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Sem tempo de brincar
Arte PB
Entidades oferecem alternativas ao trabalho doméstico de crianças
IMMACULADA LOPEZ
A infância acabou cedo para a mineira Kátia Regina Rosa de Jesus. Ainda com 9 anos, ela começou a trabalhar na roça para ajudar sua mãe. Um pouco mais crescida, seguiu o caminho das irmãs, procurando trabalho em casas de família. Aos 12 anos, arrumou seu primeiro serviço e foi viver em outra cidade. Teve de aprender a lavar, passar, cozinhar e, sem tempo de brincar ou estudar, logo deixou a escola.
Hoje, casada e mãe de quatro meninas, Kátia vive em Belo Horizonte e faz de tudo para que sua história não se repita com as filhas. "Mas, olhando para trás, acho que elas também não tiveram muito tempo para ser crianças", diz, preocupada. Apesar de continuarem a estudar, não demorou muito para que assumissem parte do sustento da família, trabalhando na casa de vizinhos. "Não ganhavam muito, mas só Deus sabe como esse dinheirinho era importante nos dias em que a gente não tinha nada", diz Kátia, que ainda sonha em ver suas filhas felizes. Ao menos na vida de Fernanda, a caçula, surgiu uma nova esperança.
No ano passado, ela estava sentada na rua, tomando conta de um menino, quando uma moça se aproximou, perguntando se ela não gostaria de ir brincar no circo. "Não entendi nada, mas dias depois ela voltou para conversar com meus pais e me chamou para participar do Circo de Todo Mundo", conta a jovem, hoje com 16 anos.
Fundada em 1991, na capital mineira, essa organização não-governamental (ONG) é uma das entidades pioneiras no combate ao trabalho infantil doméstico no país. Segundo um levantamento de 1999 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o problema afeta cerca de 502 mil crianças e adolescentes brasileiros, entre 5 e 17 anos, dos quais 90% são meninas e mais de 50% de origem negra. Aproximadamente 2% têm entre 5 e 11 anos, 44% entre 12 e 15 anos e 54% entre 16 e 17. De qualquer forma, mais de 30% começaram a trabalhar na primeira faixa etária. Quase 75% nascidos na região urbana, tais crianças e adolescentes estão espalhados por todos os cantos do país, com destaque para o nordeste e o sudeste. O estado de Minas Gerais, onde vive Fernanda, desponta no topo da lista.
Quando ela começou a participar do Circo de Todo Mundo, sua família passou a receber uma bolsa-auxílio de R$ 50 por mês, e ela pôde parar de trabalhar. Firmou-se na escola e tomou conhecimento de um novo mundo de saberes, afetos e sonhos, através das oficinas diárias do circo. "O que eu mais gosto é do malabarismo e da perna de pau. É chique demais ver o mundo lá de cima", conta com entusiasmo. Tornou-se também freqüentadora assídua das aulas de cidadania, onde descobriu seus direitos – tão desrespeitados –, inclusive o de ser criança.
"Criamos o circo justamente para que, nesse espaço lúdico e criativo, a criança volte a encontrar a alegria e o desejo de mudar sua vida", diz Maria Eneide Teixeira, coordenadora-geral da entidade. Ela não tem dúvida de que meninas e meninos em situação de exclusão social têm o poder de transformar seu presente e seu futuro, desde que algumas feridas – como a do trabalho infantil – deixem de ser invisíveis.
Desde maio de 2002, o Circo de Todo Mundo integra o Projeto Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Adolescente Trabalhador Doméstico, promovido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em diferentes cidades do Brasil, Colômbia, Paraguai e Peru. Num primeiro momento, foram identificadas e apoiadas experiências da sociedade civil. Além do circo, destaca-se a atuação do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Emaús, em Belém, e do Centro Dom Helder Câmara, em Recife. Ambos também visam intervir na vida das meninas e na de suas famílias, buscando alternativas de renda para os adultos e a garantia dos direitos básicos das crianças.
