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Ouro líquido
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Reservas hídricas do mundo estão na mira do capital privado
GIOVANNA MODÉ e ANDRÉ DEAK
Declarado Ano Internacional da Água Doce pela Organização das Nações Unidas (ONU), 2003 corre o risco de ser lembrado não pelos três importantes encontros realizados em março para discutir a situação dos recursos hídricos no mundo, mas por um conflito bélico no Oriente Médio, ironicamente uma das regiões do planeta onde esse líquido é mais escasso. Afinal, a grita de ambientalistas e especialistas da área não teve o mesmo destaque na mídia que a espetacular exibição do avanço tecnológico da máquina de guerra de duas grandes potências.
Por essa razão, a opinião pública talvez não tenha prestado muita atenção ao que estava sendo discutido no 3º Fórum Mundial da Água, em Kyoto (Japão), no 1º Fórum Alternativo Mundial da Água, em Florença (Itália), e no Fórum Social das Águas, em Cotia (SP), cujas conclusões coincidem num ponto: estamos em alerta vermelho. A gravidade da situação ficou muito clara nas declarações do diretor-geral da Unesco (órgão da ONU para educação, ciência e cultura), Koichiro Matsuura, feitas durante o lançamento do Relatório Mundial de Recursos Hídricos da ONU, no início de março em Paris: "De todas as crises sociais e naturais que enfrentamos, a da água é a que mais afeta nossa sobrevivência, e nenhuma região será poupada. Nos próximos 20 anos, a previsão é de queda de um terço na média mundial de abastecimento por habitante".
Como cerca de 70% da superfície da Terra é coberta de água, falar de escassez pode parecer exagero. Porém, de todo esse volume, apenas 1% é próprio para consumo. E com as restrições no abastecimento projetadas para o futuro próximo, cujas causas são a poluição, o desperdício, mas principalmente o aumento do consumo, que no mundo, segundo a ONU, dobra a cada 20 anos, essa diminuta parcela se torna ainda mais valiosa. Ótimo cenário para as grandes corporações internacionais, que, orientadas pela lei da oferta e da procura, disputam espaço num mercado globalizado de água que já movimenta US$ 400 bilhões por ano.
O avanço do setor privado na exploração dos recursos hídricos é tema central do livro Ouro Azul, dos canadenses Maude Barlow e Tony Clarke, lançado este ano no Brasil, no qual os autores analisam a participação de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) em acordos estratégicos para estabelecer um mercado global de água.
Depois de estudar diversos casos no mundo, Barlow e Clarke são enfáticos ao afirmar que uma das conseqüências inevitáveis da privatização é o aumento de tarifas, e chamam a atenção para os riscos que negociações internacionais para a formação de blocos econômicos, como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), podem representar. Como exemplo, Clarke cita o processo em que a norte-americana Sun Belt Water Corporation exige uma indenização de US$ 10 bilhões do governo do Canadá, por ter perdido um contrato de exportação de água da Colúmbia Britânica, naquele país, para a Califórnia, nos Estados Unidos. O litígio foi motivado pela proibição de vendas externas de grandes volumes do líquido, imposta pela província canadense. A empresa, por sua vez, alega que essa medida fere as regras do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), do qual os dois países são membros.
Leonardo Morelli, ativista e autor de O Grito das Águas, livro também lançado este ano, diz que desde o final da década de 1980 estrategistas vêm pressionando os governos dos países do hemisfério norte a usar tanto o FMI quanto o Bird como instrumentos para a imposição de mecanismos que possibilitem a privatização da água. Isso se daria "de início por meio da transferência de empresas de abastecimento e saneamento do setor público para o privado e posteriormente abrindo caminho para a cobrança pelo acesso a nascentes, rios e outras reservas de água doce", afirma ele.
A julgar pela pauta da quinta reunião ministerial da OMC, marcada para setembro, em Cancún, no México, medidas dessa natureza não devem tardar. Um dos temas do encontro será a eliminação de monopólios governamentais, muito comuns no setor de recursos hídricos. O FMI dá mostras de caminhar na mesma direção, uma vez que sua atuação também tem favorecido as grandes corporações. Dos 40 países para os quais liberou empréstimos em 2000, 12 tiveram de assinar acordos com exigências de privatização dos serviços de água, entre outras.
