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Veríssimo de A a Z: 50 anos de histórias (J L M N)
A B C D E F G H I O P Q R S T U V W X Z
Poesia numa hora dessas?, nos pergunta um dos bordões que se tornaram marca registrada de Luis Fernando Verissimo. A frase é um alerta para a gravidade da situação, qualquer situação (lembra um de seus personagens mais saborosos e atuais: Dudu, o alarmista), e para o deslocamento da poesia nos dias de hoje.
Mas é também uma afirmação da poesia (e do humor) a qualquer momento, em especial do tipo muito peculiar de poesia que Verissimo nos oferece há cinco décadas, mesmo quando escreve em prosa, mesmo quando desenha, faz piadas para um roteiro de TV ou sopra o seu sax.
Para celebrar cinco décadas desse humor fino que, decantado em colunas de jornal, deu corpo a uma obra sólida e popular, convidamos o jornalista Paulo Werneck para repassar neste abecedário a enorme crônica da vida brasileira que é a obra de Verissimo.
Uma obra que espelha o país em cada linha e cada entrelinha, e nunca nos deixa sozinhos, sempre fazendo rir e pensar, quase sempre ao mesmo tempo.
#VerissimoDeAaZ
J L M N
Ao lado dos quadrinhos e do romance policial, o jazz foi uma das paixões adquiridas no segundo período em que Verissimo morou com a família nos Estados Unidos, entre 1953 e 1956. Naquela época, a música de Charlie Parker, Miles Davis e outros bambas fazia parte da educação sentimental de qualquer jovem urbano, fosse na Europa, no Brasil ou nos Estados Unidos. A diferença é que Verissimo via (e ouvia) esses caras tocarem ao vivo.
“Morávamos em Washington – naquela época a capital do plácido reino de Eisenhower – mas, sempre que possível, eu fugia para Nova York”, lembra ele. “Era só emendar feriado com fim de semana e eu fazia minha mala, pedia um adiantamento da mesada para o velho e me mandava. Cinco horas de ônibus. Em Nova York, depositava a escova de dente no quarto mais barato de um hotel ‘de segunda mas limpo’ e saía para a rua. Passava os três dias cruzando e recruzando a cidade, entrando e saindo de galerias, livrarias e cinemas, movido a milk shake e vagas pretensões intelectuais. E sempre acabava a noite em algum night club, geralmente o Birdland, ouvindo jazz. Tinha menos de 18 anos mas não lembro de jamais ter sido barrado, talvez devido à barba latina, já cerrada, que me distinguia dos adolescentes nativos”.
A paixão seria intensamente alimentada pela vida inteira, mas tudo tem um limite. Verissimo afirma que deixou de acompanhar Miles Davis quando o gênio de Kind of blue começou a usar sandálias.
Cheio de talentos -- para o desenho, para a frase –, mas sem uma vocação profissional até os trinta e poucos, Verissimo chegou às páginas dos jornais ao mesmo tempo que o homem se preparava para pisar na Lua, em fins dos anos 1960. Aquele momento vertiginoso da história que lhe permitiu comentar fatos históricos como a corrida espacial – e mostraram ao leitor um humor afiado, com a ironia melancólica que marcaria seus grandes escritos.
“Não há nada que um homem possa fazer no espaço que uma máquina não possa fazer melhor, a não ser morrer”, escreveu ele às vésperas do primeiro passo humano na superfície lunar, em 1969. “Mas é justamente essa vulnerabilidade, esse risco, que dá sentido à aventura. A morte dos astronautas seria em nome de nada muito importante, de um golpe frustrado de relações públicas em escala cósmica, mas seria um absurdo compreensível e perdoável. E recuperável”.
O jazz não é só uma paixão para os ouvidos de Verissimo: é também para os pulmões. Na adolescência, Miles Davis o fez sonhar em tocar trumpete – mas na escola não havia nenhum para que ele pudesse aprender, o que o levou a se iniciar no sax alto, instrumento que nunca mais largou. Começava uma esforçada carreira musical que até hoje volta e meia dá seus sopros vitais.
Mas não seria Luis Fernando Verissimo se o humor não estivesse presente na experiência – e por isso o cenário das eventuais apresentações do saxocronista tem menos a ver com os graves e enfumaçados clubs de jazz e mais com o escracho multicolorido dos espetáculos de humor brasileiros.
O cronista entrou para a debochada Muda Brasil Tancredo Jazz Band, arregimentada pelos irmãos gêmeos cartunistas Paulo e Chico Caruso, e composta ainda por Fortuna, Reinaldo e outros bambas dos pincéis que aproveitavam o otimismo da Nova República para dar risada e arranhar os metais em turnês pelo país.
Reza a lenda que, conforme o roteiro do show, numa dessas apresentações Verissimo deveria entrar no palco e dar as primeiras notas ainda no escuro, para que então a iluminação mostrasse todo o palco e a banda atrás dele.
Mas Verissimo, pouco acostumado com o escuro da ribalta, errou a marcação e despencou estrondosamente de cima do palco. Quando luz se acendeu, a plateia incrédula viu o escritor caído, gemendo e pedindo ajuda. Só podia ser mesmo uma piada das boas!
A gargalhada estourou, e ganhou novo ímpeto quando um dos integrantes da banda entrou em cena, como nos bons humorísticos, perguntando se haveria um médico na plateia. Estaria Verissimo, um tímido notório, mostrando desconhecidos dotes de ator?
Naquela noite, não havia margem para dúvida – sim, era isso mesmo. E o artista multitalentos saiu carregado de maca, sem tocar o sax, aplaudido de pé por uma plateia em delírio, que urrava e pedia bis.
(Verissimo não voltou – até por que o preço da performance foi uma fratura em um dos joelhos. Há casos em que é sábio recusar o pedido da plateia por mais um.)
No meu tempo (aí pela Renascença) namorar era como uma lenta conquista de territórios hostis. Avançávamos no desconhecido como desbravadores do Novo Mundo. Centímetro a centímetro, mentira a mentira. Em nenhuma oura atividade humana, salvo, talvez, a diplomacia, se mentia tanto como num namoro do meu tempo. E o objetivo era o mesmo da diplomacia, conseguir com palavras o que não se conseguia com a força. Negociava-se cada palmo.