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Reforma trabalhista
Foto: Gabriel Cabral
Uma mudança possível
NEY PRADO
O jurista Ney Prado, ex-juiz togado do Tribunal Regional do Trabalho, esteve presente na reunião de 10 de abril de 2003 do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde fez uma palestra com o tema "A Reforma Trabalhista Possível". Publicamos abaixo o texto de sua exposição. O debate que a seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.
A reforma trabalhista, objeto temático desta palestra, está centrada na descrição crítica do atual modelo laboral brasileiro, abrangendo seus princípios fundantes, sua origem, estrutura e fins, cuja característica nuclear está na exagerada confiança na capacidade do Estado de legislar, compor interesses e dirimir conflitos nas relações de trabalho.
O resultado dessa análise volta a equacionar uma resposta a perguntas cruciais sobre a validade e o futuro da reforma trabalhista no Brasil, bem como sobre a existência e a dimensão da crise que compromete o direito do trabalho.
Para os que estão preocupados com a reforma, torna-se irrelevante saber se no passado a legislação trabalhista atendeu, de alguma forma, os reclamos dos atores sociais, da sociedade e do governo. O fulcro da questão é saber se atualmente ela preenche, num contexto democrático, pluralista e globalizado, as suas verdadeiras finalidades. Torna-se importante, assim, estudar os vícios de origem, forma, conteúdo e funcionalidade ainda presentes em nosso atual modelo laboral, por meio de análises comparativas entre as condições objetivas e subjetivas existentes na era Vargas e as do atual momento da nossa história.
Apresentada como a legislação do trabalho mais avançada na época, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) representava a culminância da política nacional populista de Getúlio Vargas. Foi recebida com ufanismo pelas elites políticas e ungida pela confiança popular com fundamento na mística do dirigismo estatal e, em conseqüência, na excelência do protecionismo legal nas relações entre capital e trabalho.
Do ponto de vista formal, gerou durante muito tempo um ufanismo até certo ponto justificável. Ninguém denega a existência de uma sistemática bem construída, institutos bem definidos, uma processualística simples e um sistema judiciário aparelhado para aplicá-la. Enfim, aí estão todos os elementos necessários à existência de uma proteção avançada e modelar ao trabalhador.
Se isso é verdade, então o que está faltando? Por que, não obstante seu alto nível ético, nossa legislação do trabalho vem sendo objeto de constantes críticas negativas de quase todos os setores da sociedade brasileira?
A razão é simples: a legislação trabalhista brasileira se situa na contramão da história. Sua inadequação é um dado incontestável, diante da velocidade com que o mundo mudou. Não só no plano externo, como no interno; não só no plano dos fatos, como no das idéias.
Nos últimos 60 anos ocorreram no mundo e na sociedade brasileira profundas transformações políticas, econômicas, sociais e jurídicas, com manifestas implicações nas relações de trabalho. Mas, salvo pequenas alterações, nosso sistema trabalhista se mantém estruturalmente o mesmo, ou seja, exageradamente intervencionista, corporativista, reconhecidamente anacrônico e totalmente sufocado pelas novas relações de parceria entre capital e trabalho e pela postura não interventiva que se exige do Estado.
Para entender essas transformações, impõe-se considerar integralmente esse complexo causal onde se desenvolveu essa doutrina de ação política, que reconhece e propugna o direito e o dever do Estado de interferir nas atividades econômicas para impor uma ordem coacta, presumidamente melhor que a espontânea.
Nesta palestra, o intervencionismo assume o status de critério geral, um divisor de águas no que tange às relações trabalhistas.
No Brasil a doutrina do intervencionismo se materializou pela ação protagônica do Estado como fonte heterônoma de direito impondo um sistema de valores, princípios, instituições e técnicas jurídicas, que conformaram as relações capital-trabalho.
No nível legislativo, a CLT é a pauta do direito do trabalho. Ela contém os princípios e a normatividade básica organizados pelo intervencionismo laboral, no meio da constelação de leis que se referem à questão.
A expressão executiva é muito vasta. Envolve, no nível mais elevado, as políticas públicas, mas é na esfera administrativa que o Poder Executivo atua no dia-a-dia, por meio de ações regulamentares, fiscalizatórias e de sanção.
