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Foto: Ramilla Souza
Foto: Ramilla Souza

Nos Trilhos Abertos de um Leste Migrante reúne três histórias sobre sonhos, fugas e lembranças. O Coletivo Estopô Balaio, no Teatro Fora da Caixa, apresenta Carta 1 - A Infância, promessa de mãe, Carta 2 - A Vida Adulta, a Mulher e Carta 3 - A Velhice, o artista, os dois últimos realizados nos vagões de trens da CPTM,  em viagens em direção à Guaianazes e Rio Grande da Serra, respectivamente - fazendo valer o título do projeto do Sesc Belenzinho, que está em sua segunda edição. A proposta visa apresentar peças e intervenções criadas para espaços não convencionais como praças, corredores, lugares de passagem, áreas de trânsito dos públicos, etc; ou seja, obras em que o espaço é o elemento central para a dramaturgia e estratégia para o jogo teatral.

Nos espetáculos desta temporada, estão em cena as trajetórias de vida de Martha e seu filho Erik (Carta 1), Janaína (Carta 2), e do Sr. Vital (Carta 3), (i)migrantes que saíram da Bolívia, de Pernambuco e de Minas Gerais, respectivamente, para construir novas narrativas pessoais na cidade de São Paulo. Vividos por seus protagonistas e pelo público, as apresentações nos trens convidam os passageiros a avançar o olhar pelas janelas do trem, que, munidos com fones de ouvido e MP4, auxiliados por um audiotour, mergulham nas narrativas que perpassam a vida dos imigrantes da América Latina.

Ainda dentro da programação do projeto, o diretor João Junior ministra, no Sesc Belenzinho, a oficina A Praça, com jogos, improvisações, entrevistas e escritas de cartas que serão ferramentas para o percurso de estímulo às memórias individuais, e uma rede de acontecimentos que se interseccionem e se instalam no espaço arquitetônico da praça localizada na entrada da unidade onde a ação formativa finalizará com apresentação/instalação aberta à fruição pública. A partir da ideia de biodrama (desenvolvido pela artista argentina Vivi Tellas), o trabalho a ser realizado utilizará da biografia dos participantes e de seus imaginários sobre a imagem da praça como meio para mergulhar em questões mais abrangentes.

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Sobre os espetáculos

Carta 1 - A infância, promessa de mãe



A história tem como protagonista Erik, filho de bolivianos. Já no Brasil, Martha, sua mãe, escreveu uma carta para seu pai (avô de Erik, que estava doente na Bolívia). Martha, com o desejo de rever seu pai na Bolívia, fez a promessa de não cortar o cabelo do filho pequeno enquanto não pudesse voltar ao seu país natal e rever seu pai, para que ele mesmo pudesse cortar o cabelo de Erik. Essa prática cultural boliviana - em que alguém mais velho corta o cabelo da criança e dá a ela um presente – não levava em conta as dificuldades financeiras de Martha para voltar à Bolívia; o tempo passou sem que ela conseguisse cumprir a promessa. O cabelo do menino alcançou um tamanho gigantesco, o que gerou problemas na escola, no bairro e em sua vida social.
Quando finalmente a mãe de Erik conseguiu voltar ao seu país com o menino, o avô de Erik não se achou à altura de cumprir a promessa e não cortou o cabelo do neto. Foi então que Erik teve a ideia de oferecer sua história para um programa da TV aberta: o cabelo imenso (media cerca de 1,20m) poderia resolver parte dos problemas financeiros da família. E assim foi que o garoto expôs sua história e conseguiu reformar seu quarto.
A história de Erik se entrelaça com o jogo geopolítico existente entre os países da América Latina e suas relações comerciais, afetivas e de poder. De maneira bem humorada, Erik e Martha propõem uma reflexão sobre os problemas enfrentados pelos cidadãos latino-americanos: das promessas de lucro fácil (na imigração para o Brasil), à realidade da semiescravidão do setor têxtil, tudo é demasiado real e cruel nessa relação de irmandade com os vizinhos brasileiros.

