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As vozes no tempo suspenso

Grupo Tallis Scholars - Foto: Nick Rutter
Grupo Tallis Scholars - Foto: Nick Rutter

Por Ligiana Costa*

Dez cantores e um regente vestidos sobriamente de preto, nada mais no palco. Neste concerto há lugar para uma única estrela: a voz, aliás, as vozes em suas máximas potências de criação, a polifonia renascentista, a contemporaneidade. Consagrado como um dos grupos mais precisos e prolíficos na interpretação de obras polifônicas vocais da renascença, o Tallis Scholars foi criado em 1973 (e vem agora ao Brasil pela primeira vez!) por Peter Philips e é ele que segue à frente do grupo, regendo peças do autor inglês que deu nome ao grupo (Thomas Tallis), Palestrina, Victoria, Allegri, Mouton, Pretorius e dois nomes fundamentais do repertório vocal contemporâneo: o inglês (que curiosamente é quase homônimo de um grande compositor renascentista) John Tavener e o estoniano Arvo Pårt.

Algo emociona já nas primeiras notas: a capacidade do ensemble de realizar algo que eu chamaria de “necessário apagamento do ego”. As vozes, quando cantando uma mesma linha melódica, soam como uma, um único timbre, nenhuma voz se destaca simplesmente porque assim deve ser. É esta clareza de timbre que dá à escuta contrapontística sua máxima percepção, como no moteto a 8 vozes Laudate Pueri Dominum do “príncipe da música” Palestrina.

O repertório escolhido pelo grupo para esta sequência de concertos no Brasil aborda grandes hits do repertório polifônico do século XVI com o claro intento de trazer um pouco de cada escola da polifonia, além das peças contemporâneas (esta prática de colocar lado a lado autores antigos e contemporâneos é cada vez mais tendência no universo da música antiga, para nosso deleite). 

Ao chegar no Sesc pouco antes do concerto, me surpreendo ao ver os cantores do grupo em torno a uma mesa jogando baralho. Me aproximo e pergunto sem cerimônia: “Há para vocês uma distinção vocal ao cantar as peças renascentistas e as contemporâneas?”, uma das sopranos diz: “Cantamos essas músicas contemporâneas exatamente porque podemos usar a mesma colocação vocal, a ausência de vibratos, e a timbragem que usamos nas renascentistas”. Confirmo esta afirmação ao vê-los cantar as duas peças (talvez as duas mais famosas) de John Taverner. Impossível não lembrar da cena do filme "A Grande Beleza" com The Lamb e do triste velório de princesa Diana com Song for Athene (esta peça tem uma constante nota pedal na voz do baixo, a moça ao meu lado chega a comentar “não respiram nunca?”. Eis a magia da timbragem entre dois cantores!).

Certamente a peça que maior comoção causou na noite foi o Miserere de Allegri. Peça renascentista mais gravada da história, este salmo foi cantado na Capela Sistina na semana santa e somente nesta ocasião desde sua criação em 1639. O Vaticano, para preservar sua santa raridade, excomungaria quem desobedecesse a ordem que foi, para nossa sorte, revogada. Para adaptar esta peça ao espaço (idealmente seria cantada numa catedral e os dois coros se posicionariam em lugares distintos), o grupo colocou um dos coros nas coxias. A sala, a principio pouco adaptada ao repertório, se transfigurou por alguns mágicos instantes em uma catedral. Ouvir o famoso dó agudo da soprano sem vê-la fez com que a experiência fosse ainda mais tocante. 

 


*Ligiana Costa é cantora, compositora e musicóloga com especialidade em ópera italiana do século XVII pelas universidades de Tours e Milão. Seu mais recente livro, o Corego, publicado pela Edusp, venceu o prêmio Flaiano (Itália) de 2018.
 

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