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Dignidade em revista
Alguns dos 49 títulos vendidos no mundo / Foto: Laura Lopes
Moradores de rua vendem publicação e recuperam auto-estima
LAURA LOPES
Há quem pense em morador de rua como aquela figura suja, alcoolizada e que dorme nas calçadas. Mas muitos desses indivíduos trabalham e definitivamente não se enquadram nesse clichê. Segundo a Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo, a população de rua da cidade soma aproximadamente 10 mil pessoas. E é justamente a esse contingente que a Organização Civil de Ação Social (Ocas) procura oferecer uma oportunidade de reintegração social.
Cerca de 33 moradores em "condição de rua" – expressão comum entre eles – das capitais paulista e carioca vendem, todos os dias e em locais fixos, a revista mensal Ocas", "direcionada a leitores que valorizam a responsabilidade", diz Luciano Rocco, diretor executivo da publicação. O vendedor paga R$ 0,50 pelo exemplar e o revende por R$ 2, exclusivamente na rua. "Ao se cadastrar, a pessoa recebe de graça dez revistas, para formar capital de giro, além de crachá e colete. Também combinamos um ponto para a venda", afirma Kenia Rezende, responsável pela distribuição em São Paulo.
O conteúdo da publicação é produzido por jornalistas não remunerados. Os únicos funcionários são as duas pessoas que cuidam da distribuição em São Paulo e no Rio de Janeiro. Para Kenia, ninguém lá faz trabalho voluntário. "Os fundadores da Ocas" são empreendedores sociais: não há retorno financeiro, mas profissional." A revista fala da realidade brasileira, mas sem a carga de pessimismo comum aos veículos de comunicação de massa. "Publicamos notícias nacionais e internacionais sobre temas como meio ambiente, cultura urbana e entretenimento. Queremos fomentar o envolvimento dos leitores com a questão social e trazer informações sobre trabalhos que vêm sendo desenvolvidos por outras organizações da sociedade civil", diz Rocco. Por essa razão, os vendedores também têm espaço para publicar textos, como histórias de vida ou opiniões. "Nossa intenção é ser cada vez mais a voz da população em situação de rua", completa ele.
A proposta da entidade é abrir um caminho para a reintegração social. Isso significa que a venda da Ocas" é um meio e não um destino para os moradores de rua. A intenção é fazer com que eles tenham contato com a população, que normalmente lhes vira as costas. "O que faz a reinserção social não é só o dinheiro, mas a interação com o cliente", afirma Kenia. Segundo Irani Francisco dos Reis, "mesmo que a pessoa não compre, só a conversa que temos com ela ajuda a mostrar que morador de rua não é aquela figura estereotipada, drogada". Relacionando-se com gente que em geral evitava olhá-lo, o vendedor pode até conseguir um emprego com carteira assinada. Foi o que aconteceu com José Ivalto, que, depois de dois meses vendendo Ocas", arrumou trabalho num açougue.
Pelo mundo
A Ocas" integra uma rede mundial de 49 publicações vendidas por moradores de rua, a International Network of Street Newspapers (INSP), cuja circulação anual soma cerca de 26 milhões de exemplares. A primeira delas, The Big Issue, foi criada na Inglaterra, em 1991, inicialmente com periodicidade mensal. Hoje ela é semanal, tem circulação nacional e seu lucro é revertido para a assistência aos vendedores. O apoio que as organizações dão a eles é bastante heterogêneo: há desde combate à dependência química até incubação de cooperativas. "Em São Petersburgo, na Rússia, por exemplo, a revista The Depths administra um abrigo para os sem-teto. Em Londres, os vendedores têm cursos de informática. Em Glasgow, na Escócia, há um banco para que possam poupar suas economias, uma vez que eles não têm endereço fixo, que lhes permita abrir conta na rede bancária", explica Rocco.
As publicações da INSP estão em 27 países. Só na Alemanha, seis revistas estão ligadas a ela. No Brasil, além da Ocas", há também o jornal gaúcho Boca de Rua, que é feito e vendido por moradores de rua. "A INSP facilita o intercâmbio de informações entre seus associados e acredita que a troca de experiências é vital para lidar com a situação de pobreza e de exclusão dos sem-teto. Essas publicações fazem parte de um poderoso movimento de meios de comunicação", acrescenta Rocco.
