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Biodiversidade Guarani - agricultura e políticas de luta

Foto: Luiza Calagian – Acervo CTI
Foto: Luiza Calagian – Acervo CTI

Por Comissão Guarani Yvyrupa (CGY)*

Nós, Guarani, embora muitos não indígenas prefiram fingir desconhecer, somos famosos por nossa agricultura. Isso pode ser constatado em documentos já bem antigos, como os escritos do viajante alemão Ulrich Schmidel[1], que registrou a abundância de nosso plantio, da qual os primeiros invasores europeus muito se aproveitaram. Alguns antropólogos e antropólogas, estudando essa história e convivendo conosco, também perceberam isso. Como Egon Schaden que, já em meados do século XX, escreveu que nossa religião seria uma “religião do milho”, tão forte é nossa relação com o plantio dessa cultura[2].

O nhandereko, o modo de viver guarani, é esse conjunto de práticas e saberes que guardamos como um tesouro, assim como nossas sementes tradicionais. Segundo os mais velhos de nosso povo, os xeramoĩ e as xejariy, os diversos tembi’u ete’i, os alimentos verdadeiros, são imagens dos cultivos que as divindades guarani possuem em suas moradas celestes. Alimentar-se deles é uma das condições para termos corpos mais saudáveis, imitando o comportamento das divindades. As muitas variedades de cada um de nossos alimentos tradicionais guarani, como o milho (avaxi), que possui diversas cores e tamanhos, entre eles, os avaxi ovy (azul), pytã (vermelho), ju (amarelo), xiĩ (branco) huũ (preto), para’i (mesclado), parakau (papagaio), ponhy’i (engatinha), relacionam-se também com o próprio modo como as divindades criaram o mundo, fazendo uma espécie a partir da outra, povoando a terra de seres diferentes. É por isso, também, que valorizamos tanto os modos de plantio que conjugam diferentes espécies, que os não indígenas chamam de policultivo, agrofloresta etc. E pela mesma razão, achamos importante possuir uma grande variedade de sementes, para que possamos trocar com nossos parentes.

Há um aspecto central da nossa cultura que também é fundamental para compreender os sentidos que permeiam nossas práticas agrícolas. Trata-se do mborayvu, que poderia ser traduzido como “generosidade”.

Segundo nossas lideranças e os mais velhos, mborayvu é o próprio fundamento da vida comunitária, e deve ser cultivado por todos os Guarani como modo de relação entre as pessoas. A capacidade de compartilhar alimentos, o espaço ao redor do fogo, de juntar-se em mutirões para realizar trabalhos para os demais, de compartilhar ensinamentos por meio de palavras e de ações, e tudo mais que envolve produzir coletivamente um território, é a virtude mais enaltecida entre nós. É a capacidade de ter fartura, em qualidade e quantidade, de variedades da mesma e de outras espécies, para poder compartilhar alimentos e relações entre parentes, a demanda que norteia majoritariamente a agricultura hoje praticada em nossas aldeias, e não a produção para a venda, como ocorre entre os não indígenas. Pois, essa demanda, longe de ser uma curiosidade de nossa cultura para quem nos vê de fora, é o que nos dá base para exercer uma maior autonomia econômica e soberania alimentar. Ou seja, favorece condições para uma diminuição de situações de vulnerabilidade social que por vezes enfrentamos em nossas aldeias, depois de tanta violência e roubo de terras que sofremos nos últimos cinco séculos.

Vimos que, segundo estudos recentes feitos por cientistas não indígenas, as grandes monoculturas e outras práticas privilegiadas pelo agronegócio estão relacionadas com o aparecimento de epidemias. Trata-se de uma questão crucial em nossos tempos e, mais uma vez, nossos saberes e práticas sobre agricultura aparecem como uma possível prevenção a  essa  relação  doente  produzida  pelo  agronegócio e o modo ganancioso da economia não indígena em geral.[3] Muito do que sempre fizemos ao buscar uma vida em equilíbrio nas matas, os jurua, não indígenas, chamam de serviços ecossistêmicos. Esses serviços são os trabalhos que realizamos em diversas frentes e que geram resultados positivos para a sociedade em geral, como a proteção de nascentes e mananciais; as ações de saneamento ecológico; a promoção de turismo de conscientização nas aldeias; a recuperação e o fortalecimento das abelhas nativas, que possibilitam a continuidade dos ciclos na agricultura; a recuperação de solos degradados por meio de plantio agroflorestal; a salvaguarda de variedades de sementes, entre outros.

