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Ousadia autodidata


Edifício Ana Augusta, São José do Rio
Preto (SP) / Foto: Divulgação 

Miguel Juliano fez projetos premiados antes mesmo de concluir o curso

O arquiteto Miguel Juliano chegou a São Paulo no final dos anos 40, período em que a cidade iniciava uma fase de crescimento explosivo. Era a época do pós-guerra, quando a substituição de importações gerou um esforço industrial que provocou grande desenvolvimento. A construção civil se expandiu em ritmo acelerado, e os empresários do setor se orgulhavam de levantar, na cidade, cinco casas por hora.

O jovem Juliano vinha de Uberlândia, em Minas Gerais, onde foi morar depois que saiu de Goiás, estado em que o pai tinha uma fazenda. Aprendeu noções de desenho arquitetônico com um profissional da cidade, cujo escritório freqüentava, detalhando projetos por pura curiosidade.

Do sul de Minas ele partiu para São Paulo, em busca de emprego, com cartas de recomendação para os arquitetos Ernest Mange, Villanova Artigas e Hélio Martins de Oliveira. Na capital paulista iniciou a vida profissional como funcionário do Banco Nacional Imobiliário, o que lhe permitiu a convivência com engenheiros e a participação na execução de projetos. Em contato com arquitetos recém-formados da Universidade Mackenzie, começou a produzir trabalhos por conta própria e abriu um escritório, em sociedade com profissionais que, por terem registro no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea), podiam assinar os desenhos. Bem-sucedido, o escritório ganhou em 1955 o concurso para o projeto do Edifício Quinta Avenida, na Avenida Paulista, o primeiro prédio em concreto protendido levantado em São Paulo. Com apenas duas linhas de pilares, a construção apresentava uma solução ousada para a época, e mereceu a visita de profissionais e especialistas em engenharia de estruturas.

Sem formação universitária, Juliano destacou-se como profissional autodidata. Aprendeu na prática, no dia-a-dia, discutindo com engenheiros e arquitetos, entre os quais Jorge Wilheim. E venceu diversos concursos em parceria com outros profissionais, como Abrahão Sanovicz e Pedro Paulo Saraiva. Incomodado com a falta de diploma, dedicava-se com muito afinco aos estudos e pesquisas, sempre em busca de soluções inovadoras. O diploma veio somente em 1973, depois de ter realizado projetos importantes, como o do Parque Anhembi. Hoje, aliás, está trabalhando na remodelação do hotel situado no parque, ainda inconcluso.

O pavilhão de exposições do Parque Anhembi, palco das feiras mais importantes do país, é uma gigantesca estrutura tubular de alumínio, com 67,5 mil metros quadrados. A solução veio importada do Canadá, mas foi adaptada aos padrões tecnológicos brasileiros. Montada no solo, a estrutura foi levantada por um exército de operários, cada um deles acionando guinchos movidos a manivela. Um poderoso sistema de som garantiu a sincronia dos movimentos, até que a cobertura atingisse seu ponto ideal de fixação nas colunas.

Entre as mais de 500 obras que projetou em 50 anos de profissão, Juliano lembra também outras, como o Edifício Faria Lima Premium, na capital paulista, com 96 metros de altura, que ocupa um terreno de apenas 350 metros quadrados, e a revitalização do Hotel Jaraguá, no coração da cidade. Mas as obras que hoje ele destaca, por sua importância e singularidade, são os centros culturais do Sesc, nos bairros paulistanos de Pinheiros e Santana, ambos em fase de construção.

Em Pinheiros, a nova unidade do Sesc, com 35 mil metros quadrados, terá acesso por duas ruas – Butantã e Pais Leme –, e será no futuro beneficiada pela proximidade de uma estação da Linha 4 do metrô. O espaço reservado para o teatro fica no subsolo, com vantagens acústicas indiscutíveis. Uma torre destina-se às atividades culturais e esportivas, separada do parque aquático. Na cobertura, um teto deslizante permitirá o funcionamento de um ginásio de esportes ao ar livre. Esse projeto foi premiado, em dezembro de 2002, pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, na categoria edificação para fins culturais e esportivos.

A unidade de Santana, um pouco menor, terá a vantagem de ocupar um terreno com frente maior, além de estar localizada na Avenida Luiz Dumont Villares, uma via expressa de duas pistas e intenso movimento.

Os 50 anos de profissão de Miguel Juliano não passaram em branco. Uma exposição no Museu da Casa Brasileira lembrou suas obras mais relevantes, que marcam presença na paisagem paulistana.


"Chegamos ao fundo do poço"

Criador de obras relevantes para a capital paulista, Miguel Juliano fala de sua experiência e dos desafios vencidos, e lamenta o abandono de certas áreas da cidade.

Problemas Brasileiros – Existe separação entre arquitetura e engenharia?
Miguel Juliano – Nas escolas tradicionais de arquitetura havia uma separação estrita entre as disciplinas de arquitetura e aquelas chamadas técnicas. Nossa geração mergulhou na tecnologia para encontrar novas soluções formais. Mas não era uma coisa chata... Nós passávamos a noite tomando cerveja e discutindo um projeto com colegas arquitetos e engenheiros até achar o melhor caminho. Lembro-me, na época do concurso para a construção da sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, que Paulo Mendes da Rocha fez um edifício que funcionava como um barco, porque o terreno era pantanoso, quase líquido. Ele imaginou uma estrutura com uma quilha embaixo, que descia e subia 30 centímetros, conforme as cargas do prédio. Para isso contou com a ajuda do engenheiro Milton Vargas, que aceitou o desafio e trabalhou durante meses no projeto. Esse tipo de cooperação faz a arquitetura e a engenharia avançarem juntas. Tenho amigos marceneiros, eletricistas, engenheiros, e todos me ajudam na tomada de decisões de arquitetura.

PB – O senhor faz parte de uma geração que construiu uma nova cidade, entre 1950 e 1970, usando concreto à vista, com resultados belíssimos, apesar da rudeza do material. Recentemente o senhor fez um edifício como o Faria Lima Premium, em Pinheiros, uma torre de vidro com formas muito precisas. Teria sentido projetar uma estrutura brutalista de concreto neste início do século 21?
Miguel Juliano – O trabalho com o concreto foi uma grande oportunidade para os arquitetos de São Paulo e do Brasil, nos deu um "métier", uma especialização. Todos brincavam com Villanova Artigas dizendo que em sua casa até a escova de dentes era de concreto. A residência de Paulo Mendes da Rocha e minha própria casa são assim. É possível fazer tudo com o concreto: luminárias, persianas, bancadas. Mas isso era também resultado da mão-de-obra barata e de aceitar aquele enorme desperdício de madeira para as fôrmas. Quando fiz minha casa, fui ao Paraná especialmente para escolher as tábuas de pinho para as fôrmas, para ter o desenho certo impresso no concreto. No final da obra, restou uma montanha de madeira. Hoje temos de usar placas industrializadas, e não é mais possível contar com a impressão da textura da madeira.

PB Como o senhor encara a cidade de São Paulo, tão cheia de problemas?
Miguel Juliano – Chegamos ao fundo do poço. Outro dia fui fotografar um edifício, projeto meu, na esquina da Avenida São João com a Praça Júlio Mesquita. Havia umas 15 famílias morando na calçada, em caixas de papelão, com plásticos pretos, colchões, e o local exalava um grande mau cheiro. Não acredito que essas pessoas – há 17 mil delas nas ruas centrais de São Paulo – saiam de lá tão cedo se não houver uma mudança profunda na condução da economia brasileira.

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