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Quem canta seus males espanta
Por José Calixto*
A última transformação da reprodução técnica da música colocou a ampla maioria das ondas sonoras consumidas em nossa sociedade numa verdadeira nuvem. Se perguntamos a um jovem o que é ouvir música, a resposta mais comum é “na Internet, Youtube, Spotify” e demais aplicativos de streamming. A escuta musical na nossa sociedade é cada vez mais individual, fechada no fone de ouvido, compartilhada apenas via rede social. A música ao vivo está cada vez mais apartada do cotidiano. Os desencontros entre humores na sociedade têm aqui talvez um de seus reflexos. A música sempre serviu para gerar a sensação de comunidade, de união, acalmar, curar, tratar o espírito da espécie humana. Foi lembrando um pouco dessa função da música que o grupo britânico Troupe nos presenteou com o espetáculo de teatro musical O mau humor.
Num clima descontraído, repleto de interações, o espetáculo contava a história de um grupo de trabalhadoras, muito organizadas, muito disciplinadas e sempre bem humoradas, cuja função era processar as ondas sonoras do mundo usando um receptor: a ressonância de um copo de cristal. Mas um dia algo dá errado e a principal trabalhadora receptora acaba por ficar totalmente mau humorada. Daí em diante, as colegas farão de tudo para aplacar o mau humor da amiga, que agora se mostra ranzinza e violenta. E para isso, nada melhor que boa música e foi o que não faltou neste concerto que deleita crianças, mas também é atrativo para os adultos.
Com repertório que vai dos contemporâneos John Cage e Meredith Monk, passando por Ravel, Villa Lobos, Bach até o inglês John Downland, as trabalhadoras conseguiram amaciar o coração da amiga mau humorada até que ela se curou completamente desta bile turva que a atingia. Com grande destreza, as atrizes intérpretes, entre um riso e outro, entre brincadeiras de percussão corporal ou canto com a plateia, nos presentearam com boas interpretações de obras clássicas dos compositores escolhidos.
A qualidade de um trabalho didático, lúdico e desafiador como esse se mede pelo modo como reagem as crianças na plateia. Apesar de um leve e comum desconforto do público adulto com o convite à interação, as crianças embarcaram na fantasia do espetáculo participando das brincadeiras e criando as sonoridades propostas pelas atrizes. Com delicadeza e sensibilidade, elas souberam cativar a confiança de todo o público, que teve a oportunidade de fazer música junto com a Troupe e apreciar sonoridades ruidosas ou experimentais não tão familiares aos ouvidos de hoje em dia.
Depois do público cantar, dançar, rir e principalmente ouvir boa música, com certeza todos saíram mais leves, com o humor bem tratado, saciados pela experiência coletiva e profunda que a música é capaz de proporcionar para toda a família.
*José Calixto é músico, compositor e educador. É mestre em Filosofia na FFLCH-USP e Doutorando em Música na ECA-USP.
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