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Mulheres plurais em diálogo e em movimento

Ilustração: Jess Vieira
Ilustração: Jess Vieira

Diferentes mulheres, dialogando sobre as múltiplas formas de ser e existir. Mulheres negras, trans, lésbicas, bissexuais, indígenas, gordas e com deficiência, conversando sobre suas realidades, perspectivas de mundo e os desafios que encontram na vida. Elas: a filósofa, professora e doutoranda em Filosofia Africana Katiúscia Ribeiro (RJ); a maquiadora, consultora e educadora em beleza Magô Tonhon (SP); a assistente social e liderança de coletivo feminista de mulheres com deficiência Fernanda Vicari (RS); a filósofa e educadora indígena Cristine Takuá (SP); a psicóloga Alaine Santana (SP) e a escritora e doutora em Psicologia Social Jaqueline Gomes de Jesus (RJ).

Transmitidos ao vivo no YouTube do Sesc Registro, os encontros online aconteceram no âmbito do projeto “Conversando sobre Diversidade”, iniciativa vinculada ao Programa de Diversidade Cultural do Sesc São Paulo e à área de Gênero e Sexualidade, que busca valorizar diferentes culturas, identidades, manifestações e fomentar à convivência, o respeito, o protagonismo e à aceitação da legitimidade da diferença. A mediação das conversas foi feita por Ariane Carvalho, agente de Educação Ambiental e técnica de referência em Diversidade Cultural do Sesc Registro, e a tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras) realizada pelas intérpretes Sylvia Sato e Rose Santos.

As participantes, ao falarem das inquietações e celebrações que envolvem a pluralidade de mulheres e os movimentos diversos que vão se configurando ao longo da história, trouxeram reflexões sobre universalização, pluriversalidade, ancestralidade, mulherismo africana, interseccionalidade, territorialidade, movimentos feministas, transfeminismo, capacitismo, racismo, transfobia, lesbofobia, feminicídio, luta, resistência, lugares de existência.

Muitas/os pensadoras/es, escritoras/es e artistas foram citadas/os para referenciar os conceitos e temas abordados, como Mogob Ramose, Clenora Hudson, Oyeronke Oyewumi, bel hooks, Sojourner Truth, Kimberlé Crenshaw, Abigail Santos, Tatiana Nascimento, Ailton Krenak, Audre Lordi, Anahi Guedes de Melo, Lélia Gonzalez, Helena Vieira, Viviane Vergueiro, Milton Santos, Jota Mombaça e Eduardo Galeano.

Entre os fios encruzilhados nos diálogos, estão a importância de desmistificar a categoria “universal” do ser mulher e o convite para pensar em outras narrativas, assim como a relevância de pensar sobre a interseccionalidade, que entrelaça essas diferentes realidades e experiências. Ênfase também para a reflexão sobre a ancestralidade que atravessa a trajetória e aponta o futuro de mulheres negras e indígenas.

Os diálogos trouxeram ainda a urgência de visibilizar a luta das mulheres trans, lésbicas e com deficiência em busca de garantirem o exercício livre de suas mulheridades e de serem reconhecidas como parte da diversidade humana. Outro fio revelador das conversas foi o pulsar do pensamento indígena, que vê o sonho como uma estrutura para orientar o caminhar e a coletividade como uma forma de organizar a caminhada.

Mulheres potentes reunidas, que também encontraram lugares comuns em suas trajetórias. “Quanto mais a gente dialoga para desconstruir o pensamento único, direcionado e preestabelecido de ser mulher, menos submetidas a violências sociais, emocionais, físicas e afetivas ficamos enquanto mulheres”, ressalta a mediadora das conversas e organizadora do projeto, Ariane Carvalho. Ela lembra ainda da importância de se construir lugares de pluralidade a partir do coletivo. “Somos mulheres diferentes, mas partimos de uma construção coletiva. Ninguém quer estar sozinha em seus lugares, porque não nos construímos nesses lugares sozinhas”.

A partir dos encontros “Mulheres Plurais”, o Sesc Registro quer abrir novos espaços para conversar com o público do Vale do Ribeira sobre outras pluralidades humanas, como as infâncias, as juventudes, os idosos, para colaborar com a construção de relações sociais baseadas não somente na igualdade, mas em equidade e justiça. A íntegra dos encontros “Conversando sobre Diversidade: Mulheres Plurais” está disponível no canal do Sesc Registro no YouTube.

 

 

“De quais mulheres estamos falando?”

Esta questão permeou as conversas entre as participantes do “Mulheres Plurais”. A filósofa Katiúscia Ribeiro fala da importância de desmistificar o olhar hegemônico sobre a mulher como uma categoria universal, encaixada em um padrão constituído no modelo ocidental de sociedade, em que os sujeitos protagonistas são mulheres e homens brancos. Esse modelo “ideal” e visto como “universal” não foi pensado para atender outros conjuntos de mulheres, especialmente as negras, trans, mulheres com deficiência e indígenas.