Agora o projeto da OIT começa uma nova fase: alertar a sociedade a respeito do assunto, pois, além de o trabalho infantil ser pouco discutido, as pessoas ainda não têm muito claro que ele seja realmente um problema. A mobilização envolve não só entidades da sociedade civil, mas também conselhos tutelares, varas da infância e da juventude, procuradorias e delegacias regionais do trabalho, além de sindicatos, escolas e empresas. A mídia também merece atenção especial.
Em parceria com a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, a OIT lançou no final de abril a primeira campanha de conscientização sobre o tema no país, envolvendo revistas, jornais, emissoras de rádio e televisão. Com o slogan "Trabalho infantil doméstico: não leve essa idéia para dentro de sua casa!", a iniciativa tem como desafio principal informar que o trabalho doméstico na casa de terceiros é, sim, uma forma de exploração de mão-de-obra infanto-juvenil.
A lei brasileira, acompanhando as convenções internacionais, proíbe qualquer tipo de trabalho – mesmo que remunerado – de toda criança até 14 anos. Para os maiores de 14 e menores de 16, ele é permitido sob condição de aprendiz, que deve incluir um ensino prático e teórico, não se aplicando, portanto, ao trabalho doméstico. Os adolescentes entre 16 e 18 anos, por sua vez, podem ser contratados, desde que sejam respeitados os benefícios estipulados por lei, que incluem registro em carteira, descanso semanal e férias, além das exigências específicas do Estatuto da Criança e do Adolescente, como a garantia de horário de estudo e a proibição de trabalho noturno. No Brasil, entretanto, quase 30% das meninas se lançam no trabalho doméstico antes dos 12 anos e mais da metade supera 40 horas semanais de jornada, sem direito a férias.
"Apesar de o trabalho infantil ser crime, passível de denúncia e punição, devemos começar por um processo de conscientização da sociedade em geral, pois os próprios adultos envolvidos podem contribuir muito para a erradicação do problema", diz Renato Mendes, coordenador do Projeto Trabalho Infantil Doméstico, da OIT, no Brasil.
Nova mentalidade
Por um lado, é necessário mudar a cabeça dos próprios pais. Muitos transferem para os filhos uma responsabilidade totalmente inadequada para sua idade. "É claro que a criança deve ajudar nas tarefas do lar, mas sempre de modo complementar. Ela não pode arcar sozinha com o cuidado dos irmãos e, muito menos, com o sustento da família, por meio de trabalho em casa de outros", esclarece Mendes.
Por outro lado, "patroas" e "patrões" raramente param para pensar sobre o assunto e continuam contratando crianças, convictos de que o trabalho não é algo ruim. Ao contrário, acreditam que é até bom. Afinal, é melhor "a criança estar trabalhando numa casa de família do que ficar sem fazer nada na rua". Ou ainda: "Vivendo comigo, sua família vai ter uma boca a menos com que se preocupar".
"Precisamos tirar essa aura de bondade do trabalho doméstico", diz Maria Eneide, do Circo de Todo Mundo. "Os adultos dizem que estão fazendo um bem, dando proteção, comida, além de um dinheirinho. Mas isso tudo não passa de exploração." Na verdade, para a criança, as perdas são bem maiores do que os ganhos.
Ao contrário do que se imagina, a rotina do trabalho doméstico pode ser tão grave quanto a vida nos canaviais ou nas minas de carvão. "Apesar de menos aparentes, os danos são igualmente profundos no desenvolvimento da criança", diz Mendes.
Para começar, muitas deixam a própria família para ir morar na casa onde estão trabalhando. Além de serem afastadas da convivência dos pais, irmãos e familiares mais próximos, muitas vezes sujeitam-se a relações afetivas confusas, sendo ora consideradas parte da família, ora tratadas como subalternas. Também não são raros os casos de violência física e sexual.
O tempo sagrado da brincadeira e da criatividade simplesmente deixa de existir. A adolescente, por sua vez, esquece o que é passear, pois "a patroa não gosta". Aos poucos, a alegria desaparece. A saúde e a integridade física também são prejudicadas. Sem tempo para descanso, muitas sentem dores no corpo e têm de trabalhar mesmo quando estão doentes, além de se expor a riscos de acidentes.
