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Drama familiar
Penitenciária do Estado numa manhã de domingo / Foto: Gabriel Cabral
Parentes de pessoas encarceradas também cumprem longas penas
NILZA BELLINI
Todos os domingos, uma multidão acotovela-se em frente aos portões de prisões, penitenciárias e delegacias espalhadas pelo Brasil, carregando pacotes de bolachas, refrigerantes, pizzas e outras guloseimas típicas do cardápio de gente pobre. São os parentes dos quase 250 mil brasileiros encarcerados. Muitos desses visitantes encaram o encontro como uma atividade de lazer. Outros sofrem durante a visita mais do que em outros dias, por diferentes razões. Mas todos têm uma característica em comum: são eles que garantem aos presos a sensação de pertencer ao mundo de fora, para o qual algum dia poderão voltar.
Parece um sentimento de pouca importância, mas não é. O relacionamento do criminoso com sua família é fundamental para sua ressocialização. "Sem lar e sem família, a possibilidade de retornar ao crime torna-se muito grande", assegura a advogada Berenice Maria Gianella, diretora executiva da Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (Funap), órgão vinculado à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária de São Paulo e destinado à educação e profissionalização dos detentos.
A criminologia moderna, explica a procuradora do Estado Ana Paula Zomer Sica, adota uma abordagem múltipla para explicar o que leva uma pessoa ao desvio comportamental. "Fatores biológicos, sociológicos e psicológicos se sobrepõem e influenciam comportamentos", diz. E todos estão relacionados, de uma forma ou de outra, com a família. A agressividade, por exemplo, é um componente biológico e hereditário, o que não significa que deva levar obrigatoriamente ao crime. Existem delitos cometidos por conta de vontades inconscientes, que a psiquiatria pode desvendar numa análise da estrutura familiar. E no Brasil, onde os problemas sociais são imensos, há componentes sociológicos na raiz do crescimento da criminalidade, apesar de não ser possível estabelecer uma relação determinista de causa e efeito entre pobreza e delinqüência.
Mesmo assim, o sistema judiciário praticamente desconhece o meio familiar do preso, em que poderia recolher subsídios para estudos criminológicos e políticas públicas adequadas ao controle da violência.
Referência afetiva
A legislação permite que, depois de cumprir um sexto da pena, o preso conquiste vantagens, como a passagem para os regimes semi-aberto ou aberto. Este, na prática, é a liberdade. Para conceder o benefício, o juiz analisa cada caso através de um laudo de avaliação criminal, um procedimento que a reforma da Lei de Execução Penal, em tramitação no Congresso, pretende eliminar. O procurador de Justiça Plínio Antonio Britto Gentil acredita, porém, que há necessidade indiscutível de preservar a avaliação multidisciplinar, como é feita atualmente, para a concessão do benefício. "Sem esse parecer técnico, que recursos teremos para saber se o condenado se adequou às necessidades sociais, se o seu meio familiar vai ou não reconduzi-lo ao crime?", perguntou durante o Congresso de Direito Penitenciário, realizado em São Paulo, em maio.
Seja como for, em geral é a família que recebe o preso ao ser libertado. Isso ao menos minimiza o problema social, já que, se não fossem os laços familiares, esses homens ou mulheres não teriam para onde ir. Em São Paulo, todos os anos são libertados entre 25 mil e 30 mil detentos. Em 2001, houve 33,8 mil prisões e 25,3 mil solturas. Em 2002, foram 48,2 mil e 33,3 mil, respectivamente.
Em abril de 2003 havia nos presídios paulistas 115,9 mil detentos. Como acontece no resto do mundo, a quantidade de mulheres presas nunca ultrapassa 5% do total. Dados do Censo Penitenciário de 2002, realizado pela Funap e pelo Instituto Uniemp (Fórum Permanente das Relações Universidade-Empresa), demonstram mais claramente a importância das relações familiares para o controle da criminalidade. Cerca de 66% dos homens presos têm filhos, que em 87% dos casos ficam sob os cuidados das mães. A situação dos filhos de mulheres condenadas é diferente: 19% das crianças são abandonadas ou vivem com terceiros, 2% em orfanatos, 1% na Febem e 2% também estão presos.
Entre os maridos de mulheres presas, apenas 20% assumem a educação dos filhos menores, com os quais visitam periodicamente a detenta, como se buscassem com ela respostas para continuar a educar as crianças. "Acho melhor assim do que as meninas nunca verem a mãe", diz A. C., de 51 anos, que cultiva cogumelos em Cabreúva, interior de São Paulo. Uma vez por mês, ele leva as duas filhas, de 12 e 14 anos, para ver a mãe na Penitenciária Feminina do Estado, onde ela cumpre pena por ter espancado uma criança até a morte.
"A relação emocional e afetiva entre os membros de uma família, inclua ela detentos ou não, é essencial para identificar os conflitos fundamentais que marcam a convivência humana e dizem respeito ao amor e ódio, rivalidade e compreensão, ajuda e individualismo", analisa o psicólogo Alvino Augusto de Sá, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). "Entre os presos, esse relacionamento é ainda mais importante por causa do isolamento", observa.