“Sim, nós somos mulheres, mas mulheres com narrativas distintas e com olhares e perspectivas de vida distintas” (…) “somos, sim, plurais, não apenas porque somos diferentes, mas porque as nossas localizações geográficas, culturais e ancestrais trazem outras realidades do que é sermos mulheres” (Katiúscia Ribeiro).

Olhando para além da universalidade - que remete a uma única possibilidade de ser - Katiúscia traz ao debate o conceito de pluriversalidade, “que nos convida a pensar narrativas plurais sobre epicentros de localização de mundo”. Socialmente, lembra a filósofa, fomos construídos para buscar um “norte”, “nortear” nossos pensamentos, já que o Norte global apresenta o conhecimento, a civilização. “Mas nós nem sequer fomos convidados a conhecer as epistemologias, narrativas e as culturas do Sul”, diz a mulherista africana, que parte de outro eixo de localização, que é a África, para pensar as mulheres negras. “A pluriversalidade é fundamental pra entender que temos outras experiências, realidades de mundo e outras localizações para buscar como referências de mulheres”.

“(…) Quando olho para mim, consigo entender que meu lugar de mulher tá muito próximo das mulheres de terreiro, das mulheres de quilombo, das mulheres da irmandade da boa morte, porque há uma experiência dentro dessa realidade de mulher que vem com nossas ancestrais” (Katiúscia Ribeiro).

A maquiadora e educadora de beleza, Magô Tonhon, reforça que é muito difícil batalhar pela pluralidade de ser mulher quando se é trans e travesti no Brasil, país que há 12 anos se mantém na liderança do ranking mundial de assassinatos de pessoas trans no mundo, de acordo com o projeto TvT — Transrespect versus Transphobia Worldwide, da ONG Transgender Europe, que publica relatórios anualmente sobre o tema. “É muito complicado lutar contra a tentativa de universalização da sujeita mulher, quando você tem no país uma vivência toda pautada em códigos de doença de gênero” - que é onde figuraram durante muito tempo as identidades trans e travestis. Ela lembra que foi preciso muita luta dos movimentos sociais de mulheres trans e travestis para a construção de políticas públicas específicas, como o chamado processo transexualizador implementado no SUS em 2008.

"Até hoje ainda há uma luta pra que se mantenha esse ideal universal de mulher como se se debruçar sobre nossas questões específicas pudesse ser enfraquecedor e não o contrário, que é justamente no que eu acredito”. (…) Mas os transfeminismos se levantam, por meio de um lastro deixado pela produção de conhecimento das mulheres negras e dos feminismos negros no Brasil, com batalhas muito similares de desmantelar esse ideal universal de mulher." (Magô Tonhon).
 

Ao também ressaltar que a mulher “ideal” não existe, a escritora e professora Jaqueline Gomes de Jesus fala de diferentes estruturas que interagem na vida das mulheres. “O real é interseccional: essa mulher é negra, ou ela é branca, ou ela é indígena, é trans, ela tem ou não deficiência, quais deficiências ela tem, qual é a origem dela. A interseccionalidade é o reconhecimento de que tudo isso se entrelaça”. O desafio, segundo a escritora, é pensar em cada uma das centenas de identidades que formam as mulheres, ao mesmo tempo em que isso não as reduza a essas categorias. “Como conseguir ver cada uma de nós nas nossas particularidades, entendendo que esse é o grande paradoxo da diversidade humana: somos iguais em direitos, mas somos diferentes, e somos únicas. Nenhuma mulher é igual à outra, ao mesmo tempo em que nós compartilhamos alguma coisa que nos permite dizer que somos mulheres”. Ao relatar o percurso histórico da construção da ideia de interseccionalidade, Jaqueline cita a contribuição do feminismo negro e do transfeminismo no questionamento à visão da universalidade.

“O feminismo negro questionou muito o que as mulheres feministas queriam dizer com feminismo, porque muitas vezes ali não estava incluída a mulher negra, como outras mulheres. Qual o feminismo que se está falando? Elas reconheceram que, muitas vezes, quando a gente trata algo como universal, estamos escondendo a sua particularidade, de um feminismo pensado unicamente da perspectiva da mulher de classe média, branca, a sufragista que lutava pelo direito do voto das mulheres, mas queria que a sua empregada negra continuasse na cozinha trabalhando” (Jaqueline Gomes de Jesus).

Liderança do coletivo feminista de mulheres com deficiência, a assistente social Fernanda Vicari foi enfática ao referir-se à interseccionalidade. “Somos muito mais do que nossas deficiências”. Para ela, há vários elementos que fazem parte da construção do “ser mulher com deficiência”, como o lugar que a mulher ocupa, o meio social, a composição familiar, a singularidade como pessoa. “A deficiência não vai ser uma categoria pra me definir. Pode, sim, ser uma categoria pra me colocar na luta, pra militar dentro do movimento feminista, pra lutar por políticas públicas. Mas a deficiência, continua, não pode ser um elemento a restringir sua existência".