Ao mesmo tempo, sua vida escolar é afetada. Com menos tempo e energia para ir às aulas e estudar, a criança muitas vezes acaba faltando, tira notas baixas, é reprovada ou até mesmo desiste da escola. Segundo dados do IBGE, 25% das crianças ocupadas em trabalhos domésticos não estudam, e as que não abandonaram a escola apresentam rendimento muito inferior ao das que atuam em outras atividades. E a defasagem é maior entre aquelas que estão há mais tempo nesse mercado. Ou seja, com o passar do tempo, a menina fica cada vez mais longe da qualificação e de novas chances de emprego. O trabalho doméstico torna-se, assim, um instrumento perverso de exclusão social das mulheres, especialmente das de origem negra.
Ao entrevistar mais de mil crianças e adolescentes que trabalham em casa de terceiros, nas cidades de Belém, Recife e Belo Horizonte, a OIT confirmou essa história triste. Quase 85% das meninas dizem não querer que suas filhas sigam seu caminho, pois "precisam estudar", "vão ganhar pouco", "não devem trabalhar quando crianças". Entretanto, mais de 80% delas são filhas de trabalhadoras domésticas ou donas-de-casa, que em quase 40% dos casos respondem pela chefia da família. Mais da metade dessas mães recebe menos de um salário mínimo, e 18% delas são analfabetas. E certamente elas também não queriam esse destino para suas meninas.
Melhora dos índices
A boa notícia é que o Brasil tem conseguido reduzir esse drama. No último mês de abril, o IBGE divulgou uma nova pesquisa sobre o trabalho infantil, com dados de 2001. Apesar de não trazer informações específicas sobre o trabalho doméstico, o levantamento revela que a soma geral de crianças e adolescentes trabalhadores no país caiu, entre 1999 e 2001, de 6,6 milhões para 5,5 milhões; desse total, 43% são explorados na atividade agrícola. No geral, o percentual diminuiu em todas as regiões do país, e os maiores índices despontam no nordeste e no sul. A redução aconteceu em todas as faixas etárias, mas ainda há quase 300 mil trabalhadores entre 5 e 9 anos, perto de 2 milhões entre 10 e 14 anos e cerca de 3,2 milhões entre 15 e 17.
"Houve uma decisão política do governo federal e de algumas administrações estaduais de erradicar o trabalho infantil, e os resultados já começam a aparecer", destaca Renato Mendes, da OIT. Nos últimos anos, o Executivo assumiu dois programas decisivos para o enfrentamento do problema: o Bolsa-Escola e o próprio Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). Ambos foram lançados com o objetivo de romper o ciclo de pobreza e exclusão social através da distribuição de uma pequena renda para que as famílias mantivessem os filhos na escola e longe do mercado profissional.
Criado em 2001 pelo Ministério da Educação, o Bolsa-Escola beneficia famílias com renda per capita inferior a R$ 90 mensais, que tenham crianças de 6 a 15 anos matriculadas no ensino fundamental. Cadastradas pelas prefeituras, elas passam a receber mensalmente R$ 15 por aluno, com um limite de três crianças por família.
Peti na mira
Já em 1996, o governo havia criado o Peti, destinado prioritariamente às famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, com filhos entre 7 e 14 anos que estivessem ocupados em atividades perigosas, insalubres ou degradantes. O trabalho doméstico, portanto, não foi incluído entre as prioridades, apesar de alguns municípios passarem a combatê-lo por conta própria.
Inicialmente, o programa atendeu 1,5 mil crianças que trabalhavam nos fornos de carvão e na colheita de erva-mate em 14 municípios de Mato Grosso do Sul. Com os bons resultados apresentados, foi ampliado nos anos seguintes, envolvendo, em 2001, quase 750 mil meninos e meninas de mais de 200 municípios de vários estados. Nesse ano, foram mais de R$ 310 milhões destinados ao programa. Para 2003, está previsto o desembolso de R$ 490 milhões.
