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Afroraízes: O som da cultura negra brasileira
*Por Kelly Adriano
Há apenas um Atlântico entre o continente africano e o Brasil, alimentado por mares de possibilidades, trocas, confluências, proximidades, sensibilidades, saberes e sabores, espalhados e espelhados nessa diáspora africana. Essa imensidão que aproxima histórias, memórias e ancestralidades, aparece como um desafio complexo e delicioso, no exercício de apresentar narrativas possíveis a partir da música, esse importante eixo simbólico que promove conexões entre tempos de ontem, hoje e amanhã.
Entre todas as formas de manifestações artísticas, a música aparece como fundante e fundamental na minha vida, o que torna o desafio da escolha ainda maior, pois a música impacta minha trajetória desde a infância até a vida adulta. Pelo lado paterno, sou bisneta, neta e filha de músicos. Pelo lado materno, desde pequena fui levada a shows de diversos artistas da música popular brasileira, e também aos ensaios da escola de samba Camisa Verde e Branco na Barra Funda, bairro paulistano em que eu nasci, e em que está enterrado o umbigo do samba urbano paulista.
Resumindo, a música me formou e me forma diariamente, desde a música de concerto, bossa nova e jazz, nessa ordem cronológica das ações dos músicos da família, até as diversas vertentes do samba, passando pelas rodas no quintal da casa da avó, o samba canção e o samba enredo. Na adolescência, ainda entram as sonoridades do samba rock, reggae, soul music e rap. Assim, a música é a arte que pulsa e marca todos os meus caminhos, da sensibilidade à crítica, influenciando as diferentes opções estéticas, éticas, de estudo, pesquisa, sociais, políticas e profissionais.
Para delinear o roteiro de escolhas, veio muito forte a vontade de valorizar as palavras, as letras, o cancioneiro de dizeres sonoros de um pensar que propõe escutas para um Brasil recortado de São Paulos, Rios de Janeiro, Minas Gerais e Bahias, veias territoriais que desestruturam fronteiras, invadem minha história e me constituem como pessoa.
Última nação das Américas a abolir a escravidão, o Brasil é o segundo país do mundo em quantidade de população negra, só perdendo para um país do continente africano, a Nigéria. Essa característica aponta as negritudes como estruturantes e estruturais em todos os âmbitos desse país que busca invisibilizar a força de sua afrocentralidade, não se reconhecendo e se negando, escamoteando conflitos em torno de cordialidades tolerantes e miscigenações, mas sem respeito às diferenças e apostando na manutenção das desigualdades de lugares sociais definidos.
Esse fato fez com que os movimentos sociais negros manifestassem, há anos, a necessidade de um dia para destacar a consciência negra, para buscar a valorização de uma representatividade positiva que rompesse com a figura de uma escravidão naturalizada e passiva. Zumbi dos Palmares, assassinado no dia 20 de novembro de 1695, uma das grandes lideranças de um dos diversos quilombos que existiram no Brasil durante a escravidão, e que existem até hoje no pós-abolição, como espaços de resistência, somado a diversos levantes, revoltas e revoluções, foi e é a proposta simbólica de um novo olhar para a história, com a perspectiva de impactar em um cotidiano crítico, de orgulho, referências e horizontes de transformações possíveis.
As músicas escolhidas são permeadas pelo trânsito entre emoções provocativas e invocativas de diálogos e escutas, apontando para resistências, reexistências e sensibilidades, diante de processos de silenciamentos e apagamentos. São tecnologias de sobrevivência e combate às violências e procuram inaugurar e enaltecer caminhos de protagonismos e estabelecimento de sentidos. As sonoridades passam por tradições, permanências e reinvenções afrobrasileiras, impregnadas de corporeidades poéticas e políticas, com destaque para os sotaques do samba, esse verdadeiro terreiro cultural de vivências e sociabilidades, designado como um dos símbolos da identidade nacional por políticos e pensadores na década de 30, mas, na verdade, vivida e experienciada por diferentes africanos escravizados e seus descendentes, de diferentes maneiras, como possibilidade de vida, liberdade, vínculo de dignidade e conexão com a história.
As linhas que entremeiam essa costura são as diferentes homenagens à Zumbi dos Palmares, líder quilombola, filho do orixá Ogun, senhor das guerras e dos caminhos na tradição das religiões afrobrasileiras, entre outras personalidades negras muitas vezes pouco conhecidas no campo das artes e da intelectualidade como Grande Otelo, Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, Ruth de Souza, Dandara, Clóvis Moura, Luiza Bairros, Luiz Gama, Lima Barreto, Pixinguinha, entre outras e outros.
Por fim, navegando pelos sotaques de Minas, Rio, Bahia e São Paulo, o caminho termina com a voz que marca a pele e corta na carne, da inigualável e multifacetada Elza Soares, repactuando sentidos de pertencimento compartilhado, elo crítico e sensível que transforma visões de submissão em orgulho, reconhecimento, resistência e representatividade, em torno de raízes culturais comuns não somente à população negra, mas a todas e todos os brasileiros e brasileiras.
*Kelly Adriano de Oliveira é mulher, negra e paulistana. Doutora em Ciências Sociais e gerente adjunta da Gerência de Ação Cultural do Sesc SP.
Ouça todos esses grandes nomes da música afro-brasileira na playlist Afroraízes.
Você pode escolher onde escutar - a mesma playlist está disponível no Spotify e no Deezer.