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Nasce a florestania
Corte de borracha / Luis Fernando Pereira
Cooperativas e reservas extrativistas são conquistas do povo acreano
LUIS FERNANDO PEREIRA
A história do Acre não pode ser confinada em livros, relatos personalistas ou definições simplistas. Caleidoscópio de momentos, culturas e espaços, seu eixo central se encontra na exploração da borracha, ponto crucial para estabelecermos os vínculos entre o passado sofrido, o presente de lutas e o futuro de possibilidades. Entretanto, é no interior da floresta, nas antigas e novas colocações (local onde os seringueiros construíam seu barraco de palha), na conversa com os velhos soldados da borracha e com os migrantes que podemos vislumbrar um pouco da verdade dos fatos, assim como o conceito de "florestania", apregoado hoje pelos acreanos. Trata-se do orgulho de ser habitante da floresta, de interagir racionalmente com ela, desafiando a habitual concepção de desenvolvimento. Um conceito construído não por um líder, instituição ou governo, mas pelo povo.
"Não foi Chico Mendes nem os brancos que começaram a organização dos movimentos sociais no Acre, mas sim os índios" declarou Jorge Viana, o governador do Acre, durante solenidade para a criação de uma secretaria para assuntos indígenas no estado, em março de 2003. "Foram eles que inspiraram Chico Mendes e muitos outros, que morreram e se transformaram em mártires dessa luta."
A declaração não deixa dúvidas sobre a complexidade e a dimensão do cenário da região. Como atribuir a somente alguns indivíduos as causas pelas quais o estado – antes lembrado pelas queimadas, perseguições políticas, coronelismo e assassinatos de desafetos com motosserras – se transformou no modelo mais concreto do lema do Fórum Social Mundial, "um outro mundo é possível"?
A luta do Acre é de muitos, fundada em necessidades concretas, e teve início em focos distintos que, somente mais tarde, se encontrariam e fariam arder com mais vigor esse incêndio sociopolítico. Os primeiros lutadores buscavam, antes de nada mais, o reconhecimento básico como seres humanos, detentores de direitos.
"Eu sempre faço a comparação com uma colônia na qual crio uma manga de porcos e que quero vender", declara Nilson Teixeira Mendes, atual coordenador de manejo agroflorestal do Seringal Cachoeira, que conta com 24 mil hectares, trabalhados hoje por 75 famílias. "Você vem e quer comprar minha colônia, e eu vendo com tudo dentro, incluindo os porcos. Era o que acontecia: os patrões entregavam os seringais com todas as colocações ocupadas com moradores. O sujeito que chegava não tinha idéia de como trabalhar o extrativismo, mexer com a borracha e a castanha. Vinha para colocar o capim e, depois, o boi. Éramos vendidos sem saber, como se fôssemos porcos. Sempre havíamos morado na floresta, mas não existiam documentos que provassem que éramos donos da terra. A partir dessa luta é que hoje somos reconhecidos."
Até alcançarem essa vitória, entretanto, o caminho foi árduo. Os primeiros seringueiros e caucheiros (trabalhadores que retiravam o látex de uma árvore conhecida como caucho, que fornecia mais leite do que a seringueira) que chegaram à região enfrentaram a resistência dos grupos indígenas nativos, que foram expulsos de suas terras ou cooptados para um regime de trabalho escravo ou, ainda, exterminados, como os nawás, ajubins do Juruá e outros da região do rio Purus.
Mais tarde, os seringueiros passaram da condição de perseguidores à de perseguidos. Assim como haviam feito com os índios, foram submetidos a extenuantes jornadas de trabalho nos seringais, sujeitos aos desmandos dos patrões e à exploração dos seus parcos recursos, ludibriados nas contas e obrigados a assumir dívidas absurdas criadas para manter sua dependência com os seringalistas (proprietários dos seringais).