Opiniões como essa não são suficientes para estimular o Estado a realizar estudos capazes de definir o exato perfil dos parentes de detentos. Compreender a criminalidade não é tarefa simples. A análise das famílias de detentos seria um elemento importante para tal compreensão. Sem um entendimento preciso do crime, não é possível definir políticas públicas voltadas para o caráter ressocializador da prisão. "Da forma como está, a pena tornou-se vingança estatal", diz Ana Paula. "Sem estudos adequados, quanto mais presídios construirmos, mais serão necessários."
Adriana de Melo Nunes, advogada e membro do Conselho da Pessoa Humana, do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo e da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo (OAB-SP), confirma: "A idéia que temos do comportamento dessas famílias é empírica".
Contatos
O Conselho Penitenciário é um colegiado com função consultiva (emite parecer em pedidos de indulto e livramento condicional) e fiscalizadora (inspeciona os estabelecimentos penais, supervisiona os patronatos e dá assistência aos egressos). É visitado periodicamente pelos ex-presos em livramento condicional, para que sua conduta seja avaliada. Graças a esse trabalho, pôde ser esboçado um perfil dos detentos. Esses contatos permitiram também classificar informalmente quatro modelos básicos de famílias: a inexistente (nunca esteve presente na vida do preso), a criminosa (provavelmente vai reconduzi-lo ao crime), a que abandona o detento por vergonha ou constrangimento, e a que apóia o parente encarcerado por acreditar em sua recuperação.
Uma análise do censo penitenciário permite obter mais algumas informações, como por exemplo dados sobre cor da pele e escolaridade dessas famílias. Em São Paulo, cerca de 47% dos detentos são brancos. Os demais são considerados não brancos. O índice de analfabetismo aproxima-se dos números apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em relação à população brasileira: 6% dos homens e 7% das mulheres que estão na prisão são analfabetos. Entretanto, 75% dos homens e 65% das mulheres sentenciados não concluíram o ensino fundamental.
Familiares de presos com perfil semelhante ao da estudante M. B., de 29 anos, são raros. Seu noivo, R. S., de 31 anos, condenado por assalto, deverá ter a pena convertida para regime semi-aberto nos próximos meses. Segundo ela, o rapaz já tem emprego garantido. Depois da condenação do noivo, M. B. ingressou numa faculdade de direito e vem acompanhando atentamente o processo para a obtenção de benefícios. Mas escondeu de muita gente, inclusive de parentes, que ainda se relaciona com ele, seu namorado desde a adolescência. Tem medo de reações preconceituosas que possam prejudicá-la até mesmo profissionalmente.
"A segregação de familiares de presos é muito comum, como se a pena pudesse estender-se aos ascendentes, descendentes e cônjuge do sentenciado", diz o jurista Pedro Egydio, ouvidor da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária de São Paulo.
Segundo o padre Valdir João Silveira, da Pastoral Carcerária, "a maior parte das pessoas omite a existência de parentes presidiários. O preconceito é muito grande, varia de acordo com a classe social, região geográfica e religião, mas quem admite a existência de um parente preso sofre várias formas de sanção", observa.
"Eu ouço direto ‘tem de morrer’, quando minha patroa está falando de roubo e assalto. Não digo nada, porque acho que também pensaria assim, se meu filho não estivesse preso", diz a faxineira M. L. T., de 43 anos, que todos os domingos visita D. T., de 24 anos, detido na Penitenciária do Estado, em São Paulo, por roubo de carro. "Nunca vou contar a ela que tenho um filho preso, porque seria mandada embora na hora", acredita.
O preconceito também é explicitado pelos funcionários do sistema prisional. As mulheres que visitam familiares e amigos nos presídios são, em geral, maltratadas e alvo de piadas grosseiras. É comum essas mulheres denunciarem o fato a entidades como a Pastoral Carcerária ou a OAB. Obrigadas a se despir e ficar de cócoras para vistorias (supõe-se que elas carreguem algum objeto dentro da genitália), reclamam ser vítimas de abuso sexual.
Em ofício encaminhado em abril ao secretário de Estado da Administração Penitenciária de São Paulo, Nagashi Furukawa, o coordenador da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-SP, João José Sady, relatou queixas de algumas dessas mulheres. Representantes da OAB lembram que existem recursos tecnológicos que tornam desnecessário o contato físico dos guardas com familiares de presos.
De qualquer forma, a idéia e o reconhecimento dos direitos humanos são precários, inclusive entre familiares de presos, que muitas vezes também confundem direitos com privilégios. "Direitos humanos quem tem é bandido rico", destaca L. M. C., de 56 anos, mestre-de-obras que aos domingos visita a filha, detida na Penitenciária Feminina por porte de drogas. "Minha filha está pagando pelo erro sem nenhum privilégio", acrescenta.
A vergonha pelo crime que alguém cometeu ou o medo do preconceito faz com que os parentes, às vezes, ocultem ou minimizem a gravidade do ato que levou à condenação. "Meu marido está preso por causa da pensão que deixou de pagar para o filho da ex-mulher", diz K. S., de 23 anos, que com a filha de 3 meses visitava J. S., detido na Penitenciária do Estado. Segundo funcionários, ele foi condenado por latrocínio.
