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A Perpetuação da Voz Feminina
“Um projeto como o ‘Damas da Voz’ é inspirador porque devolve a multiplicidade de vozes pra nossa gente. Isso é reconstruir a ideia de nação brasileira. É atualizar a força de nossa linhagem sobrevivente e poderosa. Como uma vigorosa celebração, porque todos os dias algo tentou nos matar e não conseguiu. Nós permanecemos vivas! Vivas como nossas musas, como nossas deusas, como as damas da voz!”. Assim Ellen Oléria define o projeto do Sesc Campo Limpo que apresenta de 12 a 20 de setembro, entre outros, seu show Afrofuturista. Em sua segunda edição, o projeto reúne artistas que trazem toda essa vitalidade em repertórios que resgatam a trajetória de cantoras que marcaram época.
Mulher Brasileira em Primeiro Lugar
As homenagens começam com a voz aveludada de Lilian Jardim, com repertório que promete abraçar o melhor da alma feminina brasileira. Em entrevista para a EOnline, a cantora, compositora e instrumentista, conta que mulheres como Elis Regina, Maria Bethânia, Rita Lee, Elba Ramalho, Cássia Eller e Ana Carolina, de certa forma, a inspiraram a seguir carreira. “Algumas pela força da voz, outras pelas composições, outras pela linguagem que usavam, algumas por identificação mesmo, mas todas tinham em comum a garra e isso é sempre um incentivo”.
A emoção que sente ao interpretar as músicas conduz o espetáculo intitulado Brasileiras. O elo que a liga às canções também contagia quem reconhece sua própria história pelo repertório do show. “São músicas que cresci ouvindo. Acho que isso é o que me encanta: como essas composições continuam vivas, e mais, como elas unem pessoas. Quando estou no palco e vejo as pessoas cantando comigo, não importa etnia, idade, classe social, partido político, isso me faz valorizar a música justamente por ser universal e ter um caráter de igualdade”.
Para a cantora, a presença feminina no meio musical é importante para dar visibilidade à mulher, ou seja, literalmente dar voz para elas. Trazendo nas músicas as suas inquietações colocam-se combativamente, mas sem precisar declarar guerra. “De forma lírica, artística, sem a necessidade de um intermediário, numa época de efervescência na luta pelo nosso espaço no mundo. Sem armas. Só com música. Isso é muito bonito”, conclui.
Ancestralidade Feminina
Ellen Oléria encontra no candomblé, no samba, no maracatu, no forró e na força da cultura hip hop, através da poética do rap, referências para criar seu repertório. Ela conta que feminino e masculino dialogam dentro das tradições que a significam, mas todas as suas músicas têm vínculo com a sonoridade e a produção de outras mulheres, em diferentes áreas artísticas. “Minhas músicas falam de meus encontros. Falam do que nós falamos, compartilhamos umas com as outras. Do que somos e do que podemos ser. Do que podemos construir juntas com saudade, força, beleza, amor e paridade”, explica.
A cantora brasiliense revela que em sua carreira já se deparou com discriminação de gênero. “Essa noção antiga de identidade nacional foi construída com ideais misóginos, sexistas, machistas, racistas, homofóbicos, especistas. Num universo onde os homens, e algumas mulheres, ainda reproduzem a subserviência feminina em relação ao masculino, o cenário musical acaba por atualizar essa vergonha histórica. Muitos homens nesse meio nos tratam como meras ferramentas de seu desejo, seja financeiro, como força de trabalho, ou como simplesmente um espectro invisibilizado”.
Não somente as vozes que marcaram época, mas também as atuais vêm desenhando as pegadas da mulher na história das produções artísticas. Ellen comenta que atualmente o cenário musical tem aberto portas para estas damas contemporâneas. “Há tempos eu não via um ajuntamento tão glorioso. Jovens como Roberta Estrela D'alva, Thalma de Freitas, Xênia França, Flora Matos, Karol Conká, Tássia Reis, Maryana Aidar, Márcia Castro, Fabiana Cozza, Tulipa Ruiz, Alma Thomas. Tantas e tantas! Estão colorindo com suas diferentes vozes e levadas esse nosso cenário atual. Tanto pra dizer em uma vida. Nada necessariamente massivo, mas com a propriedade da força multiplicativa dos acessos”.
A Pimentinha
O final do projeto terá um “tempero” especial com canções consagradas na voz da cantora que, pela sua forte personalidade, ficou muito conhecida pelo apelido Pimentinha: Elis Regina. O show Um Arrastão de Emoções terá no timbre de voz jazzístico de Didi Gomes, um repertório eclético de diversas canções, composições inéditas de autoria de seu pai, o músico e compositor Ayrton Gomes, e de outros autores e divas de grande importância na sua trajetória.
A semelhança entre o timbre de voz das artistas tornou Didi uma das integrantes da equipe de puxadores do samba-enredo da escola de Samba Vai Vai, durante o último carnaval (2015). Quando a escola lançou seu tema do ano “Simplesmente Elis”. Apesar de não considerar sua voz tão parecida com a da pimentinha, a cantora conta que muitos comentam e se emocionam quanto a ouvem. “Não é uma imitação. É um dom mesmo, não sei de onde vem”, conclui.
Desde os seus oito anos de idade Didi canta nos salões dos “Chorões Santista”, agremiação orquestrada nos anos 80 pela sua mãe Maria Madalena (falecida). Acompanhada neste show por Theo Cancello (Piano), Glécio Nascimento (Baixo), Kinho Batera e Jota R (Violão e Bandolin), a cantora do litoral paulista ultrapassa os 30 anos de carreira sem negar a importância de suas influências e origens. “Busco abrir as portas para revelar ao público, de maneira legítima, a minha arte”.
Novos caminhos trilhados
Para as três cantoras, a construção de suas carreiras teve grande influência em trabalhos de mulheres que se consagraram como as Damas da Voz, criando assim suas trajetórias para a perpetuação do espaço feminino em produções artísticas. Ellen Oléria comenta que atualmente temos grande representatividade. “Não somente no meio musical inclusive em relação à interpretação, potência e extensão vocal, suingue, resistência e afrontamento, composição, criatividade”. Ela acredita que todo projeto que implemente a difusão, a circulação, os encontros de produções femininas é importante. “Oportuniza e potencializa a revolução do amor que costuramos todos os dias”.
A partir destas representações encontram a força para seguir seu trabalho. Lilian Jardim ressalta que “Num país de pouca memória, a primeira importância é a de fazer público e artista lembrarem essas cantoras, lembrarem a importância delas como artistas da música e influenciadoras de uma cultura”. E vê em projetos como este espaço para novas produções. “Acredito que o projeto também mostra que o artista contemporâneo sempre pode resignificar sua arte e torná-la acessível ao público de seu tempo se voltar às origens. Não se trata de avançar ou melhorar o que foi feito, e sim pegar o que é muito bom e colocar seu ponto de vista, lançar um olhar que permita uma nova roupagem. Outra coisa importante é a possibilidade de projetar novos nomes, uma grande oportunidade pra cantoras contemporâneas. Projetos como o ‘Damas da Voz’ nos fazem refletir sobre o que é a mulher na música no passado, presente e futuro, e também fazem o público se encantar, se emocionar, e isso vale muito”.
o que: | Damas da Voz |
quando: |
12, 19 e 20 de setembro. Sábados, às 20h30. Domingo, às 18h30. |
onde: |
Sesc Campo Limpo | Rua Nossa Senhora do Bom Conselho, 120 |
ingressos: |
Grátis. |