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À escuta das vozes vissungueiras
*Por Luciano Mendes de Jesus
Partamos de uma imagem dolorosa, mas concreta. Escravizados de diversas etnias centro-africanas, da região que hoje engloba as nações de Angola, República Democrática do Congo e Congo Brazzaville, no interior de um tumbeiro, embarcação utilizada pelo tráfico ao longo de mais de três séculos.
Nègres a fond de cale, J. M. Rugendas (Imagem: Arquivo Nacional)
Talvez ali, naquelas nada humanas condições, homens e mulheres cantassem, de forma quase inaudível. Cantos contra o medo, pelos espíritos daqueles/as que no trajeto morriam, para não esquecer de onde vieram.
E já aqui no recém “batizado” Brasil, por volta dos anos de 1530, período no qual se credita a chegada dos primeiros africanos de origem Bantu, certamente cantar foi a expressão cultural que mais rapidamente puderam acessar, uma vez que o canto não depende, a princípio, de qualquer outro recurso que o apoie, senão a mínima condição fisiológica para a emissão da voz. Estes cantares dispersos em tempos e lugares distintos nas travessias afro-atlânticas são a origem dos chamados vissungos, poéticas cantadas que carregam sentidos existenciais, desde África à afrobrasilidade, antes de suas ressignificações nas terras da antiga Pindorama invadida e desnomeada.
Mestre Ivo Silvério da Rocha (Imagem: Rudá K. Andrade)
Como confirma o músico e pesquisador Spirito Santo, os vissungos são “elos perdidos”. Sua presença e reelaboração em terras brasileiras, especialmente em Minas Gerais, representariam a mais antiga expressão musical africana que aqui chegou.
A origem desta palavra é o vocábulo ovisungo, do idioma umbundu da etnia Ovimbundu, de Angola. É o plural de ochisungo, que quer dizer canto, cantiga, canção, como observa Nei Lopes no “Novo Dicionário Banto do Brasil”. Logo, vissungos podem ser compreendidos como as expressões cantadas da pessoa e da comunidade.
Esse conjunto de cantares perpassam não apenas o ambiente do trabalho na mineração colonial ou do garimpo artesanal, mas se apresenta nos rituais fúnebres, daí sua relação mais que semântica com os tsungos, cantos funerários do povo Chókwé, como aponta o multiartista e historiador Salloma Salomão. E, além disso, são cantos que ritmam e ritualizam o cotidiano, do nascer ao pôr-do-sol, celebram a natureza, o sagrado, transmitem códigos sociais do povo negro da região mineira do Vale do Jequitinhonha. Nas palavras do mestre vissungueiro Ivo Silvério da Rocha, considerado o último conhecedor dos mais profundos fundamentos desta tradição, hoje apenas residual nas comunidades que a praticaram, “os vissungos são cantos de vida e morte”.
Estes cantos vêm sendo estudados, pensados e recriados oficialmente há quase um século, tendo três grandes marcos: as anotações do filólogo Aires da Mata Machado Filho iniciadas em 1928, que culminaram no livro “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais” (1943), as gravações coordenadas por Luís Heitor Correa de Azevedo, realizadas na cidade de Diamantina em 1944, a serviço da Biblioteca do Congresso dos EUA, e o disco “O Canto dos Escravos”, de 1982, nas vozes de Clementina de Jesus, Tia Doca e Geraldo Filme.
Capa da edição original (Imagens: AbeBooks)
Capa original do álbum (Imagens: IMMuB)
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Capa do álbum com algumas das gravações de 1944 (Imagem: Discogs)
É por essa perspectiva de compreensão destes cantos de tradição africano-diaspórica como não somente um gênero musical afro-brasileiro (cantos de trabalho) como se notabilizou popularmente, mas antes como a relação fulcral do ser humano com os fenômenos da vida mediadas pelo cantar, que a ação artística Ponte Elemento Per, por meio da “Plataforma Garimpar em Minas Negras Cantos de Diamante”, vem desenvolvendo desde 2014 um projeto de pesquisa e criação em torno dos vissungos, suas historicidades, epistemologias e mitopoéticas. Diante da iminência do desaparecimento destes cantares que nos ligam diretamente às nossas fontes africanas, buscamos construir, por meio do campo artístico, formas de permanência, valorização e divulgação da sua relevância para a identidade afrodescendente e a afrobrasilidade que nos forma enquanto país.
Uma das nossas ações, entre espetáculos, oficinas e palestras, é a Canjica Histórica, que consiste em encontros entre artistas e pesquisadores em torno de temas que envolvem as variadas questões que os vissungos trazem em seu bojo, como relações étnico-raciais e cultura afro-diaspórica. O evento recebe este nome para ressaltar que o sentido dos diálogos está centrado em reflexões que valorizem perspectivas do pensar e fazer negro-brasileiro, uma provocação aos “tradicionalizados” Cafés Filosóficos que sempre ressaltaram os referenciais eurocêntricos que nos colonizaram.
Episódio II: Mileke entre Pedras e Piercings (Imagem: Bea Costa)
Entre os dias 27 e 30 de abril, teremos uma edição especial da Canjica Histórica, numa potente parceria entre Ponte Elemento Per, Núcleo Coletivo das Artes Produções e Sesc Campo Limpo, na qual receberemos artistas e pesquisadores/as que têm relação visceral com os vissungos (ou em campos estético-investigativos próximos a eles). Serão abordados diversos temas: sua força como valores civilizatórios, críticas às pesquisas e recriações dos cantos, seus impactos na música popular brasileira, suas conexões com África e outras culturas afro-diaspóricas, a preservação da memória dos cantos pelas transcriações do artista urbano.
Esta edição nos honrará com a presença de Mestre Ivo Silvério da Rocha, nosso grande homenageado. Além dele estarão presentes os já citados Spirito Santo e Salloma Salomão, o escritor e editor Vitor Kawakami, o músico Sérgio Pererê, a cantora e pesquisadora Andréa Adour, o músico e filósofo Tiganá Santana e as cantoras Juçara Marçal e Graciela Soares. Complementando as conversas, serão exibidas apresentações musicais pré-gravadas dos/as artistas convidados/as, que depois ficarão disponíveis no canal do Sesc Campo Limpo no YouTube.
Assista aqui:
Como se diz em muitos vissungos, uenda. Caminha, vem.
*Luciano Mendes de Jesus é artista cênico, músico e professor. Mestre em Música e doutorando em Artes Cênicas (ambos pela USP). Colaborou no Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards de 2013 a 2015. Coordena a ação artística Ponte Elemento Per, desenvolvendo a Plataforma Garimpar em Minas Negras Cantos de Diamante, investigando as relações entre cantos africano-diaspóricos e criação teatral. Realizou também os projetos “Trilogia Vissungueira”, “O que é dos Antigos” e “A Grande Encruzilhada: Brasil + EUA”.