A expressão judiciária do Estado age por intermédio dos órgãos especializados da Justiça do Trabalho. Cabe-lhes julgar conflitos trabalhistas, individuais ou coletivos, conciliá-los sempre que possível e, no caso dos dissídios coletivos, exercer o poder regulamentar específico.
O intervencionismo laboral é exercido em variados modos de relacionamento e em diversos níveis.
Na autonomia individual se manifesta na constituição, na vigência e na desconstituição do contrato de trabalho. Utiliza-se de princípios e preceitos que substituem tanto a vontade de empregados como a de empregadores. Na autonomia sindical se expressa por princípios e regras impostos pelo Estado para a filiação, organização, atuação e extinção dos sindicatos. Na autonomia coletiva atua nos procedimentos de negociação e contratação entre as categorias laborais coletivas. Na autotutela aparece na definição jurídica das greves e de seus limites. O intervencionismo manifesta-se, por fim, na solução de conflitos, pelas competências judiciárias que são expressadas constitucionalmente para dirimi-los em nome do Estado. Essas cinco categorias conformam o desdobrar do método que será seguido pela minha exposição e análise crítica do modelo varguista de relações de trabalho.
A justificativa de uma reforma do atual sistema laboral intervencionista só pode partir da constatação inequívoca de que todos os seus subsistemas entraram em quádrupla crise: a de legalidade, a de legitimidade, a de licitude e a de funcionalidade.
A crise de legalidade, atrelada a inegável crise do Estado, advém da superação das concepções monistas jurisdicistas tradicionalmente dominantes, pela superação decorrente das postulações e das idéias individualistas e pluralistas.
A crise de legitimidade deriva do manifesto descompasso entre a sua origem intervencionista e corporativista, com as exigências impostas pela democracia e pelo pluralismo vigentes no Brasil.
A crise da licitude está fundada na crescente perda de confiabilidade do aparato burocrático trabalhista, decorrente da prática de fisiologismo, corporativismo, desperdício de recursos, nepotismo e até mesmo corrupção por parte de alguns de seus agentes, consoante tem noticiado reiteradamente a mídia.
Por último, a crise de funcionalidade resulta da perda de capacidade técnica do sistema para atender às reais finalidades a que teoricamente se propõe.
As causas dessa crise advêm não somente do decurso do tempo, mas, principalmente, dos próprios vícios do modelo, muitos deles contemporâneos de sua criação.
De fato, na sua gênese a CLT, tanto quanto a Constituição de 1937, se ressente da ilegitimidade dos regimes impostos, que não nasceram do consenso democrático. Ignoraram o povo enquanto destinatário de suas normas e senhor do próprio destino.
Além de ilegítimo, ou até mesmo por sê-lo, o modelo é inautêntico, porque transplantou vivências, conceitos e institutos da Carta del Lavoro, um paradigma controvertido mesmo na sua época de maior prestígio, em que era apregoada como a grande realização do fascismo.
Em terceiro lugar, o modelo da CLT é demagógico porque não resultou de nenhuma demanda política. Foi oferecido como panacéia social, uma forma de despertar ou exacerbar falsas expectativas, no bojo de um regime autocrático, mais preocupado com o culto à personalidade do ditador.
Também é preconceituoso porque se baseia num confronto necessário entre trabalhador e empresário, como se ambos fossem inimigos inconciliáveis que precisassem, respectivamente, de tutela e de polícia. Esse vício fez da CLT um instrumento de atraso social, implantando a enganosa mentalidade do confronto, e a mais enganosa ainda figura do Estado conciliador.
Sob o aspecto formal, o modelo interventivo em vigor é detalhista, inflexível e contraditório.
Uma CLT que contém 922 artigos, subdivididos em incontáveis parágrafos, incisos e alíneas, alterados por mais de cem leis posteriores, tem contra si o próprio tamanho – marca do Estado onipresente e onisciente, que tudo busca prever e regular, por desconfiar da sociedade.
A própria Constituição de 1988, no capítulo concernente aos direitos dos trabalhadores, tornou-se um minicódigo do trabalho, demasiadamente prolixo, detalhista, um exagero de normatividade, que não se compadece com a natureza e o nível do instrumento legislativo de que se trata.
Por força do excessivo intervencionismo estatal instituiu-se, entre nós, um sistema pesado e inflexível que, dentro da velha tradição patrimonialista e juridicamente formalista, passou a ser de predomínio da legislação social sobre o contrato e do aparato da justiça trabalhista sobre a negociação entre as partes.