“A gente precisa andar juntas, isso é de extrema importância, porque nosso espaço é negado até mesmo dentro dos movimentos sociais, como se o nosso lugar fosse somente dentro do movimento das pessoas com deficiência. (...). É como se minha deficiência tomasse conta de toda minha existência, só que não é assim, somos mulheres plurais e isso deve ser evidenciado o tempo inteiro” (Fernanda Vicari).
 

Da esquerda para a direita: Katiúscia Ribeiro, Magô Tonhon, Cristine Takuá, Alaine Santana, Fernanda Vicari e Jaqueline Gomes de Jesus


A psicóloga Alaine Santana também cita a interseccionalidade ao evidenciar que é importante ampliar as discussões sobre lesbianismo. “Falava-se muito de intersecção, só que eu não conseguia entender, já que não sou apenas uma mulher negra, não sou só isso, sou uma mulher negra lésbica, preciso discutir sobre isso, ver mais leituras sobre isso. Eu aprendi ali, enquanto mulher negra, sobre questões raciais, mas não entendi muito sobre lesbianidade, por isso fui estudar para compreender diversas questões”. Desde 2015, em uma rede social, a psicóloga dá visibilidade às causas das mulheres lésbicas negras caminhoneiras (ou “bofinhas”), termo que se refere às mulheres que não vivem de acordo com o padrão de feminilidade imposto pela sociedade.

“Temos de reeducar nossas mentes pra entender que mulheres podem ser o que elas quiserem, vestir a roupa que quiserem, seguir a profissão que quiserem (…) exercer a mulheridade à sua forma, à sua maneira, de uma forma livre, liberta, sem ter um olhar único, mas amplo” (Alaine Santana).

A sociedade desigual, competitiva e violenta em que vivemos traz para a filósofa e educadora indígena Cristine Takuá o sentimento de que há uma grande falta de respeito à essência do ser feminino. Ancorada na ancestralidade, ela entende o ser feminino não somente como o corpo humano, mas o ser feminino nas suas diversas formas: “o feminino água, o feminino terra, o feminino semente que nos deu a vida e que nos possibilita continuar vivendo”. Para ela, independentemente de serem negras, trans, indígenas, brancas, “as mulheres também podem dar voz a todos os outros seres femininos que lutam, resistem e reexistem recriando formas de conviver na Terra”.

Vejo muito próxima a luta e a resistência das mulheres indígenas com a resistência das mulheres ribeirinhas, das mulheres negras que têm essa ancestralidade muito viva dentro de si, de suas histórias e do seu modo de existir dentro do território” (Cristine Takuá).

Um território constantemente ameaçado e que coloca em risco a prática dos conhecimentos ancestrais. “A Terra que nos dá o sustento, a grande Mãe que nos abriga e nos acolhe, não está sendo escutada e respeitada na sua plenitude de ser mulher e de parir toda essa sociedade humana (…) Os rios sendo assassinados, a floresta sendo derrubada, e toda a nossa produção, a produção da arte, dos nossos remédios que nos cura, tudo depende da floresta”. Por isso, ela fala da importância de “fazer ecoar a voz das florestas e dos seres ancestrais que resistem há tanto tempo produzindo conhecimento e resistindo com outras lógicas, outras formas de se relacionar”.

A escritora e professora Jaqueline Gomes de Jesus também se referencia em outras lógicas para falar sobre resistência e direito de existência, principalmente quando se trata de grupos historicamente estigmatizados, como a população trans. “Quero fugir da lógica neoliberalizante, que tem tendência a individualizar o que a gente fala, como se a gente fosse a primeira isso, a primeira aquilo. É importante, sim, apontar nossas conquistas, mas tomar cuidado pra não cair na lógica que interessa ao discurso neoliberal do self-made-man/woman, do auto-empreendedor, daquela pessoa que se fez por si só, que é diferente dos demais, mas não considera o contexto complexo que vivemos, não considera aquilo que é o fundamental do humano, que é a interdependência”.

“Quais lugares de mulheres nós queremos? Todos os lugares, este é o nosso desafio. Mas como lutar para que nossa visibilidade não se restrinja a estereótipos que já são postos sobre nossos corpos, isso é um grande dilema para mulheres de forma geral, particularmente para mulheres negras, indígenas, com deficiência, periféricas, lésbicas, bissexuais, trans e travestis, com toda sua diversidade sexual e étnico-racial” (Jaqueline Gomes de Jesus).

Para a escritora, às mulheres não basta resistir e buscar o reconhecimento do direito de existir. É preciso ir além: se insurgir, afrontar. “Precisamos chegar a uma resistência e a uma visibilidade que, de fato, não nos exponha aos nossos inimigos: ao machismo, ao racismo, ao feminicídio, à transfobia. Esse é o grande desafio: nós estamos aqui, seguimos existindo e resistindo”.

Saiba mais e assista aos encontros aqui ou acesse: bit.ly/YTMulheresPlurais