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O brincar como agente da desconstrução do racismo estrutural nas relações cuidador/crianças e seus responsáveis

Foto: Cia. Alcina da Palavra
Foto: Cia. Alcina da Palavra

*Por Ivy de Lima

A Cia. Alcina da Palavra nasceu do encontro de artistas, atrizes, atores, contadoras e contadores de histórias negros, com o objetivo de produzir e realizar pesquisas – com base no resgate da cultura popular – e principalmente valorizar a cultura africana e afro-brasileira em suas diferentes expressões. A missão é desconstruir a estrutura racista no país por meio de atividades lúdicas, especialmente com histórias de tradição oral e da literatura infantil. 

A música permeia todo esse nosso trabalho como um fio condutor, envolvendo profissionais de diversas áreas, tais como educação, artes visuais, música e artes cênicas. Nosso objetivo é trazer para o universo infantil um repertório de histórias, brincadeiras e atividades educativas que tenham como protagonistas personagens negros. Queremos com isso ampliar a visão de mundo da criança, potencializar as memórias da infância e conduzi-la no aprendizado da vida com a construção de valores étnicos, éticos e culturais. 

Buscamos ainda incentivar o gosto pela leitura e pelo conhecimento da ancestralidade negra no Brasil, atingindo tanto a criança quanto seus responsáveis, que têm papel crucial. Eles são facilitadores das experiências que ela terá como ser humano. Essas experiências de vida podem ser construtivas ou traumáticas. O cuidado com o qual essas questões serão abordadas é que faz do responsável um agente importantíssimo. 

A Cia. atua como mediadora ou condutora de atividades educativas em espaços de brincar, áreas de convivência, eventos corporativos ou de lazer. 

O fato de corpos negros se apresentarem como agentes cuidadores presentes nesses espaços já é um fator importantíssimo para a desconstrução do sistema racista presente no país. Percebemos que o estranhamento de responsáveis é muito maior que o das crianças ao se deparar com uma equipe formada por cuidadores negros. Esse estranhamento se dissipa assim que iniciamos uma abordagem, uma atividade artística. Quando se dão conta de que as atividades que proporcionamos nesses espaços são diferentes, por assim dizer, daquelas que estão acostumados a assistir – seja por meio de uma cantiga africana, uma brincadeira, um instrumento musical (tambor, caxixi, djambê, pandeiro) ou ainda a apresentação de uma história –percebemos o grande envolvimento dos participantes. A devolutiva é positiva e nos fortalece e encoraja a pesquisar novos conteúdos que fomentem o conhecimento e as experiências presentes na cultura negra. 

Historicamente, o Brasil sempre associou a expressão “cuidador de crianças” às babás e às empregadas – profissões majoritariamente ocupadas por negros e negras. Ao criar uma Cia., que tem como proposta se apresentar na condição de profissionais realizadores da arte a serviço da educação, ressignificamos essa figura do “cuidador” (desde sempre considerada subalterna) para ocupar um lugar de “referência do saber”. Desse modo, nós nos tornamos agentes transformadores na sociedade, recriamos os processos de brincar e de certa forma fortalecemos a mudança nas relações estruturais entre negros e brancos, estimulando o respeito pela diversidade cultural. 

A transformação ocorre também entre os profissionais. Utilizar os conhecimentos presentes em nossa ancestralidade nos fortalece e nos empodera no papel de artistas fazedores de uma arte constituída pelas histórias contadas por nossos antepassados. 

A figura do “Griô” – presente na cultura africana com o significado de “os mais velhos que nos contam histórias e nos transmitem ensinamentos” – é aplicada diariamente no nosso fazer artístico. O respeito por essa tradição é a base para a aplicação dos conceitos que pesquisamos em livros, vídeos, oficinas e reuniões, realizadas para a comunhão dos nossos saberes. Esse é um exercício constante e que nos fortalece como equipe. 

Embora os resultados em sua maioria sejam positivos, por vezes nos deparamos com situações racistas em nossa execução. Esses momentos são ponderados e sempre levados ao grupo. Eles são avaliados, e nunca deixamos de problematizá-los, a fim de chegarmos à solução dessas situações. Em grupo nos fortalecemos. 

Muitos são os desafios a enfrentar e a comungar com os nossos, quando o assunto é disseminar a cultura negra no Brasil. Acreditamos, porém, que a cada dia estamos conquistando espaços, despertando olhares e mudando paradigmas. 

*Ivy de Lima é fundadora e coordenadora da Cia Alcina da Palavra, que realiza oficinas e mediações lúdicas em espaços culturais. Suas principais referências são a cultura popular e afro-brasileira. A Cia Alcina da Palavra se dedica à pesquisa e divulgação dessas manifestações e se propõe a estimular o contato com a diversidade. 

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Este conteúdo faz parte da ação Cuidar de Quem Cuida, que trata das questões sobre o universo da primeira infância e suas cuidadoras e cuidadores de referência. Em sua terceira edição, que acontece de agosto de 2020 a abril de 2021, tem como tema Redes de Apoio e CuidadosClique aqui para saber mais ou acesse: sescsp.org.br/cuidardequemcuida.