A CLT, em sua versão original, revelou-se um documento sistemático, lógico na forma e coerente com o regime autoritário vigente na época. No entanto, em razão do surgimento de novos preceitos constitucionais, leis ordinárias, regulamentos e portarias, passou a apresentar sérias e incontornáveis contradições em muitos de seus dispositivos.
Fruto da era das ideologias, de uma época em que se buscava retirar as grandes verdades da vida social dos gabinetes, o modelo da CLT é, antes de tudo, utópico. Fechado em si mesmo, nas próprias idéias, fundado em premissas idealizadas e voltado a finalidades ideologizadas, revelou-se em grande parte irrealizável.
Além do mais, é corporativista, como não podia deixar de ser, dada sua origem fascista, eis que fundado na falsa presunção da possibilidade de organização social através da definição jurídica e da regulamentação das profissões, dando origem a uma legislação volumosa e complexa que regula mais de uma centena de atividades diferenciadas.
A CLT, por outro lado, ao privilegiar o coletivo em relação ao individual e subordinar o econômico ao social, fez uma opção unilateral pelo fator trabalho. Com isso ampliou consideravelmente os direitos dos empregados, sem levar em conta os necessários incentivos para o desenvolvimento livre e competitivo também do capital e da tecnologia que o qualificam. Ignorou o fato de que tanto capital como tecnologia são, afinal, trabalho acumulado qualitativamente, transformado e cristalizado para ser utilizado na produção de mais trabalho.
O equívoco do modelo sub censura é imaginar que o Estado é uma entidade benevolente e capaz. Ocorre que acabar com a "exclusão" dos pobres por via de legislação paternalista é uma falácia. Na verdade, como a realidade demonstra, o Estado é mais excludente que includente.
O excesso de protecionismo acaba sendo profundamente discriminatório e injusto. A ênfase exagerada no princípio da isonomia acaba deformando seu resultado, produzindo uma legislação perversa. Na ânsia de atender a todos os trabalhadores indistintamente, nossa legislação trabalhista acaba por dar tratamento igual a situações desiguais. Considera empregado, com iguais direitos, tanto um próspero gerente quanto um ajudante de pedreiro.
O modelo também é injusto com os pequenos empresários, na medida em que as leis trabalhistas atribuem idênticas responsabilidades, independentemente do porte econômico e finalidade das empresas, não importa se uma simples oficina de fundo de quintal ou se uma poderosa multinacional, se com ou sem finalidade lucrativa.
Outro vício do modelo é a onerosidade. Constitui ponto pacífico entre os estudiosos do direito econômico do trabalho que a legislação trabalhista tem sérios e diretos reflexos na composição dos custos das empresas, da sociedade como um todo e até do Estado.
É bem verdade que todo tipo de regulamentação tem seus custos. Mas o fulcro do problema está em saber se os custos compensam os benefícios que produzem. Tudo se resume, portanto, numa questão de relação custo-benefício.
Uma legislação distributivista, que se assenta em bases ideológicas românticas; que se fundamenta na crença do voluntarismo reformista; que se embasa no conceito abstrato de igualitarismo; que defende a necessidade da intervenção do Estado como promotor direto do progresso social; que se utiliza do direito como instrumento de distribuição de riquezas; que não se preocupa com os meios (custos) necessários à implementação das medidas que contempla, precisa ser repensada.
A rigor, todos perdem com esse sistema interventivo. Sobre o total da massa trabalhadora pesam os custos do desemprego; sobre uma boa parte das empresas os da sobrevivência; sobre os consumidores os do aumento no preço dos produtos; sobre o Estado os da perda de receita; e sobre a economia do país os da impossibilidade de competir no mercado internacional globalizado.
Por isso vivemos hoje um conflito de paradigmas. De um lado, o modelo interventivo varguista, de cunho recessivo e retrógrado; de outro, os modelos não-intervencionistas, mais modernos e funcionais.
A lógica econômica moderna conflita com a lógica trabalhista tradicional. Sem urgentes mudanças no sistema trabalhista, o Brasil estará perpetuando seu atraso histórico em relação às principais potências.
Mas a crítica do arcaico modelo trabalhista vigente e a construção de um modelo voltado ao progresso envolvem desafios difíceis e complexos.
