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Desemprego moderno


Paredes pré-fabricadas (drywall) / Foto: Divulgação

Sistemas industrializados tiram trabalhadores dos canteiros de obras

ALBERTO MAWAKDIYE

A enorme rapidez com que as construtoras brasileiras estão adotando sistemas de construção industrializados está tornando cada vez mais remota a esperança de que o setor volte a ser o grande criador de empregos que foi até o final dos anos 1980. Uma estimativa do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) dá conta de que hoje, na região sudeste, a mais desenvolvida do país, sete de cada dez edifícios já são construídos com alguma forma de industrialização. Isso significa que as estruturas – paredes, redes elétrica e hidráulica, esquadrias e até as cozinhas e banheiros – já chegam prontas e nas medidas certas ao canteiro de obras, restando apenas o trabalho de montagem. O impacto desses sistemas sobre o nível de emprego – já reduzido pela crise econômica que castiga o segmento há mais de dez anos – é óbvio. Nos canteiros mais industrializados, onde antes trabalhariam dez operários, hoje há apenas três.

Com esse processo, a velha função de servente, a que de fato absorvia o maior contingente de trabalhadores – principalmente os de menor grau de escolarização e qualificação profissional –, perdeu quase toda a sua importância nas grandes construtoras. Os novos sistemas não apenas exigem profissionais mais qualificados, como também dispensam a multidão de ajudantes que formavam o cenário tradicional de uma obra de construção civil. A antiga imagem do canteiro como uma espécie de torre de babel, com operários descarregando caminhões, jogando tijolos uns para os outros, empurrando carrinhos e levando latas de tinta sobre os ombros, já não corresponde à realidade nos grandes centros urbanos. O homem também se tornou dispensável como meio de transporte. Os guindastes, gruas e elevadores especiais substituíram-no inteiramente nos canteiros modernos.

"A construção civil brasileira está passando por uma pequena revolução silenciosa", diz Maurício Bianchi, coordenador do Comitê de Tecnologia e Qualidade do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP) e diretor da Construtora BKO, uma das novas empresas que se alinham entre aquelas que incorporaram as mais modernas técnicas do setor. "Não poderia ser diferente. Toda a economia brasileira experimentou avanços tecnológicos e organizacionais, e seria absurdo se a construção civil ficasse fora desse processo."

Calcula-se que, com registro em carteira, cerca de 3,1 milhões de brasileiros estejam trabalhando hoje diretamente na construção civil, nas tradicionais funções de pedreiro, carpinteiro, pintor, eletricista e azulejista, entre outras. Em 1990, esse total aproximava-se dos 4 milhões. No estado de São Paulo, a construção civil empregava formalmente cerca de 1 milhão de operários há dez anos, cifra que hoje não ultrapassa 500 mil. Pouco menos da metade desse contingente – algo em torno de 200 mil – está fixado na região metropolitana de São Paulo. Praticamente todo esse pessoal está colocado em construtoras de médio ou grande porte, ou em empresas pequenas, mas tecnologicamente avançadas. Para se ter uma idéia do que esse número representa, ele corresponde a apenas 2,7% da mão-de-obra ocupada na Grande São Paulo, uma porcentagem que já foi de 4,4% em 1988.

Subemprego

Naturalmente, aqueles que não conseguiram permanecer registrados migraram para outras profissões ou conformaram-se com o subemprego. Nesse último caso, as cifras são assustadoras. Uma estimativa da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados do Estado de São Paulo (Seade) dá conta de que 190 mil trabalhadores – número quase igual ao daqueles que têm carteira assinada – estejam atuando na Grande São Paulo como avulsos em construtoras tecnologicamente mais atrasadas ou no segmento de reformas domésticas, tão poderoso que absorve mais de um terço da produção de cimento no Brasil (o chamado "consumo-formiga"). É uma proporção que, em maior ou menor grau, repete-se em várias capitais do país.

