momentos de vibração e entusiasmo com o café, depois o algodão, o gado... Enfrentou também períodos delicados. Muitas comunidades se esvaziaram. A maioria, na verdade quase todos que viviam nos sítios e fazendas, mudou-se pra cidade e enfrentou tempos difíceis.

Até a industrialização chegar. E com ela o uso em grande escala e racional da terra. Agora é a cana de açúcar. O que virá depois?
Quanto às fábricas, Birigui está aí pra contar a história. A cidade cresceu e, dizem até que um dia desses, emenda com Araçatuba.
Enfim, somos da Noroeste de São Paulo, lembrando sempre da linha do trem. O trem que fez parte da minha vida e dos conterrâneos de minha geração que viveram a infância e adolescência sem tv, se alfabetizou com a cartilha Sodré e nem sonhava com internet e celular. Mas é uma geração que continua aí. Muitos de nós trabalhando e vivendo esses tempos novos. São tempos de entusiasmo como aqueles das lavouras de café. Das sessões do cine Para-todos de Guararapes e do São Francisco de Araçatuba. Esses tempos nos parecem muito vivos. E todos nós da Alta-Noroeste estamos prontos para percorrer esses novos caminhos. Sempre serão novos e bons tempos...