Sacrifícios
Nenhuma dificuldade afasta alguns familiares de presos. As visitas dos domingos custam caro. Além do gasto com transporte, soma-se a despesa com a refeição do dia. Também é a família que fornece ao detento sabonetes e outros produtos, como creme dental e papel, para suprir suas necessidades básicas de higiene. O dinheiro para essas compras falta em casa. "Não venho todas as semanas porque não tenho recursos", diz o pedreiro F. G., ex-detento, que chegou acompanhado das três filhas menores na visita à mulher no Dia das Mães. Ele reside em Campinas (SP), na casa da sogra, e explica: "É difícil vir, mas não dá para abandonar ela".
Na fila dos visitantes também estão muitas mulheres que conheceram seus parceiros depois de presos. Algumas são de classe média, e a família desconhece o relacionamento. Há especialistas que interpretam esse envolvimento como patológico. Mas ninguém nega que sejam intensos. "O isolamento prisional potencializa emoções. Os presos são carentes e se apaixonam fácil e profundamente", analisa o psicólogo Alvino de Sá.
"Eu me sinto a única, a pessoa mais importante da vida dele, e isso é muito bom", declara M. A. R., de 19 anos, referindo-se ao namorado, detido na Penitenciária do Estado por tráfico de drogas. Estudante, bonita, ela conheceu o rapaz por intermédio de uma amiga de infância, R. D., colega de escola do preso. A família de M. A. R. nem imagina que a filha sai, nas manhãs de domingo, para namorar um detento. "E nunca vai saber, porque ele vai sair logo", diz R. D., rindo da aventura.
O presídio não a amedronta. Normas de comportamento criadas pelos próprios presos lhe transmitem a sensação de segurança. "A família do detento, via de regra, é coisa sagrada", observa Alvino de Sá. Uma regra não escrita impede que um preso se aproxime de alguém que não seja seu aparentado. A privacidade nos dias de visita não pode, de forma alguma, ser desrespeitada. Embora todos se encontrem, em geral, num pátio de uso coletivo, os grupos familiares não se relacionam. Presos que não são parentes devem se afastar e, se possível, evitar olhares que possam ser considerados indiscretos. Também são proibidos de se aproximar de crianças. "Aqueles que não recebem visita preferem nem ficar no pátio para não arranjar problemas", conta Alvino de Sá. A mais importante demonstração de confiança e amizade que um detento pode dar a outro é apresentar-lhe alguém de seu círculo afetivo.
Crime organizado
Por outro lado, o preso tenta preservar o papel social do provedor. Alguns amigos de L. U. T., uma ambulante de 22 anos, são companheiros de cela de seu namorado, o assaltante P. S., de 23 anos. "Enquanto ele não sai, outros amigos me ajudam, compram mercadoria para minha banca", conta ela. "Graças a isso, vivo melhor do que antes de conhecê-lo na prisão", diz.
Essa forma de relacionamento é típica do crime organizado. Para garantir a fidelidade de seus membros, facções criminosas fornecem apoio financeiro e material a familiares de detentos. "O crime organizado tem alugado ônibus para transportar parentes de presos transferidos da capital para o interior", denuncia João Xavier, militante e assessor de imprensa da Pastoral Carcerária. "Como aconteceu em outras regiões do país, em São Paulo eles também têm substituído o Estado", diz.
O envolvimento de presos com facções criminosas pode decorrer, entre outras razões, da inexistência de um relacionamento familiar, afirma Alvino de Sá. Segundo o psicólogo, sem família, o preso fica fragilizado. Suscetível, transfere toda a sua energia afetiva para o convívio com membros de facções. Sentimentos como baixa auto-estima, abandono, culpa, revolta contra si mesmo e depressão estão potencializados entre a população carcerária, que é relativamente jovem (76% dos homens e 75% das mulheres têm menos de 34 anos). Dessas emoções derivam mecanismos de compensação, como certo sentido de onipotência. "O presidiário se apega às idéias, certezas e crenças do crime organizado, como os terroristas se aferram fanaticamente às idéias religiosas", acredita Alvino de Sá. Quando a família é desestruturada, muitas vezes os presos a "convertem".
Por outro lado, "o crime organizado não raro usa de expedientes para extorquir as famílias de presos, sob o pretexto de garantir a integridade física deles", diz Pedro Egydio.
A exemplo das vítimas de crimes, os visitantes dominicais de presídios sofrem também por causa da história de parentes criminosos. E exercem um papel tão importante no sistema prisional que muitas vezes a proibição das visitas causa rebeliões. Hoje estão em estudo mudanças nas regras das visitas, propostas como endurecimento da legislação penal, sobretudo para presos de alta periculosidade. Não são poucos os que se preocupam com as novas regras. "Se ocorrerem, que as mudanças sejam melhores para todos, não estejam permeadas de preconceito e respeitem o código de tolerância e acolhimento que rege as relações entre os integrantes de um Estado democrático de direito", pede o padre Valdir, da Pastoral Carcerária.
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