O primeiro desafio é de ordem metodológica. Ainda persistem fundamentais diferenças entre a forma como o tema é visto e compreendido por setores retrógrados da sociedade, em oposição ao modo como é encarado e entendido pelos que se propõem a abordá-lo com isenção crítica e com atualidade.
No campo do direito do trabalho, a leitura retrógrada tem seguido uma orientação tradicionalmente corporativa, tendenciosa, dogmática, emocional, disciplinarmente restrita e geograficamente limitada, que surpreendentemente ainda permanece impregnando a mentalidade de muitos opositores da modernização das leis trabalhistas.
O segundo desafio consiste na necessidade de desmistificação de certas falácias intervencionistas, tais como: o mito do conflito de classes; o do pleno emprego; o de que a justiça social só pode ser conquistada por meio da ação do poder estatal; o de que a intervenção do Estado é a única forma de corrigir os erros e injustiças do mercado; o de que é possível atingir o desenvolvimento social sem o econômico; o de que os direitos sociais nada têm a ver com as realidades do mercado, diferenças regionais, nível de produtividade, oferta e demanda de mão-de-obra; o de que o direito tem o poder de criar realidades; o de que as conquistas sociais estão na Constituição e na CLT; o de que a legislação brasileira é a mais avançada do mundo; e finalmente o mito de que é possível ter um modelo trabalhista sem nenhum tipo de intervenção do Estado.
Qualquer proposta de reforma só pode ser analisada, com vantagem de precisão e de síntese, desde que se levem em conta as várias premissas e princípios que traduzem a lógica que preside a legislação trabalhista vigente. São elas: que nas relações capital-trabalho existe um notório desequilíbrio de forças entre as partes contratantes; que o trabalhador é hipossuficiente e relativamente incapaz do ponto de vista jurídico; que não podendo o empregado exercer plenamente a sua autonomia da vontade, deve o Estado protegê-lo, outorgando-lhe uma superioridade jurídica para compensar sua inferioridade econômica.
O terceiro desafio é de ordem principiológica, pois é nela que a legislação trabalhista vai buscar o seu embasamento valorativo. São princípios fundantes do modelo: o da irrenunciabilidade de direitos; o da imodificabilidade in pejus; o da intangibilidade e irredutibilidade salarial; o da continuidade de emprego; o da primazia da realidade sobre o contrato; o do in dubio pro operario; e o do primado da norma mais favorável.
São esses princípios que definem a ordem jurídico-trabalhista intervencionista e refletem os valores que a informam; que a orientam em direção a determinadas finalidades; que dão-lhe ordem e coerência; que preenchem as lacunas deixadas pelos preceitos, dando-lhe continuidade e consistência; que impedem a produção de normas e atos concretos violadores do seu conteúdo, inibindo-lhes a eficácia.
O quarto desafio da reforma trabalhista está ligado a resistências de ordem cultural e corporativa.
As primeiras são facilmente detectáveis: o socialismo, o estatismo e o positivismo jurídico. O socialista vê no avanço da liberdade nas relações de trabalho um retrocesso inadmissível, no que considera a marcha progressista do igualitarismo; os estatistas, com sua crença quase religiosa na superioridade do Estado sobre a sociedade, repudiam qualquer redução dos poderes a ele conferidos; e os positivistas confiam, de forma quase absoluta, no poder da norma escrita e no acerto da dogmática para resolver os problemas sociais.
As resistências corporativas são mais pessoais e até egoísticas, reunindo os beneficiários de privilégios e de vantagens produzidos pelo modelo vigente, que não aceitam perdê-los. Opõem-se à modernização das relações capital-trabalho certos setores políticos, profissionais e empresariais, por temerem que quaisquer mudanças possam retirar-lhes os benefícios, vantagens ou privilégios.
Nada obstante os desafios existentes, o certo é que estão dadas as condições subjetivas e objetivas, externas e internas, para a reforma do atual modelo. Isso implica o surgimento de uma nova mentalidade intelectual, empresarial, governamental e sindical, todas menos dependentes do Estado e mais de si próprias, na busca conjunta por resultados práticos. É o que está felizmente ocorrendo.