Na contramão dessa tendência, o município boliviano de Cochabamba dá um exemplo de como a sociedade civil organizada pode influir nesse processo. Em 1998, o governo da Bolívia solicitou ao Bird um financiamento de US$ 25 milhões para sanar as contas do setor hídrico daquela cidade. A instituição financeira condicionou a liberação dos recursos à privatização da empresa pública de água local. Foi firmado, então, um acordo entre o governo, o Bird e a transnacional norte-americana Bechtel. Com a mudança de administração, em janeiro de 2000 a tarifa de água já havia sofrido aumento de 35%, provocando a revolta da população, que saiu às ruas num protesto que durou quatro dias. Uma pesquisa de opinião mostrou que mais de 90% dos moradores da cidade estavam indignados com o preço cobrado pelos serviços. Segundo Oscar Olivera, líder da manifestação, as contas de água estavam consumindo 20% do orçamento das famílias mais pobres – mais do que gastavam com comida. Uma semana após o início da mobilização social, o então presidente Hugo Banzer anunciava o rompimento do contrato com a empresa norte-americana, que, por sua vez, exige uma indenização de US$ 25 milhões do governo da Bolívia.
Realidade nacional
No centro da discussão sobre a questão da água doce está o Brasil, que detém 12% do total do planeta, a maior reserva mundial. Para a população do país onde ficam a bacia Amazônica e o Pantanal Mato-Grossense talvez seja difícil ter a exata noção dos riscos que a anunciada escassez poderá trazer. Ainda mais porque à abundância que se encontra na superfície somam-se 70% do Aqüífero Guarani, o maior reservatório subterrâneo de água doce do mundo, com área de cerca de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, equivalente à dos territórios de Espanha, França e Inglaterra juntos. Os 30% restantes estão divididos entre Argentina, Paraguai e Uruguai.
Mas será que o fato de ter todo esse suprimento em solo pátrio representa uma garantia para os brasileiros? As aparências podem enganar, sobretudo pela maneira como essa riqueza vem sendo utilizada. "Se soubermos usar não vai faltar água nos próximos anos", assegura o pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), Aldo Rebouças. Mas ele alerta para o fato de que, se não houver mudanças na forma de consumir e administrar esse potencial e se o setor hídrico não receber mais atenção das autoridades, o Brasil poderá viver uma crise sem precedentes. "Tem de haver uma política integrada para a gestão de águas subterrâneas e dos rios e o aproveitamento máximo de cada gota", defende.
O problema começa na grande quantidade de água que é desperdiçada no país. De acordo com Rebouças, o índice de perda total de água tratada e injetada nas redes de distribuição varia de 40% a 60% no Brasil, devido, principalmente, às tubulações antigas, aos vazamentos e às ligações clandestinas (popularmente conhecidas como "gatos"). Nos países desenvolvidos, essa proporção não passa de 10%.
Mas não são apenas os canais de abastecimento os responsáveis pela perda: a população brasileira também não está poupando o recurso como deveria. O Programa de Uso Racional da Água (Pura), desenvolvido na Grande São Paulo pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) em parceria com a USP, constatou que algumas formas de desperdício ainda são comuns: banhos de chuveiro prolongados, descargas sanitárias antigas (elas liberam de 18 a 20 litros de água, enquanto os modelos mais recentes despejam apenas 6 litros por vez) e jatos de mangueira usados para lavar carros e calçadas.
Mas a área que causa maior preocupação é a agricultura, que responde por quase 63% do consumo de água no país. Rebouças explica esse dado lembrando um estudo das Nações Unidas: "A ONU reconhece que, se houvesse uma redução de 10% na água utilizada em agricultura no planeta, isso já seria suficiente para abastecer o dobro da população mundial, que hoje é de 6,3 bilhões de pessoas". No Brasil, o maior índice de perda está exatamente nesse setor. De acordo com o pesquisador da USP, o desperdício ocorre em 93% dos quase 3 milhões de hectares irrigados no país, onde ainda são utilizadas técnicas antigas e pouco eficientes se comparadas às que são adotadas nos países desenvolvidos.