Ou seja, a informalidade – que sempre existiu em escala razoável na construção civil, servindo como uma espécie de "amortecedor" do desemprego estrutural – parece estar agora avançando sobre nichos que eram antes do emprego formal. "Não há dúvida de que a modernização tecnológica tem algo a ver com esse processo", afirma Paula Montagner, gerente de Análise Socioeconômica da Fundação Seade, que acrescenta: "Somada ao pequeno investimento que o setor vem recebendo, resulta num quadro dramático para o trabalhador". De fato, os investimentos imobiliários em São Paulo, como no restante do Brasil, não estão compensando em termos de volume as perdas de postos de trabalho devido à industrialização – com a possível exceção do segmento de shopping centers, que deverá investir R$ 1 bilhão nos próximos dois anos na construção de 25 empreendimentos espalhados pelo país, todos certamente com a utilização de sistemas industrializados.

Na capital paulista, foram vendidas no ano passado 14,7 mil novas unidades residenciais. Em 1994, foram 12,6 mil unidades. Ou seja, o volume de vendas não poderia estar mais estagnado. No Recife, os investimentos estão atualmente concentrados no moderníssimo pólo clínico-hospitalar da cidade, mas o número de construções residenciais e comerciais também caiu. Para as construtoras de Salvador, cidade onde a restauração do velho Pelourinho criou um mercado incomparável no segmento de patrimônio histórico, as obras também escasseiam tanto nesse como em outros setores. O quadro se repete no Rio de Janeiro e no sul do país. E as poucas obras importantes em todas essas capitais estão sendo executadas igualmente através de sistemas industrializados. "Nenhuma construtora brasileira que se preze pode fugir das novas tecnologias", diz José Antonio de Lucas Simon, da Incorporadora Malus, do Recife, especializada em edifícios residenciais, e presidente da associação imobiliária local. "Elas barateiam os custos, melhoram a qualidade e a produtividade e, na verdade, acabam por viabilizar nosso negócio, que está muito afetado pela queda do poder aquisitivo da população."

Atraso

Diga-se que as mudanças tecnológicas em curso estão longe de ser indesejáveis. Um dos setores tecnologicamente mais atrasados da economia até meados dos anos 1980, a indústria de construção imobiliária mal merecia esse nome antes que esses novos processos começassem a ser adotados. Até pouco menos de duas décadas atrás, quase não havia diferença entre erguer um arranha-céu e uma residência comum, a não ser em termos de escala – os procedimentos eram rigorosamente artesanais e dependiam do esforço coletivo dos operários, nem sempre bem encaminhado. O prejuízo era imenso: no mínimo um quarto de todo o material era desperdiçado durante a construção. Os estoques não eram controlados – uma obra podia ficar parada durante dias à espera dos blocos de concreto, por exemplo –, e o número de acidentes de trabalho era o maior da economia. O impacto provocado pelos canteiros na vizinhança também era significativo.

"Na verdade, o setor imobiliário jamais precisou ser muito eficiente no Brasil", reconhece José Roberto Bernasconi, ex-presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo e dono de uma tradicional empresa gerenciadora de obras, a Maubertec. "O preço relativamente baixo dos materiais, a superoferta de mão-de-obra e certo desconhecimento dos consumidores sobre qualidade da construção acabavam por desestimular as empresas a investir em tecnologia." A conseqüência desse descaso foi, muitas vezes, edifícios algo desajeitados do ponto de vista técnico, ou mesmo francamente ruins. De qualquer maneira, o setor sustentava uma espécie de pleno emprego, que vigorou durante os anos 1960 e 1970.

De fato, foi a construção imobiliária (e, em menor escala, a de infra-estrutura) que absorveu o grosso da mão-de-obra excedente naquele período em que o Brasil apresentava taxas de crescimento próximas dos 10% anuais, fruto do enorme esforço de industrialização promovido pelos governos militares e da urbanização compulsória que decorreu dessa política. Naquelas décadas, o país deixou de ser semi-agrário – hoje, mais de 70% da população vive nas cidades. Nunca se construiu tanto como naquela época, de prédios a conjuntos habitacionais, da Ponte Rio-Niterói à Transamazônica e à Usina de Itaipu. Se a festa acabou juntamente com o "milagre econômico" – cuja herança foi dívida externa, inflação e desaquecimento econômico –, a imagem da construção civil como gerador universal de empregos permaneceu.