Início
A Ocas" nasceu da vontade de comunicadores de criar um veículo independente e que promovesse a ação social. Em 2000, foi lançada a Hecho en Buenos Aires – publicação também vendida por moradores de rua –, na Argentina, e uma repórter da Folha de S. Paulo, Denise Mota, atual editora da Ocas", noticiou o fato. Foi então que ela procurou pessoas interessadas em participar de um projeto semelhante no Brasil. Após dois anos de gestação, saiu o primeiro número da revista, em junho de 2002. Com apoio da M. Officer para as duas edições iniciais, a Ocas" saiu com tiragem de 15 mil exemplares.
Assim que terminou o patrocínio, a tiragem caiu pela metade, por dois motivos: o primeiro foi, obviamente, financeiro; o segundo decorreu do fato de a entidade não ter conseguido captar um número suficiente de vendedores. "Muitos deles vêm uma vez e não voltam" relata Alderon Costa, conselheiro fiscal da Ocas". "É difícil estimular pessoas com baixa auto-estima, e esse é um de nossos maiores problemas, porque eles desistem muito facilmente", comenta Sérgio Gwercman, subeditor da revista. Segundo Kenia, há mais de 300 vendedores cadastrados. Os locais de venda, em São Paulo e no Rio de Janeiro, estão disponíveis no site
www.ocas.org.br.O objetivo da organização é se tornar uma empresa auto-suficiente com fins sociais. "O lucro todo seria revertido para a entidade", diz Gwercman, já que o preço cobrado do vendedor não é suficiente nem para pagar a impressão. Para se manter, a Ocas" tem apoio financeiro e estrutural de várias entidades, como a Rede Rua (SP), Médicos sem Fronteiras (RJ) e British Council, entre outras.
Personagens reais
Walter, geógrafo pós-graduado, foi processado em Ubatuba (SP) por ter atropelado uma pessoa e teve de pagar indenização, o que o deixou sem nada. Após perder o emprego, veio para São Paulo e hoje passa as noites em um dos 33 albergues mantidos pela prefeitura da cidade enquanto tenta se recuperar. Depois que começou a vender Ocas", conseguiu uma vaga de lavador de carros.
Aos 48 anos, Waldir Moreira vende Ocas" diante de um cinema da região da Avenida Paulista. Com a venda de cerca de 500 exemplares por mês, ele consegue pagar R$ 450 de aluguel do quarto num hotel no bairro da Luz, zona central de São Paulo, e sustentar a filha, da qual conseguiu se reaproximar após anos de separação. Para ele, ficar em albergues significava sofrimento e perda do orgulho próprio: "Não gosto, porque nesses locais já vi pessoas com doença de pele (sarna) e tuberculose. Preferia dormir na rua", confessa.
Vender a Ocas" é um passo para Waldir atingir seu maior sonho. "Quero ter de volta meu ateliê. Sou artista, faço peças exclusivas, mas tive de parar pois não conseguia trabalhar na rua." Após perder a oficina, ele se desvinculou da família e, a partir de então, perambulou pelo país vendendo artesanato. "Nunca deixei de trabalhar, e estou capitalizando para ter meu espaço de volta", diz ele, fazendo questão de acrescentar que acredita na Ocas". "Mesmo quando deixar de vender a publicação, pretendo continuar ligado à entidade. Gosto da revista. É a que eu faria", finaliza.
Irani, de 39 anos, e Carlos Donizete Duarte, de 37, também estão nas ruas devido ao desemprego. Goianos, vieram para São Paulo para ganhar a vida e há pouco tempo conheceram a Ocas". "Antes eu catava latinha. Agora, com o dinheiro da venda da revista, pretendo alugar um quarto o mais rápido possível", afirma Carlos.
Para muitos, sair do albergue é uma vitória, e com a venda da Ocas" isso se torna possível. Jason Prado Mendonça é vendedor há mais de dez meses e desde maio vive num quarto de hotel no bairro da Luz. "No albergue, ninguém respeita o outro. Somos tratados como bois", diz, denunciando a falta de preparo dos funcionários desses estabelecimentos. Baiano, ele veio para São Paulo atrás de oportunidades, mas, como elas sumiram, foi parar na rua. Apesar de gostar da Ocas", Jason acha que os vendedores precisam ser mais bem preparados para lidar com o público. A revista tem um "Código de Conduta", que estabelece as circunstâncias que levam ao afastamento de um vendedor, como por exemplo comportamento agressivo, uso de linguagem racista, sexista ou ofensiva, oferecer a publicação bêbado, sob influência de drogas ou ainda se fazendo acompanhar de criança. Elaboradas para monitorar o trabalho dos vendedores, essas regras mostram-se insuficientes para ampará-los diante de situações difíceis, que justificam a demanda de Jason. Como explica ele, "trabalhar na rua não é brincadeira. Uma parte da sociedade é desumana".
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