Ao problema da perda soma-se o da poluição dos rios e mananciais em solo nacional, que torna parte das reservas imprópria para consumo. Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, metade da água disponível é afetada pelos lixões. A mesma realidade se verifica na cidade do Rio de Janeiro, onde a oferta foi reduzida devido à contaminação crescente por esgoto urbano. Na região norte do país, onde a abundância é maior, há despejo de agrotóxicos, mercúrio dos garimpos e lixo bruto nos rios. A situação se repete nas reservas subterrâneas: 16% da área de recarga do Aqüífero Guarani, por exemplo, está localizada no estado de São Paulo, em locais de alto risco de poluição.
Paradoxos
Ao lado de tamanho desperdício e descaso com a poluição, há, contraditoriamente, regiões desabastecidas, como o semi-árido, e 11 milhões de brasileiros que não têm sequer água limpa para beber, segundo dados oficiais. Isso sem contar a falta de saneamento básico: 24% da população do país não tem acesso à água tratada e 60% vive sem coleta de esgoto. Essa é, aliás, uma questão de saúde pública com graves conseqüências. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cada dólar investido em saneamento básico de uma cidade representa redução de cerca de US$ 4 a US$ 5 em despesas médicas. De fato, entre 1996 e 2000, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou nada menos que 3 milhões de internações provocadas por doenças causadas pela falta de saneamento.
O paradoxo da situação brasileira fica evidente quando se compara a realidade dos estados que dispõem de grande suprimento com a de outros menos privilegiados. Nem sempre os moradores das regiões com as maiores reservas têm garantia de abastecimento. Cada brasileiro tem, em média, 35 mil metros cúbicos de água disponível por ano – uma das proporções mais altas do mundo – , segundo dados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se analisarmos somente o estado do Amazonas, a disponibilidade chega a 605,6 mil metros cúbicos por habitante por ano. Por outro lado, a de Pernambuco, por exemplo, é de aproximadamente 1,2 mil metros cúbicos por habitante por ano. Ironicamente, os moradores desses dois estados enfrentam questões semelhantes relacionadas ao acesso à água tratada. Para Rebouças, não seria exagero afirmar que os problemas de saneamento básico de cidades como Manaus e Belém, onde estão as maiores reservas brasileiras, pouco diferem dos de Recife, São Paulo ou Porto Alegre. "Isso porque o assunto não tem recebido a devida atenção das autoridades. Tradicionalmente, há inércia no desenvolvimento de políticas públicas para o setor", diz o pesquisador.
De acordo com a lei 9.433, de 1997, a água no Brasil é considerada um bem de domínio público. O titular da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, João Bosco Senra, que esteve no Fórum de Kyoto e pôde sentir de perto a pressão internacional, afirma que o governo está atento a essa questão, que vem sendo tratada com enfoque social. Como exemplo ele cita o programa Sede Zero, uma ação que envolverá diversos ministérios com o objetivo de assegurar o mínimo de 40 litros diários de água por pessoa para a população carente. Outra mostra disso, segundo Senra, é o novo plano de recursos hídricos para o país, que está sendo elaborado com olhos voltados, sobretudo, para o problema da pobreza. "O valor econômico da água existe, mas o mais importante é o aspecto social", diz ele, reconhecendo, porém, que os estudos caminham lentamente e ainda estão na fase de diagnóstico da situação dos recursos hídricos no Brasil.
O custo da racionalização
Uma das ações mais recentes em relação à gestão das águas no país foi a adoção do sistema de cobrança pelo seu uso, instituída, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), justamente para racionalizar o consumo. Atualmente, nas contas mensais de água estão incluídos os serviços de abastecimento e de saneamento, e essa seria uma terceira cobrança. O sistema será administrado pelos comitês de bacias hidrográficas – cada um deles formado por representantes do estado, do município e da sociedade civil, com liberdade para negociar com a ANA soluções para sua região. "O objetivo é fazer com que todos os setores racionalizem o uso da água, e para isso ela precisa ter um valor. A quantia arrecadada será revertida para o respectivo comitê, que, por sua vez, deve aplicar a verba na própria bacia", diz Marcos Freitas, diretor da agência.