Gesso

Embora certamente inevitável, é provável que a adoção em larga escala dos sistemas construtivos industrializados ocorresse em ritmo mais lento caso a moeda brasileira não tivesse sido estabilizada a partir dos anos 1990. O fim da "ciranda financeira", por meio da qual as construtoras ganhavam fortunas da noite para o dia graças à inflação, compensando a falta de pedidos e a já visível ineficiência dos canteiros de obras, condenou todas elas a buscarem outros caminhos. A adoção de novas técnicas, fenômeno já antigo no Primeiro Mundo, apareceu como a solução natural para enfrentar a redução das margens de lucro. A abertura do mercado, a chegada de dezenas de produtores estrangeiros de componentes para construção civil, que vieram estimulados pelo cenário que parecia se abrir no país, e a posterior equiparação tecnológica de antigas fábricas brasileiras fecharam o circuito.

"O fato é que não há canteiros de obras industrializados sem uma rede mais ou menos densa de fornecedores de componentes", explica Cláudio Metidieri, engenheiro e pesquisador da Divisão de Engenharia Civil do IPT. "O Brasil conseguiu montar essa rede meio aos trancos e barrancos, mas muito rapidamente. Hoje, está capacitado a executar obras imobiliárias equivalentes às da Europa e dos Estados Unidos." As inovações não se restringiram aos materiais. Uma construção industrializada exige uma logística afinadíssima em todas as suas fases, pois é obrigatório o encadeamento das etapas a partir de um rígido cronograma de trabalho. Do recebimento dos módulos construtivos no canteiro até o acabamento, passando pelo levantamento das paredes e a execução das instalações, tudo é planejado antecipadamente, e os projetos arquitetônico e executivo têm importância estratégica nesse fluxo. É neles que os tamanhos e volumes são calculados e fixados. As fábricas ajudaram as construtoras a se apossarem dessa tecnologia organizacional, colocando à disposição materiais nos modelos e dimensões mais variados.

Já existem hoje no Brasil mais de 180 fábricas de componentes industrializados de construção, concentradas principalmente na região centro-sul. Essas empresas introduziram produtos como o drywall – as paredes de gesso acartonado que substituíram as de alvenaria em praticamente todos os edifícios modernos – ou desenvolveram itens já fabricados em pequena escala no país, como as placas pré-moldadas de concreto e componentes elétricos e hidráulicos modulares. Note-se que todas essas indústrias, mesmo as de origem nacional, são absolutamente automatizadas e não são exatamente geradoras de emprego. Algumas contam com apenas dez operários.

Essas fábricas foram as responsáveis indiretas pelo enorme salto de produtividade dos canteiros imobiliários brasileiros. Quando empregavam processos artesanais, as construtoras chegavam a apresentar, muitas vezes, uma produtividade de somente 80 hh/m2 (homens-hora por metro quadrado). As mais envolvidas com processos industrializados fizeram despencar esse índice para 15 a 20 hh/m2, embora a média do país situe-se ainda na casa dos 45 hh/m2. Na Dinamarca, ela é de 22 hh/m2. A brasileira equivale ainda a 32% da norte-americana, por exemplo. "Na verdade, todas as construtoras de algum gabarito já poderiam trabalhar com índices altíssimos de produtividade", afirma Francisco Vasconcellos, diretor da DP Engenharia, empresa que também investe muito em sistemas industrializados, e vice-presidente do SindusCon-SP. "O problema é que, nesse caso, as obras ficam prontas com tanta rapidez que às vezes a comercialização acaba prejudicada." Haveria também o fato de o custo de um operário especializado em drywall ser o dobro do daquele habituado a trabalhar com alvenaria, por exemplo.

