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Uma existência no tudo junto e misturado

Por Neon Cunha*

E aí, tudo bem? Tá com tempo? Então vem, quero te contar uma história, um bafo, um babado. Mana, mano, mina, desaquenda desse Zap. Isso mesmo, deixa tudo de lado, desaquenda mesmo, e se joga aqui neste texto, mergulha fundo nele. Só respira e vem comigo.

Eu comecei a trabalhar oficialmente aos 12 anos. Pra ser honesta, foi aos 11 anos e meio. Pra ser mais honesta ainda, eu comecei mesmo foi aos quatro, quando já fazia faxina na casa e limpava fraldas. Eram aquelas fraldas de cueiro, um tecido mais resistente, pras fezes não esparramarem. Superei o nojo de limpar o primeiro produto sólido que o ser humano oferece e encarei a tarefa. Pra ser sincera mais um pouco, eu só não gostava mais desse trabalho do que o de lavar louça. Às vezes, até hoje eu deixo ela acumular na minha pia, pra ter o prazer de lavar em quantidade, como era feito na casa daquela família sem fim. Estou falando de uma família de 10 filhos. Hoje, contando as três gerações, eu já perdi a conta de quantos eles são. "Eles" mesmo, não "Nós", justamente porque eu não tenho mais o pertencimento. Essa família interracial, de bem, expulsou a pessoa não cisgênera que escreve este texto quando ela concluiu o Ensino Superior.

Uau! Os anos 1980 não foram mesmo feitos pra pessoas fracas e amadoras. No Brasil, faltava democracia e sobrava ditadura. Os dias de trabalho desta então pré-adolescente eram assustadores. Imaginem só, uma menina acordar às cinco e trinta da manhã, depois de ter ido dormir por volta de uma da mesma manhã, para começar o seu dia. Ela tinha de vestir uma farda marrom de um mau gosto que só os conservadores poderiam produzir: a calça era confeccionada com o pior tergal marrom, a blusa era de um bege meio marrom clarinho (bem eugenista), o sapato já era um tom de marrom café e o moletom com gola "V" era de outro tom de marrom, uma mescla de mau gosto sem precedentes. A "cereja" de toda essa dor era o "bíbico", tipo de gorro militar usado por soldados, feito com uma única e reta costura em cima, que produz dois bicos. O desespero maior com essa  "cereja" era o de sempre precisar cortar o cabelo, até mesmo raspá-lo. Afinal, cabelo duro não permitia que a tal indumentária, símbolo máximo da opressão, se encaixasse na coroa desta não princesa. Coroa é o nome dado à cabeça nos terreiros de axé, lugar onde essa menina transitava muitas vezes contrariada, pois a intenção real dos que a levavam era a busca por uma cura para o seu comportamento nada adequado.

Agora, imaginem o cenário em evolução naquele 1982: eu era, então, patrulheira mirim do Círculo de Meninos Patrulheiros de São Bernardo do Campo, serviço constituído de forma mais tradicional e que impunha regras de comportamento. Meu medo e necessidade de ser invisível me fez tentar ficar em silêncio o máximo possível, principalmente em público. A branquitude cisgênera interpretava isso como uma educação muito elaborada e sofisticada, que traduzia a delicadeza como refinamento.

Foi neste cenário que peguei pela primeira vez um elevador, e foi também a primeira vez que desci no 18º andar daquele prédio. Me deparei com um vão livre capaz de abrigar um bocado de gente pobre, algo que só viria a aparecer ali anos depois com a mudança de prefeito. Me apresentaram a uma funcionária que deixou nítido não gostar de gente "parda". Aquilo não me surpreendeu, pois, ainda com oito anos, as outras meninas da escola mandaram me avisar que não iriam andar comigo por eu ter cor de sujeira, do papel de pão que encapava os meus livros didáticos.

Estava eu ali, me deparando com paredes de madeira, cadeiras de design e mesas amplas, e sendo direcionada à mesinha do outro lado, próxima da janela de vidro, onde eu me sentaria de forma bem exposta, como manda a tradição colonial: a criadagem sempre está devidamente vestida para servir bem e sempre. O prédio era considerado um fenômeno arquitetônico da cidade, com sua estrutura metálica e revestimento inteiro de vidro. Meu medo de altura e vertigem me faziam andar colada nas paredes quando passava pelo corredor que levava ao banheiro, do outro lado do andar. Tinha de usar o banheiro masculino e, devido aos constantes assédios, passei a identificar os horários em que ele estaria absolutamente vazio para poder entrar.