O pioneiro na cobrança dessa taxa foi o Comitê para Integração da Bacia do Rio Paraíba do Sul (Ceivap), que abastece parte dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Desde março, mais de 4 mil usuários – empresas, companhias de saneamento e irrigadores – passaram a receber mensalmente os boletos de pagamento. Os preços variam entre R$ 0,008 e R$ 0,28 por metro cúbico, dependendo da atividade do usuário. Para fazer a conta final, o comitê considera a quantidade e finalidade da água usada, e se a empresa colabora com a preservação do meio ambiente. Nos casos de empreendimentos que despejam esgoto no rio, por exemplo, será aplicada a taxa mais alta. Por outro lado, aqueles que reutilizam parte da água que consomem e não poluem pagarão o valor mínimo. O consumo doméstico está isento da cobrança.
Vale ressaltar que em maio o Ceivap passou a cogitar o cancelamento da cobrança pelo uso da água no final de 2003. Essa decisão se deve ao fato de o governo, por questões orçamentárias, não mais poder cumprir a promessa de investir na bacia do rio Paraíba do Sul a totalidade dos recursos arrecadados. Como esse compromisso era uma das premissas para a implantação da taxação e serviu de estímulo à adesão dos usuários, a entidade está estudando se vai ou não eliminá-la – uma medida que, se confirmada, certamente terá influência sobre o caminho a ser seguido pelos demais comitês espalhados pelo país. Cada um deles deverá desenvolver regras próprias e determinar os valores que cada tipo de usuário terá de pagar. Em São Paulo, na bacia do Alto Tietê, a cobrança pelo uso da água ainda não foi estabelecida, mas já está em trâmite.
Riscos potenciais
Em relação à gestão das águas subterrâneas, chama a atenção um programa voltado para o Aqüífero Guarani, financiado pelo Bird, através do Global Environment Facility (Fundo para o Meio Ambiente Mundial). Batizado de Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani, ele foi elaborado no ano 2000 e trata a água como recurso econômico. Os objetivos, segundo consta no documento que o constituiu, são "reconhecer o aqüífero como portador de recursos valiosos e criar um modelo para a gestão coordenada do sistema, que inclua arranjos jurídicos e institucionais conjuntos, além do intercâmbio de dados".
O fato de o financiamento do Bird estar por trás do projeto de gestão da reserva subterrânea é alvo de críticas por parte de ativistas, que condenam a visão da água como um bem puramente econômico. "Ela não é apenas uma necessidade, mas um direito de todo cidadão", afirma Leonardo Morelli, que também integra a organização não-governamental Water Global Coalition. Analisando exemplos de outros países, a canadense Maude Barlow concorda: "Isso não é uma questão de semântica; a diferença de interpretação é crucial. Um direito humano não pode ser vendido", enfatiza ela. Como resposta, Marcos Freitas, da ANA, explica que não se trata de um financiamento, mas de uma "doação, com verba de vários países desenvolvidos, mas que conta também com contribuições de nações em desenvolvimento, como o Brasil, por exemplo". Segundo ele, o Bird libera os recursos e quem administra é a Organização dos Estados Americanos (OEA). "Porém, a responsabilidade pela execução do projeto é dos governos dos países onde está o aqüífero: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai. O Bird não intervém nas decisões de cada um deles", assegura.
Outro ponto que provoca a reação de ativistas e representantes de organizações não-governamentais é o avanço da iniciativa privada no setor hídrico. Existem, atualmente, cerca de 45 municípios cujo serviço de saneamento básico é controlado por empresas particulares, de acordo com a Associação Brasileira de Concessionárias Públicas de Saneamento (Abcon). É o que acontece, por exemplo, nos estados de São Paulo e Amazonas, onde estão presentes subsidiárias da multinacional francesa Suez, uma das maiores do mundo no setor hídrico. A cidade de Limeira, no interior paulista, foi a primeira a privatizar o serviço, em 1995. A multinacional investiu apenas R$ 18 milhões dos R$ 36 milhões previstos no acordo de concessão. Os usuários, por sua vez, reclamam do aumento de tarifas e da baixa qualidade dos serviços prestados. Existe ainda uma denúncia de corrupção que envolve a empresa, levada ao Ministério Público. Apesar disso, cinco anos depois, a mesma companhia comprou a Manaus Saneamento na capital amazonense.
Outro motivo de polêmica é a presença de empresas estrangeiras na exploração de potenciais de água superficial e subterrânea do país. Elas estão autorizadas a participar de concorrências para obter concessões para construir hidrelétricas, administrar serviços de água e esgoto, e desenvolver projetos de irrigação. "Basta seguir as regras explicitadas nos contratos, obter licenças ambientais, autorizações e outorgas para uso da água e, sobretudo, cumprir as leis brasileiras", explica Freitas, da ANA.