A diferença entre a velocidade de montagem de uma obra industrializada e a construção de um prédio com métodos convencionais é, mesmo, impressionante. Uma estrutura de concreto montada a partir de fôrmas pode ficar pronta em poucas semanas, ao passo que erguer uma estrutura convencional pode demandar vários meses. Antes, para levantar uma parede de alvenaria era necessário enfileirar e aprumar os blocos ou tijolos, aplicar a massa grossa e a massa-corrida e finalmente a pintura. Com o sistema drywall, é possível ir diretamente da parede para a pintura. Uma construtora pode erguer por dia 15 metros de parede de alvenaria, ou 45 metros de drywall. Nesse caso, a produtividade da instalação dos revestimentos cerâmicos é três vezes maior, já que pode ser executada simultaneamente ao levantamento das paredes, devido ao princípio modular e integrador de todo o sistema.

Preocupação

Obviamente, as empresas não estão indiferentes ao efeito deletério sobre o nível de emprego que as novas tecnologias construtivas estão a impor. Os sindicatos da construção civil de todo o país têm promovido reuniões com seus associados de modo a encontrar uma solução de meio-termo, ou seja, como se qualificar tecnologicamente sem fazer com que os trabalhadores paguem a conta. Muitas construtoras estão desenvolvendo por conta própria programas de treinamento nas modernas técnicas, e outras chegaram mesmo a montar cursos de alfabetização e até de informática para os operários, como é o caso da paulista Tecnisa. Entidades como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) também começaram a participar desse esforço de qualificação.

As organizações de trabalhadores, por sua vez, estão elaborando programas com o mesmo objetivo. "Não adianta apenas reivindicar, as novas tecnologias estão aí e temos de alguma forma de nos adaptar a elas", diz, realista, Antônio de Sousa Ramalho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo, o maior do Brasil. "Lamentamos apenas que esses sistemas modernos não consigam absorver todo o pessoal, pois é óbvio que é muito melhor trabalhar no processo industrial do que no velho canteiro, desorganizado e cheio de riscos de acidentes."

A esperança das construtoras é que, caso o mercado imobiliário consiga sair do atual marasmo, os novos canteiros de obras abram espaço para mais vagas. Só que será necessário muito investimento para que isso aconteça. Nos anos 1980, um prédio levava três anos para ser construído. O prazo caiu para dois anos em 1995, e hoje, com a modernização, é de apenas um ano e meio. Um dos pesadelos para o mundo do trabalho trazido por esses processos é justamente a sua principal inovação metodológica, a possibilidade de sobreposição de etapas. Se antes a construção de um edifício podia ocupar cem homens durante três anos, hoje a obra de um prédio pode até usar esses mesmos cem homens, só que apenas durante 18 meses, já que várias etapas podem ser desenvolvidas simultaneamente. Ou seja, o tempo de permanência do trabalhador no canteiro de obras foi reduzido pela metade.

Para agravar ainda mais o quadro, um efeito mais ou menos óbvio das novas tecnologias sobre o mundo do trabalho deverá ser a redução drástica do número de construtoras no mercado. A tecnologia vem, goste-se ou não, cumprindo na construção civil o mesmo papel reestruturador desempenhado em outros setores industriais e de serviços. Ela está como que "separando" as empresas em duas categorias, as que conseguem obter maior produtividade, qualidade e menor preço final – para a satisfação do moderno consumidor, criado à sombra de seus códigos de defesa – e aquelas que não foram capazes de atingir esse patamar e tendem a ser empurradas para os nichos menos valorizados do mercado. Há no Brasil entre 60 mil e 80 mil construtoras – ninguém sabe ao certo –, e de 15 mil a 20 mil só no estado de São Paulo, muitas das quais certamente não conseguirão sobreviver nesse novo cenário. Para se ter uma idéia, num país como a Espanha existem apenas 900.

"O problema é que há muitos médicos, advogados e empresários de transporte tocando construtoras neste país", reclama Cláudio Teitelbaum, diretor da construtora Joal Teitelbaum, de Porto Alegre, uma das primeiras do Brasil a adotar sistemas de gerenciamento ambiental dentro dos canteiros de obras. "Essa depuração é necessária para que o setor, que se encontra muito inchado e artificial, possa ser repensado tanto em termos empresariais como de mercado de trabalho", diz ele.

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