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Dormir é para os fracos
Catorze constatações a partir da paternidade: uma crônica de autoajuda para os que pretendem procriar — ou talvez, mais ainda, para os que não pretendem.
1) Antes de ter filhos, eu era um vagabundo que ficava reclamando, sem razão, de não ter tempo pra nada.
2) Depois de ter filhos, eu sou um pobre-diabo que fica reclamando, com razão, de não ter tempo pra nada. (Se hoje me dessem três meses com o tempo livre que eu tinha há dois anos, eu conseguiria aprender esperanto, escrever Anna Kariênina e treinar pro Ironman).
3) Se eu tivesse um minuto pra pensar a respeito da paternidade, provavelmente me daria conta de que estou vivendo um dos momentos mais gloriosos da minha breve passagem sobre a terra: estou acompanhando o desabrochar de pequenos seres humanos feitos com metade dos meus genes e metade dos genes da mulher amada.
4) Se eu não tenho um minuto pra pensar a respeito da paternidade, é porque estou exercendo a paternidade, o que significa, entre outras coisas: tentar evitar que um desses pequenos seres humanos ponha na boca a mão que acabou de meter na fralda suja de cocô; tentar convencer o outro pequeno ser humano de que não dá pra vermos o caranguejo agora, pois o caranguejo mora em Ubatuba, nós moramos em São Paulo — e são duas e trinta e sete da manhã. Tais atividades, convenhamos, deixam pouco espaço pra contemplação.
5) Felizmente, devido a uma simpática trapaça cognitiva, pregada pela seleção natural, o cocô dos nossos filhos nos parece muitíssimo menos repulsivo do que os cocôs do resto da humanidade. (Infelizmente, não a ponto de nos esquecermos que aquilo na fralda, nas costas, nas pernas ou na mão do pequeno ser humano continua sendo cocô.)
6) Depois de ter filhos, os minutos destinados ao próprio cocô se transformam num raro e beatífico momento de paz, pelo qual os jovens pais anseiam como um monge por sua meditação.
7) (Não é incomum pais neófitos simularem dores de barriga pra poderem se trancar no banheiro várias vezes ao dia e: ler rótulo de creme hidratante, dar “like” na foto do gato da prima, fitar os azulejos num torpor quase místico).
8) Ninando um bebê, me descubro capaz de executar funções com partes do meu corpo que, até ter filhos, julgava completamente ineptas. Consigo abrir e fechar uma maçaneta com o cotovelo — sem fazer barulho. Consigo regular o dimmer com a bunda. Consigo abrir e fechar o mosquiteiro com o nariz. Coço o queixo na estante de livros, as costas no armário embutido, a testa no prato da samambaia. Se tiver uma única mão livre, posso fazer o solo de bateria do John Bonham em “Moby Dick”, de trás pra frente — só não faço porque iria acordar o bebê.
9) Antes de ter filhos, eu achava o fim da picada pais que trabalhavam com: babá, biscoito recheado, televisão no carro.
10) Hoje, procuro uma folguista pro fim de semana (pago metade do meu salário e dou meu carro como bonificação), negocio “Só mais uma, já é o terceiro pacote!” e imploro “Não chora! Olha o filme do Senhor Batata! A Menina Moleca! A Galinha Pintadinha!”.
11) Galinha Pintadinha é a imagem da Besta.
12) Galinha Pintadinha é uma bênção divina.
13) Dormir é para os fracos.
14) Eu sou fraco.
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A crônica "Dormir é Para os Fracos" de Antonio Prata foi publicada na Folha de São Paulo em 2015 e no livro "Trinta e Poucos", Cia. das Letras, em 2016.
Sobre o autor
Antonio Prata nasceu em São Paulo em 1977. Tem doze livros publicados, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (Editora 34, 2010) e "Nu, de Botas" (Cia das letras, 2013). Em 2013, foi selecionado pela revista Granta como um dos 20 melhores escritores brasileiros com menos de 40 anos. Escreve crônicas aos domingos no jornal Folha de S. Paulo e trabalha como roteirista na Rede Globo, onde participou da equipe das novelas Bang Bang (2006) e Avenida Brasil (2012), A Regra do Jogo (2015) e das séries Os Experientes (2016) e Sob Pressão (2017). Atualmente, desenvolve para a Globo sua primeira série como autor titular, Pais de Primeira, comédia sobre as mudanças que o nascimento do primeiro filho traz à vida de um casal. A série foi criada e é escrita com Chico Mattoso, Thiago Dottori, Bruna Paixão e Tati Bernardi. E, mais importante de tudo, para esta conversa, Antonio é pai da Olivia, de cinco anos e do Daniel, de três.