"Só podíamos cumprir o que era mandado. Mulher só usava o que o patrão queria, senão não usava", diz Juvenal de Aquino Silva, proprietário do Forró do Juvenal, o mais tradicional na cidade de Xapuri. "Seringueiro só vinha para festa na cidade quando o patrão deixava, senão não vinha. Os homens viviam para fazer borracha na colocação, feito escravos. Foi assim desde 1900 até mais ou menos 1970."
Surgimento e "progresso"
Não é exagero dizer que o Acre nasceu nos seringais. Os primeiros agrupamentos populacionais foram formados por trabalhadores que seguiam para a região para produzir a borracha e, desses núcleos iniciais, surgiram cidades como Xapuri, Brasiléia, Rio Branco, Cruzeiro do Sul e Feijó.
Essas pessoas vinham do nordeste, atraídas principalmente pela intensa propaganda dos seringalistas do Amazonas e do Pará.
"Somos descendentes de nordestinos", afirma Dionísio Barbosa de Aquino, o Daú, sindicalista e irmão do prefeito de Xapuri. "O pessoal veio para cá de 1900 a 1950. Quando chegavam a Manaus, os patrões escolhiam 10, 20, 30 homens e os traziam para seus seringais."
A queda do preço da borracha, após a entrada da Malásia no mercado mundial, piorou o quadro de exploração dos seringueiros, que só começou a ganhar novos tons durante a 2ª Guerra Mundial. Nesse período, o bloqueio do comércio com o sudeste asiático fez com que o látex brasileiro voltasse a ser valorizado internacionalmente, levando o governo a incentivar uma nova leva de migração para o Acre.
"Embarcamos em Fortaleza e viemos para o Acre para fazer a borracha em tempo de guerra", conta Vincenza Bezerra da Costa, que saiu do interior do Ceará, município de Alto Santo, em 1943, com nove irmãos. "Passamos por todo aquele sofrimento, tomando só água no navio. A gente trabalhou, fez muita borracha, ficou na colocação, onde me casei com um seringueiro. Naquele tempo eu morava no seringal, e todo mundo ficava só dentro do mato, fazendo o que o patrão mandava."
Nessa época, o acesso aos seringais era difícil, tornando-se praticamente impossível em época de chuva. Hoje o estado é cortado por estradas que ligam seus pontos extremos, elas próprias símbolo de um ideal equivocado de progresso.
"Fizeram esse monte de estradas, trouxeram os paulistas com os bois, dizendo que isso iria dar em progresso e dinheiro para o estado, mas olha o que provocou." A indignação de Daú tem fundamento. Na década de 1970, o governador acreano Vanderlei Dantas incentivou a instalação de pecuaristas vindos de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Mato Grosso, todos chamados de "paulistas", como parte do plano de desenvolvimento da Amazônia, elaborado pelo governo federal militar, para garantir a ocupação da região. Para facilitar a vinda dos pecuaristas, cortaram-se os créditos e incentivos aos seringalistas, o que levou à venda de muitas propriedades a preços irrisórios aos empresários do centro-sul do Brasil.
"Isso causou muitos problemas por aqui", conta Nilson Teixeira. "Surgiu um governador que facilitou a vinda dos sulistas, dizendo que o extrativismo da borracha estava em decadência. O que iria dar certo mesmo era a destruição da floresta para a implantação da pecuária, que seria a riqueza para o Acre."
A expulsão dos moradores da mata gerou uma massa de desamparados que só faria aumentar o número de miseráveis nas cidades do estado. Na capital, Rio Branco, vários bairros, como Cidade Nova, Taquari e Aeroporto Velho, surgiram pela chegada dos que, na época, eram chamados de "invasores". Estima-se que 10 mil famílias de seringueiros tenham ido para a capital, residir em favelas. Os que decidiam permanecer em suas terras, apesar de habitarem nelas havia muito tempo, foram designados como "posseiros", por não terem títulos de propriedade.
"Tudo isso se tornou um problema", diz Nilson Teixeira. "Mas criou-se também a resistência, que foi a luta dos seringueiros, dos extrativistas contra os fazendeiros e contra o poder, que na época visava à destruição da floresta e à expulsão dos seringueiros. No lugar do homem iria ficar o boi."
