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Para ler quando o ipê-amarelo estiver florido
Terceiro encontro. Terceira parte da construção de uma cápsula do tempo. A Cia. do Flores, Coletivo Menelão, Cia. do Tijolo e NED – Núcleo de Experimentos em Dramaturgia seguem como construtores de um projeto que vem se erguendo por meio de um processo colaborativo entre artistas, com a pretensão de registrar este tempo e revisitá-lo num tempo futuro.
Música. Zoom. Sala. Artistas dançantes. Corpos em movimento em frente às câmeras balançam meio corpo ao som da música, que embala o hall de entrada da sala do zoom.
Dancemos enquanto ficamos à espera. O tempo ainda segue um fluxo de urgências diferente pra cada um de nós! Esta não foi uma sugestão em palavra falada, mas um inconsciente coletivo que nos colocou num movimento de diálogo entre a música e o início efetivo dos trabalhos.
Faço um parêntese aqui para falar sobre as “intempéries” virtuais, que têm sido tão recorrente neste tempo cibernético. Penso que logo este tema se tornará irrelevante para as narrativas, mas, enquanto estão em processo de irrelevância, acredito que ainda há especificidades que merecem espaço para serem narradas.
Vamos começar?
Gostaríamos de convidar vocês para que pudéssemos ler juntos o texto que vocês já receberam…
Espere um momento, alguém não está conseguindo ouvir.
Tem um botão que você precisa acessar…
Ah! Agora consegui. Estou no celular. Eu peço desculpas por estar no escuro. Estou no Uber, pois meu computador quebrou e eu precisei levar ao técnico e estou voltando pra casa.
Tudo certo... Tudo bem... Ok... Seguimos juntos…
Gostaria de fazer um convite a todos vocês para que possamos ler o texto que vocês receberam durante a semana. Tem umas marcações no texto como sugestão de passagem de leitura para outra pessoa. Assim todos nós poderemos nos apropriar das palavras. Você que está no Uber, caso não consiga ler, está tudo bem, ok?
Aqui, retomarei o segundo encontro para falar sobre o terceiro.
O coletivo NED, mediador do Ateliê Colaborativo do Cenas Centrífugas - Entreato, propôs textos provocadores que reverberassem em processos de criação cênica. Os atores escolheriam trechos dos textos recebidos, para serem trabalhados e apresentados no segundo encontro, estas escolhas poderiam acontecer de acordo com os atravessamentos que tivessem pulsado para se revelar como cena.
Desde o primeiro encontro nos tornamos um grupo de “provocantes”, pois entre perguntas, respostas, réplicas e tréplicas os materiais textuais e cênicos apresentados se tornariam provocações para a cena e consequentemente para a dramaturgia em processo.
Os materiais cênicos apresentados no segundo encontro geraram muitas imagens. Tudo era importante, as referências, as perguntas, os depoimentos, as cenas em vídeo, as cenas de improviso, as citações, os impedimentos virtuais... tudo, tudo era importante! Porém, quando se tem um processo a ser realizado em tão pouco tempo, com tão poucos encontros, o desejo é de não se desperdiçar nada, mas é preciso fazer recortes, promover uma curadoria de materiais e entender como eles podem se encaixar e se estruturar dentro da premissa pela qual se constitui o Ateliê: uma cápsula do tempo, que ao ser revisitada conte para nós, conte a quem possa interessar, sobre hoje, sobre este tempo em que foi preciso reconstituir fazeres e pensamentos artísticos, reconstituir o futuro que poderia ter sido, reconstituir relações em distanciamento, reconstituir-se para seguir.
Os materiais reverberaram em nós como sementes lançadas para o amanhã. Talvez por estarmos ainda atravessadas pela metáfora do ipê-amarelo que surgiu durante o primeiro encontro enquanto texto/metáfora do tempo: “Acabo de perceber que a flor amarela do ipê nasceu. Então é setembro. Eu perdi a noção do tempo! Eu perdi... e já me perdi em sonhos de lugares melhores mesmo acreditando pouco.” E se transformou em imagem no segundo encontro.
O tempo é uma senhora sentada embaixo de um ipê-amarelo.
Alguém trouxe outra percepção sobre a mesma imagem:
Pra mim, o tempo é uma criança sentada embaixo de um ipê-amarelo.
Fomos atrás do ipê e foi nele que fincamos o pé. “É da experiência de quase morte, de seu flagelo frente às severidades do clima que vem a beleza dos ipês. A planta entende o estresse como sinal de que seu fim pode ser iminente – e, como resposta, busca produzir o máximo de sementes para deixar descendentes.” *
Retomo aqui o terceiro encontro.
Todos deram voz à dramaturgia. Uns leram de seus quartos, outros de suas salas, e um dos trechos do texto foi lido no banco traseiro de um carro de aplicativo. Para ser mais específica: o banco traseiro de um carro de aplicativo conduzido por uma mulher acolheu a leitura de uma das participantes do ateliê.
Hoje, foi um dia bem complexo como costuma ser a vida, com coisas incríveis e coisas muito difíceis, e eu tava no Uber voltando pra casa, com vocês na reunião e lendo. E foi muito curioso porque eu estava em silêncio ouvindo vocês (...) e ai de repente eu comecei a ler, ou seja, tinha um silêncio no banco de trás e eu comecei a ler. Quando eu parei de ler, a motorista disse: “Nossa!” Antes de ler ela estava com uma música sertaneja e eu perguntei se ela poderia abaixar porque eu ia entrar numa reunião, então eu só falei isso e comecei a ler o texto e quando eu terminei, ela estava surpresa e extasiada.
A motorista foi espectadora de um processo que tem colocado a escuta coletiva para se tornar palavra escrita, palavra falada. Ela foi público de um processo que mira o futuro, que nos projeta para o amanhã, esperançados de que sejamos capazes de tirar poesia do caos. A espectadora do Uber foi atravessada por nossa poesia-caos, porque a ela também é cara a esperança de que pelo estresse e sofrimento deste tempo, estejamos soltando sementes para que logo venham as flores e toda beleza que elas nos oferecem.
Da realidade do ipê encontramos semente-esperança para plantar na cápsula do tempo. Seguimos semeando expectativa de que a flor da dor nos ensine a renascer floridos. Estamos aprendendo juntos que o “amanhã será pra sempre uma história a ser dançada embaixo de um ipê amarelo, até o fim dos tempos”.
O jogo seguiu por mais uma hora em meia de encontro, mas aqui dou por fim este primeiro relato sobre o terceiro encontro.
Claudia Jordão
NED – Núcleo de Experimentos em Dramaturgia
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ATELIÊ COLETIVO ONLINE: RELATOS
O texto que você acaba de ler integra a programação do projeto Cenas Centrífugas: Entreato do Sesc Santo André.
Enquanto a segunda edição do projeto Cenas Centrífugas permanece suspensa por conta da pandemia causada pela Covid-19, os grupos convidados se encontram para refletir sobre o teatro no contexto atual e para experimentar possibilidades do fazer teatral no meio digital.
Por meio de relatos textuais, o NED (Núcleo de Experimentos em Dramaturgia) apresenta para o público perspectivas sobre a experiência de realização do Ateliê Coletivo Online. Ao longo dos dois meses de encontros, o Núcleo, que orientará a Cia. do Flores, a Cia. do Tijolo e o Coletivo MENELÃO, produzirá semanalmente um relato sobre essa aventura cênica no campo digital.