Também no plano doutrinário percebe-se, claramente, a crescente convicção de que o conhecimento multidisciplinar é a única solução para a correta apreensão de fenômenos complexos, como são, de resto, os fenômenos sociais; de que a visão verdadeiramente moderna não pode ser restrita e fechada mas, ao contrário, deve ser ampla e aberta; de que a crítica deve ser construtiva, despida de preconceitos pseudocientíficos, que só concorrem para confundir; de que mais importante que a intenção de proteger o empregado a todo transe é defender a geração de empregos; de que o fator trabalho deve ser considerado em igualdade de condições com a livre iniciativa; de que o paternalismo, o assistencialismo e o distributivismo, embora bem-intencionados, acabam desmontando o sistema produtivo de qualquer sociedade; de que a problemática trabalhista está permeável à influência renovadora dos centros de conhecimento de todo o mundo e, necessariamente, voltada à inserção global do país; de que a ação normativa, fiscalizadora e julgadora do Estado pode até ser razoável e necessária, mas há de ser sempre subsidiária; de que a regra autônoma, bem como as soluções negociadas, deve ter primazia sobre a regra heterônoma; de que a legislação, que bem servia no passado, pode perder o vínculo socioeconômico que lhe dá sentido e tornar-se disfuncional; enfim, de que a norma legal existe para ser aplicada e não por suas qualidades formais.
No plano político deve-se destacar a existência de um novo governo guindado pelo voto popular, de um país que está aprendendo a decidir pelo exercício da democracia das urnas, da mídia e da participação política em todos os níveis. Esse novo presidente, assim ungido pela esmagadora maioria da vontade popular, com profunda experiência sindical e capacidade pessoal de negociador, está tornando possível a reforma trabalhista em curso, que antes parecia impossível.
É chegado o momento de desaguar todas as considerações até aqui expendidas com vistas à montagem de nossa proposta de reforma trabalhista. Ela seguirá os mesmos referenciais analíticos empregados para compreender e criticar o modelo intervencionista vigente.
Pode-se avaliar os modelos trabalhistas axiologicamente, isto é, quanto aos valores predominantes, resultando em modelos enfáticos na liberdade das partes, individual ou coletiva, ou na igualdade proporcionada pela intervenção do Estado; logicamente, quanto à adequação de sua fundamentação e de sua estruturação, sem contraditoriedades ou redundâncias; empiricamente, a partir de sua funcionalidade, ou seja, da efetiva produção de resultados positivos; e finalmente, talvez o mais importante dos parâmetros, a maneira comparativa.
Disso resulta que a estrutura da proposta oferecida se alicerça em certas premissas, certos princípios basilares que se complementam e se temperam com propostas preceituais assumidas em aras de compromisso, sempre no que necessário seja para adequá-lo ao tempo e às circunstâncias.
Nessa linha, as premissas da proposta de reforma possível devem recolher as tendências que se revelaram, por comparação, as mais aptas a fundamentar regimes trabalhistas modernos, valiosos, exitosos, com ênfase na liberdade, com rigorismo lógico e funcionalidade. Com tais critérios, resta-nos considerar e destacar, em primeiro lugar, a imprescindível legitimidade, sem a qual a proposta não seria democrática e se confundiria com aquelas impostas por autocracias ou por ideologias de plantão. Assim, como qualidade originária inafastável, está a consensualidade de sua elaboração.
Em seguida vem a autenticidade, enquanto referência cultural absolutamente necessária. Como a cultura é naturalmente brasileira, há de ser uma reforma elaborada por brasileiros conscientes das verdadeiras condições das relações sociais, econômicas e de trabalho no país e no mundo.
Em terceiro lugar, a isenção. Isso significa o repúdio dos preconceitos do passado contra o trabalhador, considerado incapaz e infeliz; contra o empregador, considerado inescrupuloso e explorador; contra a sociedade, considerada desorganizada, caótica e imbele, se confrontada com a decantada superioridade ética e funcional do Estado, quando não com sua infalibilidade; e também contra o Estado, considerado desnecessário, predador e ineficaz.