Os anos foram passando, e a vertigem foi sendo superada, mesmo vendo pessoas tentarem - ou mesmo conseguirem - se atirar janela abaixo. A estrutura também mudava e, aos 16 anos, passei a sentar literalmente debaixo da escada que a branquitude usava para frequentar o salão nobre do andar de cima, em festas e celebrações feitas nos moldes coloniais. A mesinha do começo sumiu, dando lugar a um balcão de cada lado, um para cada patrulheiro que viesse. Não sei quantos passaram por ali enquanto eu perdurava. A janela ficou mais próxima de mim, e vi dali do alto a mudança da cidade. O centro se estruturava cada vez mais, enquanto as favelas cresciam aceleradamente, acompanhando a ocupação industrial. Encontrava a população negra nos trabalhos de sempre, bem distantes do meu convívio. Naquele gabinete, nunca via ser contratada uma secretária negra que fosse, nem mesmo uma como eu, de pele mais clara.

Em paralelo à rotina do 18º andar, havia a vida da adolescente que resolveu pagar pelo próprio estudo de publicidade e propaganda, diploma com o qual ela nunca foi contratada. Seguiu frequentando o centro de São Paulo, lugar onde encontrava suas semelhantes. Assisti à perseguição frenética às mulheres trans e travestis, promovida pela fenomenal união entre as polícias Militar e Civil, orientada pelos governos municipais e estadual, e amplamente apoiada pelos ditos cidadãos de bem. Acompanhei a epidemia do HIV/AIDS, levantei a cabeça da calçada incontáveis vezes depois de ter sido pisoteada por policiais, tomei geral de bandidos que checavam minhas mãos pra ver se tinha calos e, com isso, comprovar que era trabalhadora. Tinha de ser ótima aluna, excelente filha, exímia profissional, e muito mais fodida ainda, em todos os sentidos, pra poder ser alguém, ter o mínimo de humanidade.

O fato é que eu nunca resisti a nada, absolutamente nada. Atendi a todos os anseios sociais, calculei cada passo que dei, e a cada avanço compactuei com o narcisismo clássico de uma sociedade que impõe suas regras elaboradas para confundir direitos básicos com privilégios. Tudo isso enquanto essa gente de bem, geralmente branca, cisgênera, bem formada e aparamentada no seu duvidoso gosto estético, resistia bravamente à grande novidade promovida pelo direito de ser quem se é. A resistência sempre esteve do lado de cá, mas ainda assisto minhas semelhantes atenderem, assim como eu atendo, às exigências dessa sociedade normativa.

Enquanto escrevo este texto, me pergunto o que é que me fazia voltar ao cenário de campo de extermínio que era o centro de São Paulo. O que é a força que nos move, por mais de 20 anos e sob a tensão de uma Ditadura que ainda nos ronda feito uma alma penada, que não finda para quem ainda vive na exceção. A única certeza é a de que, entre tantos "ismos" como o racismo, o cissexismo e o etarismo, entre tantos outros que marcaram minha existência até aqui, ficaram as certezas de que meu corpo, minha pele negra clara, meu gênero e sua identidade são as minhas regras, e elas fazem frente à sua resistência.

Simplificando, na voz de Cássia Eller:

Sou minha mãe e minha filha

Minha irmã, minha menina

Mas sou minha, só minha e não de quem quiser

Sou Deus, tua deusa, meu amor

 

Sou tudo junto e misturado. Muito prazer, Neon. Assim mesmo, como a luz.

 

 

 

 

*Neon Cunha, mulher, negra, ameríndia e transgênera questionadora da branquitude e cisgêneridade tóxicas. Integra diversas iniciativas e espaços como ativista independente, dentre elas a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e como patrona da Casa Neon Cunha, espaço de acolhimento LGBTQI do ABC Paulista.

 

 

 

 

 

 

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