Resistência
A reação a essa inversão de valores não tardou. E grande influência na constituição dos movimentos sociais no Acre veio da ação da Igreja. "Participo do movimento desde seu nascimento, em 1975, quando surgiram as primeiras Comunidades Eclesiais de Base", conta Raimundo Mendes, o Raimundão, primo e companheiro de luta de Chico Mendes, e vereador em seu quarto mandato em Xapuri. "Vivi essa realidade e preferi deixar o emprego e me tornar seringueiro, aos 22 anos de idade. O trabalho sindical começou em 1975, mas Chico já atuava nas Comunidades Eclesiais de Base que estavam discutindo a questão da terra."
O principal instrumento dos seringueiros era o empate (movimento pacífico que visava impedir o desmatamento e a expulsão dos trabalhadores de suas terras). Reunidos em grandes grupos, eles se concentravam em áreas ameaçadas pelos fazendeiros. "Lembro que houve um empate, em maio de 1988, no Seringal Cachoeira. Enfrentamos 47 policiais, todos com metralhadoras. As mulheres saíram na frente, cantando o Hino Nacional, com a bandeira na mão, para fazer com que eles baixassem as armas." Ocorreram empates importantes também em colocações como Fazenda Jordão, Nova Esperança e Dependência.
Os participantes apostavam na comoção dos jagunços, ou "peões rodados", como eles se autodenominavam. O movimento era organizado e exigia sacrifício de quem estava na frente dos combates e dos que não participavam diretamente. "Uns ficavam no empate, outros voltavam para a colocação a fim de produzir alimentos para os companheiros. Muito sangue foi derramado", relembra Daú.
O mais importante dos empates ocorreu poucos meses antes da morte de Chico Mendes. "A greve em Cachoeira se estendeu pelos meses de março, abril e maio de 1988, fizemos uma paralisação de 90 dias, que reuniu de 100 a 200 homens", conta Daú. "Foi uma luta séria para impedir a entrada da família de Darli Alves, que tinha comprado o Seringal Cachoeira. Darli, em conluio com o governo do estado, conseguiu apoio oficial. Os policiais todos do Acre vieram para Xapuri, ficou um terror na cidade. Foram baleados dois jovens pela família de Darli. Esse foi o maior empate que o Acre já viu."
Educação e mudança
A partir das demandas dos trabalhadores e com base nos métodos do educador Paulo Freire, foi desenvolvido um conceito de escola diferenciado: o Projeto Seringueiro, criado em 1976. A educação tinha início no cotidiano do trabalhador e o objetivo final era a capacitação para a transformação de sua realidade. Grande parte das figuras de projeção política no Acre passaram, como estudantes ou educadores, por essas escolas.
"A mudança de mentalidade em nosso estado nos permitiu avançar. Tudo é fruto do amadurecimento de uma consciência política, de um trabalho de educação a partir de discussões", afirma Raimundão.
Utilizando como material principal a cartilha Poronga (nome da lamparina utilizada pelo seringueiro na cabeça), o projeto levou noções de cidadania àqueles que antes eram considerados meros objetos pelas elites, como Raimundão insiste em frisar. "Ter levado a educação aos mais distantes locais dentro da floresta é uma conquista muito significativa, porque nasci e me criei junto a muitos outros que, antes e depois de mim, não tinham direito de aprender a ler e escrever. Hoje isso não acontece mais. Temos agentes de saúde que se formaram em nossas escolas e que atuam em nossas comunidades, sem ter sido necessário que viessem para a cidade."
Fruto visível das lutas foi também a criação das reservas extrativistas do Acre, proposta no 1º Encontro Nacional de Seringueiros, em 1985, quando representantes da categoria, vindos de toda a Amazônia, mostraram pela primeira vez as dimensões de sua realidade. Diz Nilson Teixeira: "Em 1988 foi fundada a cooperativa de produtores para representar o extrativismo. Os patrões estavam, realmente, acabando. Cada seringueiro entrou com uma quota de 50 quilos de borracha para a compra de balança, papel".
