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Habitar Palavras: Luís de Oliveira

Fora da rede social

O mesmo criado mudo me observa atentamente na escuridão. Ele vê o meu desespero em busca das palavras, a minha dor entre as despedidas diárias e a falta de inspiração. Falta a palavra viva e livre. É impossível sobreviver no caos sem a arte da palavra, sem curar todas essas feridas abertas em dias dilacerados, esquartejados e jogados na sarjeta do esquecimento. É como estar esquecido em um cômodo qualquer, completamente invisível, esquecido como a última carta de amor na lixeira, entre o bem-me-quer e malmequer de rosas vermelhas, amassadas em um ato de fúria.  

O mesmo quarto veda o meu corpo, as paredes criam mofo, a naftalina exala das roupas e as velas perfumam tudo que cheira abandono e tristeza. Isolamento. Sem qualquer válvula de escape. Sem as máscaras de sorrisos amarelados que usava todos os dias ao sair de casa. Trancafiado dentro da própria solidão, enlouquecendo no silêncio ensurdecedor que diz tanto, que assopra e espanca. Horas, dias e meses. Um suspiro fraco no final do verso solitário e solidário ao último adeus escancarado no vazio. Olhos arregalados, as ratazanas começam a percorrer todos os cantos e buscam pela carne que apodrece no colchão amarelado. Lágrima inflável que queima cada centímetro da saudade, sufoca e arranca o coração da caixa torácica. Tudo exposto, para o último banquete de um sobrevivente que já não ouve o som da rua, a visita chamar no portão e nem o áudio de uma rede social qualquer. Na solidão, só se ouve o pedido de socorro nas entrelinhas do fim. No mesmo criado mudo, o verso individual. Hora do óbito, ninguém percebeu. Ninguém reconheceu. Quando cheirar carniça, os urubus irão sobrevoar.

O último a sair, apaga a luz

Apagam as luzes da última festa. O último sorriso livre virou a esquina, sem saber que seria encarcerado e que os olhares seriam tão importantes, ao ponto de ler a alma, de dizer mais que mil palavras e proteger como um abraço. Hoje as palavras decoram os cômodos vazios da minha casa, ao som de Caetano com Rubel, se reencontrando com as fotografias do último abraço, daquele último toque de afeto. As paredes acumulam o medo, a insegurança, e a esperança olha pela brecha da janela, atenta aos passos lentos dos mascarados na rua. E há de brilhar um novo dia lá fora, em que os olhares se reencontraram entre o sorrir da liberdade e o chorar por tantos que foram. Nunca será cárcere, será afeto. Empatia. Será a maior demonstração de amor pelo outro. Distanciamento. O toque voltou em cartas, em mensagens e em acenos.

E um dia, tudo será lembrança do filho que não foge à luta, sobrevivente. Sobre viver.

Resistir

A pandemia nos faz pensar muito. Se os nossos sonhos se tornaram reféns das grades do isolamento ou se vivem livre na vontade de mudar o nosso bairro, a cidade e o mundo. Passamos noites em claro com pensamentos vorazes diante do silêncio ensurdecedor e das incertezas para o amanhã. Diante do espelho, questionamos tudo. Quem somos? Quem fomos? O que estamos fazendo? O que plantamos de bom para amanhã? Qual o nosso legado a curto e longo prazo? E apesar dos pesares, da ganância dos poderes, dos seres vivos ignorados e dilacerados, do discurso de ódio, somos sobreviventes. A nossa luz não pode ser apagada. Resistiremos e iremos sobreviver mais uma vez. Verás que um filho teu não foge à luta.

 

Sobre o autor

Luís de Oliveira nasceu em 1995, é professor, autor de onze livros e fundador da Editora A Arte da Palavra. Formado em Licenciatura e Bacharel em Educação Física na FISMA - Faculdades Integradas Stella Maris em Andradina - SP. Divide o seu tempo entre a Educação Física Escolar, a Formação de Jovens Escritores e projetos de fomento à leitura no interior de São Paulo. Sua relação com a literatura é a existência. A escrita é o ar da sobrevivência, da (re) existência que ecoa de dentro para fora e assim se eterniza pelo mundo. O leitor enxerga os versos por trás dos seus olhos negros.

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

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