Carta 2 - A vida adulta, a mulher



Janaina, nascida e crescida em Pernambuco, em Bonança, sofreu diversos tipos de abuso na infância. Aos 15 anos, foi entregue a um homem ao qual teve que chamar de marido. O sonho da festa de 15 anos, uma idade emblemática, foi interrompido pela transformação forçosa dessa menina em mulher.
Foram 18 anos de um relacionamento abusivo com seu “marido”. Janaina passou por vários tipos de violência - a mais frequente era a doméstica – mas chegou a apanhar dele até mesmo dentro do hospital onde estava internada por causa das surras que recebia.
Estimulada pelos seus dois filhos, Janaina se libertou do relacionamento e veio para São Paulo, com milhões de sonhos na mala. Há seis anos na capital paulista, Janaina é uma das seguranças da estação central da CPTM, no Brás. A narrativa construída refaz a festa de 15 anos que Janaína não teve, mas no local que ela escolheu para si: na própria estação de trens. É ali que o público verá a transformação de menina/mulher, mas em uma festa. A viagem, que parte da estação Brás com destino a Guaianases, é para buscar o bolo de aniversário - e é uma festa na estação do trem, para público/convidados.

Carta 3 - A velhice, o artista



Nascido na roça, em Mariana (MG), Sr. Vital, saiu de lá em 1964, para tentar a sorte na famosa cidade de São Paulo. O destino profissional do Sr. Vital cruzou diversas metalúrgicas, em épocas que o sindicalismo era bastante forte, tendo ele vivenciado diversas lutas e todos os desdobramentos trabalhistas do período. Mas o sonho do Sr. Vital sempre foi tocar sanfona. E foi só na sua aposentadoria que um empréstimo bancário fez seu sonho virar realidade. Hoje ele toca, toca por aí, pelo simples prazer de tocar. Já tocou inclusive com Chico César, sem sequer imaginar o tamanho da trajetória musical de seu parceiro.
O Sr. Vital se envolveu no assunto “Cartas e Estopô Balaio” quando ofereceu sua música como ferramenta para encorajar os transeuntes da estação de trem do Brás a escreverem cartas, por meio dos integrantes do coletivo. Ele, que estava em processo de alfabetização, aproveitou o ensejo e se permitiu escrever cartas para os amigos.  
Em cena, Sr. Vital rememora seu passado de metalúrgico, sua infância e as privações da velhice. Partindo da estação Brás, com destino a Rio Grande da Serra, a partir das janelas do trem é possível ver muitas paisagens, como a de fábricas abandonadas e trens antigos, que revelam a mobilidade urbana dos anos 60. Os rios lameados que cortam o trajeto remetem à sua meninice e provocam-no a pensar em sua cidade natal, Mariana, e seu Rio Doce. Nas inquietações sobre a velhice, o Sr. Vital questiona o confinamento dos idosos em asilos - privados de sua liberdade sobre essa escolha.

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Sobre o Coletivo Estopô Balaio

Formado em 2011 na cidade de São Paulo, o grupo conta, em sua maioria, com a participação de artistas migrantes. É por esta condição de vida que o coletivo se reuniu, no desejo de aferir um olhar sobre a prática artística encontrando como estrangeiros a distância necessária para enxergar o olhar de destino e dos seus desejos.
A distância geográfica das lembranças e paisagens dos integrantes levaram a uma tentativa inútil na busca por pertencimento à capital paulista. Era preciso reinventá-la para poder praticá-la. Na busca pelo lugar perdido da memória, eles seguiram para fora e à medida que se distanciavam de um tipo de cidade localizada em seu centro geográfico, foram se aproximando de outras cidades, de outros modos de vida e de novos compartilhamentos.
O cinturão periférico da cidade no seu vetor leste revelou um pedaço daquilo que tinha ficado para trás. Havia um Nordeste em São Paulo que estava escondido das grandes avenidas e dos prédios altos do centro paulistano. O Jardim Romano é um pedaço do cinturão periférico que guarda lembranças alijadas da construção histórica da cidade-império.
Os edifícios que arranham o céu ajudam a esconder e afastar um contingente populacional que não consegue se inserir nos apartamentos construídos em novos condomínios. A memória partilhada nos seis anos de residência artística no Jardim Romano são as de estrangeiros de um lugar distante e a destes pequenos deuses alagados de uma cidade submersa pelo esquecimento.
O encontro com o bairro Jardim Romano se deu num processo de identificação, pois a maioria de seus moradores são também migrantes nordestinos que fincaram suas histórias de vida nos rincões da capital paulista. O alagamento do Jardim Romano era real, oriundo da expansão desordenada da cidade, o do coletivo era simbólico, originário da distância e saudade daquilo que deixaram para trás.
O Estopô Balaio traçou no final de 2016 possibilidades para a expansão do seu território cultural. Para tanto, iniciou o projeto “Nos trilhos abertos de um leste migrante” que se estabelece no encontro e no afeto com outros bairros da zona leste de São Paulo.  O Jardim Romano segue com atividades constantes na sede do Coletivo, a Casa Balaio, com saraus, apresentações de espetáculos, oficinas de teatro, projeções de filmes, entre outras.

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