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O mestre da cena
Prestes a completar 84 anos, e tendo passado os 60 de carreira, o senhor de desalinhados cabelos brancos ainda mantém a disciplina. A frente do CPT há 31 anos, Antunes Filho vive apaixonadamente o teatro e o ofício de ensinar. Agora, acaba de estrear "Nossa Cidade", em cartaz no Sesc Consolação
Ele chegou ao Sesc em 1982, trazendo na bagagem as experiências de grandes êxitos, de ter trabalhado com grandes diretores e de comandar o Grupo de Teatro Macunaíma. Seria o responsável por um novo projeto: o CPT – Centro de Pesquisa Teatral (no Sesc Consolação), que segue em plena atividade, com as pesquisas estéticas do Grupo Macunaíma e suas ações no campo da formação de atores, de técnicos e de outros criadores cênicos.
Prestes a completar 84 anos, e tendo passado os 60 de carreira, o senhor de ralos e desalinhados cabelos brancos ainda mantém a disciplina. Os ensaios começam pontualmente na hora marcada e as pausas para o cafezinho são raras. Autodidata, não frequentou uma escola de teatro, mas ensina como poucos as técnicas de corpo e voz inerentes aos grandes atores. Apaixonado pelo oficio de ensinar, o professor inclui a plateia na sala de aula: seus espetáculos precisam deixar algum legado.
Nos 31 anos de CPT, dirigiu dezenas de espetáculos. Nelson, Shakespeare, Guimarães, Suassuna foram levados ao palco ao seu jeito. Puxou a orelha, orientou, formou atores que ainda o agradecem por suas cobranças. Procurou o novo, manter-se contemporâneo. Agora reconstrói o clássico do escritor norteamericano Thorton Wilder, Nossa Cidade. Feliz com a recepção do público e da crítica, recebeu a EOnline na Sala de Ensaios do CPT, acompanhado do ator Leonardo Ventura, que interpreta o Diretor de Cena. Acompanhe a conversa com Antunes Filho.
EOnline: Durante o longo tempo de preparação, os ensaios foram fechados, houve essa preocupação. Após a estreia, a repercussão foi muito positiva. Existia um sentimento de confiança ou ainda havia uma ansiedade de estrear e ver como o público receberia?
Antunes Filho: Em todas as peças que a gente faz, são mais conceitos que estão em jogo. Nesta peça eu deixei transbordar mais a humanidade, ela tem muito apelo humano. Eu tenho mais certeza no sucesso – não sei se de crítica – mas o sucesso de público desta peça. E também, claro que eu queria o sucesso de crítica, como teve, a crítica foi excelente. Foi como a gente esperava ou até além. Mas você vê a plateia toda no final do espetáculo, abalada, os sentimentos expostos, e aí você vê que é peça para muitos anos em cartaz. A peça é um sucesso sempre, em todos os lugares do mundo, mesmo mal feita. E como nós fizemos bem feita, tem um apelo que é extraordinário. Além de uma série de coisas que a gente conceitualmente tenta colocar também. Tem essa humanidade e uma série de coisas que vão com ela.
EOnline: É um desafio a mais trabalhar com uma peça que já foi montada tantas vezes? Houve uma expectativa por fazer diferente?
A.F.: É uma das peças mais montadas no mundo, e não é só nos Estados Unidos não, no mundo, das mais montadas depois de Shakespeare. Eu não quis fazer diferente, aconteceu a necessidade de que a peça em si, apesar de ser interessante, precisava de uma inovação, precisava de certo estímulo, de certa reciclagem. Ela foi reciclada - é moda, né? (brinca). E ela é feita, por isso a gente chama de reconstrução. Porque não é uma desconstrução, derrubar, criticar a peça só e dialogar com o autor. Não, é isso e mais alguma coisa que a gente coloca dentro de uma perspectiva que ele, autor, não poderia ter.
EOnline: Há muitos comentários sobre o programa, pelo conteúdo, pela quantidade de informações que passa, passa a sensação de que a reflexão não termina no final do espetáculo. Ele foi construído junto com o espetáculo, nos ensaios?
A.F.: Todas as coisas colocadas no programa são coisas mais ou menos já passadas por aqui, discutidas de uma maneira ou de outra, dentro do CPT, dentro da sala de ensaio. Primeiro, o CPT sempre que estreia não é só aquilo, a estreia não é somente a peça. Tem coisas que estão ali, fervendo junto com a peça. E o programa foi feito a posteriori porque tinha muito material. Foi consequente de um tempo de ensaio muito grande, a gente foi discutindo o autor, ideias, e aí se fez o programa, baseado nos ensaios da peça.
EOnline: E se pensou no público realmente levar para casa e saber mais afundo?
A.F.: Claro. Nós queremos, nós lutamos. O que é contemporâneo? A nossa batalha aqui no CPT é saber o que é contemporâneo. E também quero que o público comece a se perguntar o que é contemporâneo. Porque moda é uma coisa, ser contemporâneo é outra coisa. Modismo é um troço, a gente não tem novidade, a gente tem coisas contemporâneas a serem ditas. E dentro dessa sociedade de consumo que nós vivemos, que podemos discutir, e confundir o que é novo com o que é novidade. Novo é uma coisa, novidade é outra coisa. E é isso que tentamos fazer através do programa: ter pessoas solidárias à nossa proposta e ir para aquilo que é novo.