Quanto à forma, a proposta precisa ser sintética, flexível e coerente. A síntese é necessária para contra-arrestar a pletora normativa que cria confusão, a falsa idéia de segurança e uma burocracia corporativa que acaba sendo parasita das relações de trabalho. Por isso, a premissa formal mais importante é reduzir a normatividade a um núcleo mínimo de garantias de obrigatória observância. A flexibilidade, enquanto capacidade funcional do modelo de adaptar-se às rápidas mudanças internas e externas e de enfrentar as crises de toda sorte, passa a ser a garantia da estabilidade. Não mais estável por ser "pétreo", mas por ser flexível. A qualidade da coerência está presente, não apenas internamente, entre princípios e preceitos trabalhistas, mas também externamente, em relação ao regime político e econômico vigente, de modo a produzir uma ordem jurídica valiosa por igual e inequívoca quanto a seus comandos.
Outra premissa básica adotada é o reconhecimento do pluralismo da sociedade brasileira, o que a torna participativa em face do Estado, na criação das normas. A partir do pluralismo, a proposta define o que deve permanecer com o Estado, por ser da essência de sua índole coercitiva, e o que deve ser devolvido ao indivíduo e à sociedade. A proposta é basicamente privatizante, admitindo a intervenção estatal quando absolutamente indispensável ou por provocação das partes envolvidas.
Do ponto de vista funcional, a proposta dá menos ênfase à ética das intenções, para priorizar a dos resultados, em que os institutos e os atos concretos devem se justificar pelas efetivas vantagens que tragam a todos os atores trabalhistas.
A modernidade da proposta, mais que uma premissa, retrata uma qualidade e uma direção; resulta de um compromisso de abertura às tendências históricas, por ser preferível errar experimentando a errar repetindo fracassos.
Finalmente, a proposta destaca a licitude no seu mais prístino sentido, de moralmente justo. Isso completa o tripé de juridicidade que tem na legalidade e na legitimidade seus dois outros referenciais.
Antes de adentrar propriamente no conteúdo da proposta, entendo útil lembrar estas evidências: não há reforma perfeita porque inexistem modelos trabalhistas puros; não há reforma pacífica porque há resistências de todo tipo; a reforma não pode ser imposta porque na democracia ela é fruto do diálogo e do consenso entre as partes envolvidas; qualquer reforma sempre tem uma finalidade, que na hipótese em tela consiste na reformulação do papel do Estado nas relações de trabalho; e, finalmente, a reforma deve adotar como parâmetro o marco legal existente.
Nossa proposta de reforma parte do pressuposto de que não é possível, no atual estado de desenvolvimento das relações trabalhistas no Brasil, passar-se abruptamente do intervencionismo estatal para um outro fundado na plena autonomia individual ou coletiva. A completa liberdade contratual, embora desejável, exige uma quádrupla condição prévia: que todos os trabalhadores brasileiros indistintamente tivessem condições de exercer sua plena autonomia da vontade diante do empregador; que todo empregador agisse com total boa-fé e não procurasse de alguma forma prevalecer-se de sua superioridade econômica; que todos os empregados pudessem contar com eficiente organização sindical para assisti-los, quando necessário; que o Brasil apresentasse, nos planos cultural, econômico e social, características regionais homogêneas.
Se há necessidade de algum tipo de intervenção do Estado, surgem por decorrência as seguintes indagações: a) quanto intervir? (a amplitude); b) quando intervir? (o momento); c) onde intervir? (área ou setor); d) como intervir? (tipos de normas).
A proposta responde a essas intrigantes perguntas da seguinte forma: a) o mínimo de intervenção indispensável e o máximo de autonomia privada; b) apenas em caso de impasse nas negociações diretas, ou quando provocado pelas partes; c) basicamente nas relações individuais do trabalho; d) por meio de normas públicas.
No plano formal, a proposta abandona a idéia de revisão pura e simples da CLT. Descarta igualmente a idéia de codificação, preferindo tratar a matéria em leis separadas. Optamos pela elaboração de quatro leis específicas, relacionadas com os segmentos tradicionais e mais abrangentes do direito do trabalho, a saber: Lei de Introdução; Lei de Relações Individuais do Trabalho; Lei de Relações Coletivas do Trabalho; e Lei sobre a Justiça do Trabalho.
A primeira lei engloba os princípios e o núcleo protetor básico já consagrados e reconhecidos universalmente; algumas das normas já inseridas atualmente em nossa Constituição passariam para a legislação ordinária, como, por exemplo, as relativas a décimo terceiro salário, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), jornada de trabalho, férias, aviso prévio, prescrição, etc. A segunda lei regula as relações contratuais e individuais do trabalho. A terceira tem como objeto as relações coletivas do trabalho, abrangendo a autonomia sindical, a negociação e contratação coletiva, bem como a greve. A última trata da organização judiciária e processual do trabalho, direcionada à Justiça do Trabalho.