Por essa razão, merece atenção especial a adesão a tratados internacionais como a Alca, por exemplo, em que, segundo Tony Clarke, "a água é tratada como uma commodity e não como um direito". Freitas rebate, dizendo que no âmbito das negociações da Alca não há nada definido em relação ao uso da água dos rios, lagos e lençóis freáticos. "Posso assegurar que até hoje nada foi apresentado que altere os princípios dos marcos legais brasileiros nessa área", afirma ele.
Medidas preventivas
Diante do quadro que mescla desperdício, poluição das reservas, lentidão das políticas públicas e jogo de interesses, encontrar um caminho definitivo e eficaz para o setor hídrico no Brasil ainda parece distante. "Se persistir a tradicional idéia de que a única solução é o aumento da oferta, a situação ficará caótica", afirma o pesquisador Aldo Rebouças. Atualmente, ele e outros especialistas buscam alternativas para evitar a crise de abastecimento, e algumas já têm sua eficiência comprovada.
Uma das medidas mais urgentes, insiste Rebouças, é a expansão da técnica de reuso, ou seja, o processo pelo qual a mesma água é utilizada mais de uma vez, tanto para a mesma finalidade quanto para outras distintas. "Não é lícito usar água de boa qualidade onde se pode empregar uma de qualidade inferior. Não dá para lavar um pátio com água potável, por exemplo", afirma o pesquisador.
Se a prática do reuso ainda não é muito difundida no país, ao menos existem alguns bons exemplos. Em São Paulo, há cerca de 150 empresas que já o adotam. Recentemente, a unidade da Volkswagen de Taubaté (SP) contratou a Hidrogesp, companhia paulista especializada em recursos hídricos, para implantar essa técnica. A finalidade é reutilizar 70% da água consumida em suas instalações para atividades como pintura, refrigeração e jardinagem. Com isso, a fábrica deixará de consumir 70 mil metros cúbicos de água da rede pública por mês.
Outra alternativa que vem chamando a atenção é a utilização de cisternas na região do semi-árido brasileiro. Organizações da sociedade civil representadas pela Articulação no Semi-Árido (ASA), em parceria com o governo, elaboraram um programa que possibilita a implantação de 1 milhão desses dispositivos, que permitem captar a água das chuvas no telhado e armazená-la para uso no período de seca.
Uma experiência já foi feita nos últimos dois anos, com a instalação de 12 mil cisternas no nordeste, ao preço de cerca de R$ 800 cada uma. O problema daquela região, na verdade, não é falta de chuva, já que o índice pluviométrico fica em torno de 700 mm por ano, mais alto que o de Berlim (520 mm), na Alemanha, ou Paris (660 mm), na França. A seca é motivada, na verdade, pela evaporação, bem mais alta que nessas cidades européias. Esse programa tem também um aspecto cidadão: os moradores não vão "ganhar" uma cisterna, mas parte da população será capacitada a construí-las.
Fica então a pergunta: se o sistema funciona, por que não foi implantado antes? De acordo com Naidison Baptista, um dos coordenadores da ASA, as pessoas não acreditavam em soluções tão simples para problemas de tal magnitude. "Alternativas como as cisternas, ainda mais desenvolvidas pelas próprias famílias, eram consideradas medidas paliativas e atrasadas", diz ele. Um estudo feito por essa mesma organização já comprovou a viabilidade do programa: em toda a região, apenas 4% dos telhados não comportam o sistema.
Baptista lembra ainda a reviravolta política que isso representa num cenário de carência, em que votos costumavam ser trocados por água. Ele cita o caso de Donato da Silva, que, referindo-se às mudanças causadas pela introdução desse sistema em sua propriedade, em Feira de Santana, na Bahia, diz que passou a ser um "homem livre". "Para não ver minha mulher e meus filhos morrerem de sede, sempre troquei meu voto por água na época da seca. Hoje, tenho água de qualidade e me sinto livre para votar em quem eu quero." Essa declaração, vale lembrar, foi dada por um habitante do país em que fica a maior reserva de água doce do mundo.
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