Assim, possíveis políticas públicas de apoio à agricultura guarani devem ser orientadas tendo em vista esse aspecto[4]. No atual contexto de dispersão e reocupação de nossos territórios, nossas lideranças iniciaram processos de fortalecimento das atividades produtivas, combinando técnicas inovadoras em diferentes plantios para recuperação de solos degradados, buscando incrementar seus roçados com agroflorestas e firmaram importantes parcerias por meio de assistências técnicas, cursos e oficinas de formação, intercâmbios e apoios de infraestrutura.

Tal processo pode ser verificado em ações recentes conduzidas pelas lideranças guarani e relacionadas a projetos de média ou longa duração, como o Programa Aldeias, parceria com a Secretaria Municipal de Cultura do Município de São Paulo. Os Planos de Trabalho anuais são elaborados e conduzidos pelas comunidades, com atenção especial em atividades de fortalecimento do plantio e práticas associadas à agricultura guarani. O Programa Aldeias tem demonstrado, pelo protagonismo guarani em sua condução, poder constituir-se como uma ferramenta de implementação de ações de gestão territorial guarani, possibilitando um fortalecimento ambiental, cultural e político das TIs incidentes no Município, uma forma de reconhecer essas TIs como parte da diversidade cultural paulistana e guardiãs da riqueza ambiental no Município. A garantia da continuidade e ampliação do Programa Aldeias como política pública é objeto do PL 181/2016, que chamamos de Lei do Cinturão Verde Guarani, em fase de aprovação na Câmara Municipal[5].

Estamos lutando pela consolidação dessa política que garanta em lei o fortalecimento de nossas práticas agrícolas e saberes que cuidam do meio ambiente, um patrimônio de toda a cidade. É disso que se trata esse Projeto de Lei do Cinturão Verde Guarani, que estamos defendendo na capital de São Paulo, onde existem hoje duas terras indígenas e 16 aldeias de nosso povo: um projeto para fortalecer a riqueza ambiental e saberes culturais que beneficiam a todos, indígenas e não indígenas.

 


Diversidade de milhos guarani | Acervo CTI

 


Diversidade de feijão | Foto: Luiza Calagian, acervo CTI

 


Foto: Pedro Biava | Acervo CTI

 


Divulgação PL Cinturão Verde | Foto: Luiza Calagian – Acervo CTI

 


Localização das Terras Indígenas Jaraguá (noroeste) e Tenondé Porã no município de São Paulo e municípios vizinhos [6]

 

* A Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) é uma organização indígena que congrega coletivos do povo guarani das regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pelo território.

 

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Referências

[1] SCHMIDEL, Ulrich (1836). Viage al Rio de La Plata y Paraguay. Buenos Aires, Imprenta Del Estado. Disponível em: <www.gutenberg.org/etext/20401>. Acesso em: 11 maio 2016.

[2] SCHADEN, Egon. [1954]1962. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo:

Difusão Européia do Livro.

[3] Ver: WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Elefante, 2020.

[4] Ver: KEESE DOS SANTOS, LUCAS & OLIVEIRA, JOSÉ EDUARDO (orgs). Os agricultores guarani e a atual produção agrícola na terra indígena Tenondé Porã. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), 2020. Disponível em: https://ligueospontos.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/AgriculturaGuarani_14mb.pdf

[5] Ver: CARRANÇA, Thais. 'Alimento para a alma, não só o corpo': a produção agrícola das 80 roças indígenas na maior cidade do Brasil. BBC News Brasil, 2020.  Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55279011

[6] Fonte: KEESE DOS SANTOS, LUCAS & OLIVEIRA, JOSÉ EDUARDO (orgs). Os agricultores guarani e a atual produção agrícola na terra indígena Tenondé Porã. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), 2020. Disponível em: https://trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/2020/12/AgriculturaGuarani_14mb.pdf