Com a mudança da administração federal, o Peti vem passando por uma revisão. "Queremos transferir o foco da criança para a família", informa Nelma Azeredo, secretária de Política de Assistência Social, do Ministério da Assistência e Promoção Social, ao qual o programa está vinculado. Dessa forma, ele deixaria de ser uma intervenção pontual com foco no filho e passaria a fazer parte de uma ampla política de atendimento integral à família. A secretária faz questão de ressaltar que o combate ao trabalho infantil, bem como à exploração sexual, é uma das prioridades do atual governo e deverá ter um reforço de verba, em 2004, de pelo menos 20%.
Essas mudanças atendem a uma cobrança da própria sociedade civil. "O Peti foi importante e realmente ajudou muitas pessoas miseráveis, mas está na hora de darmos o passo seguinte", avalia Maria Eneide, do Circo de Todo Mundo. Ela acredita que, em vez de distribuir pequenos auxílios financeiros (por um lado, o Bolsa-Escola, por outro, os recursos do Peti, etc.), o governo deve discutir uma proposta real de renda mínima, além da criação de frentes de trabalho. Renato Mendes concorda e acrescenta: "Não adianta garantir a presença da criança na escola. É necessário gerarmos núcleos de inclusão e desenvolvimento social, que fortaleçam a família". Só assim a vida de Fernanda poderá ser realmente diferente.
Doméstica, sim! E daí?
Adolescentes negras, trabalhadoras domésticas, entram em cena e provocam o público na peça "Doméstica, sim! E daí?", escrita nas oficinas teatrais do Projeto Ampliando Horizontes e Direitos. Elas falam de sua vida, do preconceito contra seu trabalho, da discriminação por serem mulheres e negras. Discutem também seus direitos e a importância de que sejam respeitados.
Criado em Salvador, em 1999, o projeto é coordenado pelo Ceafro, um centro de profissionalização de jovens negros, ligado à Universidade Federal da Bahia, e pelo Sindoméstico, o sindicato local das trabalhadoras domésticas. Sua missão é superar a exploração infanto-juvenil, cercando o problema pelo outro lado: garantir os direitos das trabalhadoras domésticas que têm entre 16 e 18 anos.
"Buscamos dar um novo significado ao desempenho dessa função, que é vista de maneira tão depreciativa e preconceituosa pela nossa sociedade", explica Vanda de Sá, coordenadora da iniciativa. A idéia é que as meninas tenham a oportunidade de mudar de atividade, mas que, se preferirem, possam exercer o trabalho doméstico com dignidade.
Segundo a OIT, a categoria das trabalhadoras domésticas é a que emprega mais mão-de-obra no país: cerca de 10% da população economicamente ativa. Trata-se de um contingente de aproximadamente 5 milhões de pessoas, das quais mais de 90% são do sexo feminino. Entre elas, quase 50% recebem no máximo um salário mínimo, e cerca de 700 mil ganham menos da metade desse valor. Além disso, 75% não têm carteira assinada.
Numa pesquisa realizada em três capitais brasileiras – Belém, Belo Horizonte e Recife – com crianças e adolescentes trabalhadoras domésticas, a OIT descobriu que 72% das entrevistadas ignoram seus direitos e apenas 9% conhecem alguma instituição que proteja quem desempenha essa função. Portanto, há muito a ser conquistado.
Em Salvador, mais de 300 adolescentes já passaram pelo projeto. Através de rodas de conversa, atividades culturais, oficinas de saúde, qualificação profissional e noções de cidadania, as participantes vão percebendo que não precisam ter vergonha de sua profissão e que podem se organizar para fazer valer seus direitos trabalhistas.
Ao mesmo tempo, é discutida a condição de ser mulher e negra. "As adolescentes começam a achar que seu cabelo crespo é bonito e que não é natural uma mulher ser agredida", conta Vanda. Elas mudam a forma de olhar a si mesmas, e também a maneira de encarar o presente e o futuro. Algumas passam a sonhar com a faculdade, que antes parecia inatingível, e se matriculam no cursinho pré-vestibular que mantém uma parceria com o projeto. Outras se envolvem na luta sindical. "Aos poucos, elas se descobrem protagonistas de suas vidas", resume Vanda. E dão um novo rumo à sua história.
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