A área das reservas pertence à nação, mas elas são ocupadas e exploradas pelas populações extrativistas. Isso, porém, não impede o surgimento de problemas, como ressalta Nilson Teixeira: "Hoje, temos a reserva criada, a cooperativa que nos representa, assim como a atenção de senadores, deputados estaduais e federais. Crescemos muito. Agora, estamos partindo para um novo tipo de luta". Essa frente visa suprimir a prática de queimadas dentro das reservas, além de mostrar aos seringueiros de determinadas regiões as desvantagens da comercialização desenfreada de madeiras nobres, que estão sendo vendidas a preços insignificantes.
"Estamos num segundo empate, agora de consciência. Antes era o fazendeiro que desmatava, agora somos nós que estamos destruindo a floresta, com nossas mãos. Temos de nos mobilizar para que ela fique aí por toda a vida, para mim, para meu filho, para o filho dele. Estamos caminhando nesse rumo, em busca de alternativas para viver bem na mata e cuidar dela muito mais do que antes. Lembro-me de quando Xapuri tinha 5 mil habitantes. Hoje são quase 14 mil. A cidade está crescendo assustadoramente e, se não repassarmos os conhecimentos que adquirimos, teremos a destruição de tudo o que fizemos."
Alternativas racionais
As estradas e a pecuária não levaram para o Acre o progresso esperado: cidades populosas, comércio intenso de artigos manufaturados e o consumo da carne bovina, idéias totalmente vinculadas a conceitos urbanos de desenvolvimento. Os preços dos produtos não caíram, e o custo de vida chegou a aumentar. As grandes fazendas não necessitam de muitos trabalhadores para cuidar dos rebanhos. A maior parte da madeira extraída no estado é exportada, sem pagamento de impostos. As prefeituras e o governo estadual são os principais empregadores de boa parte da mão-de-obra, mesmo com suas economias estagnadas.
Por outro lado, as opções criadas por movimentos sociais têm apresentado vantagens. Hoje, a arrecadação com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da borracha e da castanha é bem maior do que a da pecuária. A empresa em Xapuri que mais paga tributos ao estado é a usina de processamento de castanhas, pertencente a uma cooperativa.
"Nossa comunidade já é auto-sustentável. Posso dizer que o modelo deu certo", afirma com orgulho Nilson Teixeira. "Não só geramos empregos nas comunidades, como contratamos pessoal da cidade. Ao mesmo tempo que tratamos do manejo, desenvolvemos pesquisa e fazemos o levantamento de espécies vegetais." Além de atender às demandas do mercado, as cooperativas oferecem alternativas de produtos, como novas variedades de madeira de qualidade: "É importante dizer que esse projeto piloto de manejo nos permitiu explorar comercialmente uma lista de árvores pouco conhecidas, que hoje alcançam preços quase iguais aos das nobres".
Boa parte dos seringueiros não organizados vive hoje na dependência dos chamados "marreteiros", dos quais são obrigados a comprar mantimentos e instrumentos de trabalho a preços abusivos. Entretanto, aqueles que estão dentro das reservas extrativistas e se agruparam em cooperativas, além de comercializar sua produção em grandes quantidades, contam ainda com subsídios do estado, garantidos pela Lei Chico Mendes, aprovada em 1999.
Mas a maior das conquistas é apontada por Raimundão: "Acho que uma das vitórias foi ter conseguido o direito de permanecer na terra sem mais ser molestado ou violentado por aqueles que se diziam donos. Hoje temos conhecimento de nossa cidadania, do direito de merecer o mesmo respeito que naquela época só os patrões tinham. Agora somos senhores também".
Os seringueiros e extrativistas do Acre, representados pelas figuras de Raimundão e Chico Mendes, ao lado de lideranças indígenas e outros sindicalistas, criaram a Aliança dos Povos da Floresta. Hoje, se fortalece no Acre o Governo dos Povos da Floresta, firmemente consolidado num consciente e participante movimento social. É a prova mais básica da conceituação que faz o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano: "A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será". Ou o que já está sendo.
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