Com isso, a estruturação da proposta possível assimila normas de três categorias: as de ordem pública, que, por serem invariáveis e homogêneas em qualquer tipo de relação de trabalho, são indisponíveis e, como tal, estão submetidas à fiscalização de seu cumprimento pela administração pública; as dispositivas, que seriam também de edição estatal, mas sem caráter imperativo, podendo ser afastadas pela negociação coletiva; e as normas autônomas que resultam exclusivamente da vontade negociada das partes em campo liberto da regulação.
Na área das relações individuais, a proposta é de flexibilização do contrato individual de trabalho. Propõe-se a substituir, ao máximo possível, o garantismo legal ou coletivo pelo garantismo negociado individual. Mantém o núcleo básico do garantismo de proteção à parte mais débil na relação contratual, mas aceita graus razoáveis de adaptação da rigidez da lei no tocante aos sujeitos da relação à economia.
Quanto aos sujeitos da relação, "não faz mais sentido dar o mesmo tipo de proteção e considerar com iguais direitos e obrigações a um próspero e letrado executivo e a um simples ajudante de pedreiro analfabeto. Por igual fere ao bom senso atribuir-se às empresas idênticas responsabilidades trabalhistas independentemente da natureza da atividade e do porte econômico".
Por decorrência, "a legislação não pode mais estabelecer um contrato de trabalho padrão, com a mesma proteção para todos os trabalhadores e todas as empresas indistintamente". Um funcionário exercente de cargo executivo não pode usufruir praticamente da mesma tutela que se oferece ao operário. É necessário admitir diversos contratos, com proteção diferenciada, gradual, conforme a idade do empregado, seu nível de subordinação, grau de especialização, encargos familiares, etc.
No tocante ao empregado, a proposta é dar-lhe um tratamento diferenciado, levando em conta o grau de escolaridade ou a natureza de sua função, nos moldes da classificação adotada pelo direito italiano, ou seja: operário (serviços não especializados); trabalhador (serviços especializados); e dirigente (profissões liberais e altos cargos administrativos, cargos de gerência e direção, altas posições de supervisão, inspeção e outras ocupações não manuais).
O grau de protecionismo seria grande para o operário, pequeno para o trabalhador e nenhum para o dirigente.
No que concerne ao empregador, a proposta flexibilizadora contempla o mesmo tratamento diferenciado, tomando como parâmetro a natureza da atividade (com ou sem fim lucrativo) ou o porte econômico (se pequenas, médias ou grandes).
No que se refere às relações coletivas, a proposta parte do princípio de que a intervenção do Estado deve ser de apoio e estímulo à ação sindical e nunca uma intromissão desnecessária e limitadora da autonomia coletiva.
No âmbito da autonomia sindical, as premissas do modelo proposto são: a liberdade coletiva é um valor social fundamental; a liberdade e autonomia sindicais são fatores do sindicalismo democrático e devem ser entendidas como aquelas praticadas em todos os níveis; o sindicato é uma instituição social importante nas relações coletivas de trabalho; o pluralismo é o melhor sistema de organização sindical; a atuação sindical só é recomendável nas hipóteses de não ser possível o exercício da autonomia individual; o exercício de uma liberdade sindical absoluta gera, com freqüência, graves distorções, e desequilíbrio de poder; para fazer face às violações ao direito de liberdade sindical é necessária a existência de certas garantias legais.
Nessa linha propõe-se uma emenda supressiva à Constituição, para abolir a unicidade sindical obrigatória e as contribuições compulsórias, extinguindo-se assim todos os incisos de I a VIII, permanecendo apenas o caput do artigo 8º.
Para orientar o sistema nacional é recomendável a ratificação da convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do pluralismo sindical.
Ainda no âmbito sindical sugere-se a criação de legislação básica de apoio e de proteção garantidora da ação sindical, destinada à reparação imediata de atos anti-sindicais praticados pelo Estado, empregadores, sindicatos e pelos próprios empregados.
No que diz respeito a negociação coletiva, o propósito da proposta é liberá-la das amarras regulamentadoras, limitadoras e controladoras que têm origem em normas estatais, abrindo-se o máximo possível o vasto campo ao livre jogo da autonomia coletiva.