EOnline: “Lamartine Babo” reestreou, já está em cartaz há quatro anos. Ter dois espetáculos diferentes em cartaz é como “ler dois livros ao mesmo tempo”, contando duas histórias para as pessoas?
A.F.: ‘Lamartine’ é bem de raiz, a gente não discute, é Brasil; pode ficar a vida toda em cartaz. Essas peças que ficam em cartaz tipo na França, ficam 20 anos em cartaz, porque é bem de raiz, é tua respiração. É diferente da ‘Nossa Cidade’, além da humanidade tem uma reflexão. ‘Lamartine’ não, você está em casa, na tua infância, na tua juventude, na sua velhice, tá sempre com, é Brasil, é teu solo, ‘Lamartine’ é solo.
EOnline: Estão abertas as inscrições para o curso de método de ator para o ano que vem. Do que você mais gosta no CPTzinho?
A.F.: [após uma pausa] O que eu mais gosto no CPTzinho é a missão. Lá você pode divulgar a que você veio. É a preparação do artista, é uma visão criativa, é o aluno criativo que nós temos, mais informado, tem um lado mais artístico.
EOnline: E você, Leonardo, do que mais gosta?
Leonardo Ventura: Eu gosto de tudo, mas eu acho que, principalmente, deste estado constante de pesquisa. Existem princípios, mas eles estão sempre em mutação, em desenvolvimento, em reflexão. Nunca são falácias, vamos dizer assim, eles nunca são pedras. Eu acho que este estado de pesquisa que ele coloca o tempo todo se alimentando de filosofia, de arte, de cinema, de alguma maneira gerando possibilidades artísticas. E claro, [Antunes Filho] é um mestre, pra mim ele é um dos melhores diretores do mundo, não só do Brasil. Ele é um homem que dedicou a sua vida a isso, e principalmente do desenvolvimento do trabalho do ator, e dessa pedagogia, porque ele é um pedagogo, ele é um mestre.
Estar do lado dele também é uma sorte muito grande, você poder respirar isso diariamente. É isso de você poder aprender o tempo todo, questionando, se questionando e de alguma maneira formando a sua identidade artística. Eu acho que o CPT traz isso, muito fortemente. E também, por outro lado, é um lugar que funciona como uma escolha pra mim também, porque existe um sistema, um método muito claro de voz e de corpo aqui que e não é de resultado formal, ele traz um diálogo muito forte com a fisiologia de cada um, de cada ator. É como se eu tivesse que descobrir pela minha respiração e pelo meu material fisiológico qual é meu fluxo orgânico. Eu tenho muita comunhão com esse tipo de pensamento, que eu não vou fazer uma forma que eu não vou repetir, o que acho legítimo também, mas eu me encontro nesse momento da minha vida em comunhão com esse pensamento, que tem relação com o fluxo da natureza; o Antunes fala muito sobre isso: esse fisiológico, essa organicidade. A relação disso com o fluxo que tá aí na natureza.
EOnline: Tem algo das primeiras lições que recebeu, quando estava começando, que você ainda passa para quem trabalha com você?
A.F.: O CPTzinho foi criado a partir da minha experiência particular, de vida, etc. e tal. E no meu tempo existia a Escola de Arte Dramática, em São Paulo... que bom, eu não fiz. Foi-me pedido um propósito que eu acho fundamental na minha vida. E é o que eu tenho difundir no espetáculo; quando eu faço um espetáculo, quer dizer alguma coisa, a que vim. E o CPTzinho é o prolongamento ou os espetáculos são o prolongamento do CPTzinho. É uma coisa só.
Hoje em dia não se discute mais como antigamente, e as pessoas falavam e até podia achar ridículo ‘teatro é a minha vida’, ou ‘amo teatro’. Hoje ninguém mais fala isso. Hoje as pessoas falam que querem logo ter uma oportunidade na televisão, e depois de trabalhar na televisão pensam em ‘o que eu vou comprar?’, as viagens, viagens para Europa. Então, no primeiro momento ele quer ser conhecido, no segundo momento ele quer ter dinheiro, no nosso tempo era difícil, a gente não tinha essa preocupação. Podia calhar uma viagem, um prêmio Molière, mas a mira era uma coisa só: era teatro, morrer teatro. Eu faço parte dessa geração de morrer teatro, e hoje não existe mais essa geração suicida em teatro. Então tudo o que eu faço, eu faço com extremo e ilimitado amor.
EOnline: Você falou de todas essas mudanças de valores, você mudou alguma convicção sobre teatro?
A.F.: Mas eu mudei... hum... [pausa] não mudei não. Eu acho que a minha convicção que, por exemplo, eu não estudei voz, eu não estudei corpo e eu dou aula de corpo, eu dou aula de voz, eu precisei aprender sozinho, não tinha professores. Eu tive os mestres do TBC, Ziembinski, [Adolfo] Celi... eu fui assistente de direção deles todos. Mas eles não ensinavam, eles faziam o espetáculo, eles faziam o espetáculo. Sempre os fazendo, não os via ensinando nada. Aqui não, o CPTzinho é ensinar.
EOnline: O Teatro Anchieta é especial para você?
A.F.: Não sei se a Sala de Ensaio [do CPT] é a continuação do Anchieta ou se o Anchieta é a continuação da Sala de Ensaio. É o melhor teatro de São Paulo! É isso, o melhor!
o que: | Nossa Cidade |
quando: |
até 8/dezembro |
onde: |