As premissas informadoras do modelo ora proposto são as seguintes: a negociação coletiva só alcança seu pleno desenvolvimento na medida em que a autonomia coletiva possa ser exercitada livremente pelas partes envolvidas na relação; a autêntica negociação coletiva deve se apoiar em determinados princípios, sem os quais sua eficácia fica seriamente comprometida; os sindicatos não devem ter o monopólio de participação nas negociações coletivas, não obstante a importância de sua atuação; as negociações diretas não permitem uma solução uniforme para todo o conjunto da massa de trabalhadores e para todo tipo de empresa; a negociação coletiva não tem recebido estímulos, principalmente em razão da superabundância, detalhamento, rigidez e imperatividade da legislação sobre os direitos individuais; os sindicatos e empresas reivindicam mais negociação e menos legislação e intervenção do Judiciário.
O princípio prevalente da proposta é o do primado do negociado sobre o legislado. Assim, deveriam ir para o âmbito da negociação e contratação coletiva alguns preceitos atualmente constantes da Constituição, tais como: piso salarial, hora extra, trabalho insalubre ou penoso, adicional para o trabalho noturno, proteção contra despedida, prorrogação e compensação de jornada, além de outros.
A proposta coloca-se frontalmente em oposição à reserva de mercado atribuída aos sindicatos nas negociações coletivas. Admite, todavia, a necessidade de elaboração de uma legislação básica que contenha certas regras que devem nortear o processo de negociação.
No tocante à greve, o princípio norteador da proposta é o da intervenção mínima estatal, admitida apenas nas atividades essenciais que envolvam o interesse público, após esgotadas todas as formas de autocomposição.
O fundamento do modelo proposto é o da liberdade de greve responsável, ou seja, do direito de greve exercitado sem abuso.
A lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, que regulamentou o direito de greve consagrado no artigo 9º da Constituição, em que pese seu caráter intervencionista, está razoavelmente adequada às condições do Brasil de hoje, na medida em que possibilita o exercício do direito de greve, limitando-o apenas nas hipóteses de abuso. Não obstante não seja ideal, é a única possível no atual momento brasileiro e tem, na prática, demonstrado o seu inegável sucesso.
Quanto à Justiça do Trabalho, o princípio nuclear que preside a proposta é o da prevalência da solução extrajudicial sobre a confrontação judicial.
A tese que nos parece mais realista é a da reforma da Justiça do Trabalho e não sua extinção pura e simples. As verdadeiras causas da notória deficiência da Justiça do Trabalho são exógenas, estão situadas basicamente nos inúmeros vícios da legislação trabalhista e também na cultura da litigância, traço manifesto negativo de nossa formação. Há, ainda, outro fator, este de natureza política. Qualquer iniciativa radical que vise à extinção da Justiça do Trabalho encontraria sérias e insuperáveis resistências dentro e fora do Congresso.
Para atenuar a intervenção judicial, a proposta é estimular a conciliação, mediação e arbitragens voluntárias como técnicas alternativas de solução de conflitos.
É chegado o momento de trabalhadores e empresários diretamente ou por meio de suas representações econômicas e profissionais tratarem da solução de seus problemas, tanto de natureza individual como coletiva. Nessa linha cresce em importância o fortalecimento de órgãos extrajudiciais, como as comissões paritárias de conciliação, conselhos de empresas e comissões intersindicais. Seria igualmente aconselhável a instituição de outras medidas, como a criação de juizados de pequenas causas trabalhistas, a simplificação do processo judicial, a adoção da súmula vinculante, a extinção do poder normativo, o aprimoramento do nível dos magistrados e a eliminação da "indústria dos processos".
À guisa de conclusão, gostaríamos de lembrar que Daniel Bell apregoou o fim da ideologia; Michel Drancourt profetizou o fim do trabalho; Bernard Boubli sustentou o fim do direito do trabalho; Francis Fukuyama anunciou o fim da história; Jeremy Rifkin proclamou o fim dos empregos; Kenichi Ohmae preconizou o fim do Estado-nação; Jean-Marie Guéhenno vaticinou o fim da democracia. Atrevo-me também a prognosticar que na anunciada reforma trabalhista haverá uma sensível redução no grau de intervenção do Estado nas relações capital-trabalho. Assim esperamos.
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