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As cores do maracatu


Caboclo de lança / Foto:
Marco Antonio Sá

Nazaré da Mata, em Pernambuco, preserva e incentiva a tradição

MARCO ANTONIO SÁ

O município pernambucano de Nazaré da Mata, a 80 quilômetros do Recife, busca um objetivo: ser a cidade do maracatu rural. Para isso, está investindo na construção de uma praça temática, batizada de Parque dos Lanceiros, onde grupos dessa manifestação folclórica poderão se apresentar não só durante o carnaval, mas ao longo de todo o ano. A inauguração estava prevista para 2002, porém, por um problema técnico, teve de ser adiada. Como da decoração fazem parte esculturas de concreto, de 3 metros de altura, de caboclos de lança nas posições clássicas de sua apresentação, o peso das peças superou as estimativas, e a estrutura teve de passar por uma reavaliação. As gigantescas estátuas levam a assinatura do artista plástico recifense Cavani Rosas.

O apoio da prefeitura, que organiza uma apresentação na cidade durante o carnaval, fez aumentar o número de grupos de maracatu em Nazaré da Mata nos últimos três anos. Hoje são 17, mas é difícil explicar esse crescimento, já que nenhum mestre ou diretor de qualquer um deles considera sua manutenção uma tarefa fácil. O chapéu de um caboclo normalmente é confeccionado com mais de 600 penas de pavão, compradas a R$ 1 a unidade no Recife ou outro grande centro próximo. A "gola" (manto colorido) de um caboclo de lança, muitas vezes feita de veludo, com paetês ou vidrilhos, não sai por menos de R$ 400. Ou seja, o traje de cada integrante pode custar mais de R$ 1.000, mesmo contando com a colaboração de amigos, familiares e simpatizantes no processo de costura e montagem das peças.

De onde sai o dinheiro para financiar tudo isso, nem os presidentes dos maracatus sabem dizer ao certo. Embora muita coisa seja reaproveitada de um carnaval para outro, a cada ano que passa as dívidas vão se acumulando. A falta de recursos compromete todo o trabalho, a começar pelo aluguel dos ônibus ou caminhões para o transporte até outras cidades onde são realizadas apresentações, pelas quais é pago um cachê "simbólico" de cerca de R$ 100 por grupo, que pode ter de 60 a 170 componentes.

E o comércio, certamente um dos maiores beneficiados com a preservação dessa tradição folclórica, não reconhece seu valor cultural. Alguns comerciantes chegam mesmo a discriminar os integrantes do maracatu, devido à sua ligação com rituais religiosos afro-brasileiros. João Marcelino da Silva, presidente do Maracatu Leão da Selva, diz que fica "aperreado" com essa situação. "É muita falta de sensibilidade. É claro que o comércio sairia ganhando se mais turistas viessem ver a festa", desabafa.

O mesmo acontece com Hernando Francisco da Costa, que há dez anos é diretor do grupo Cambinda Brasileira, o mais antigo de Nazaré da Mata. Ele enfrenta forte resistência da família, uma vez que, pelos seus cálculos, já poderia ter comprado quatro casas com o dinheiro que investiu do próprio bolso no maracatu. Por tudo isso, pensa em deixar a diretoria em 2004. Suas filhas não gostam de ver o pai se desgastar correndo atrás de acessórios e gerenciando os escassos recursos provenientes da "venda" de apresentações para outras cidades.

Tradição transformada

Não se sabe ao certo quando o maracatu rural passou a ser uma festa carnavalesca, nem como personagens como a burrinha e a Catirina, que também aparecem em outras manifestações populares brasileiras, se juntaram a baianas, lanceiros (figura símbolo) e caboclos de pena (uma evidente referência ao índio). Sua origem encontra-se nas senzalas dos bangüês (engenhos de cana-de-açúcar) de Pernambuco: enquanto as festas aconteciam na casa-grande, os escravos também procuravam se divertir.

Com o passar do tempo, a brincadeira foi se popularizando em toda a Zona da Mata pernambucana, principalmente entre aqueles que trabalhavam nas lavouras de cana-de-açúcar. Mas os engenhos foram fechando, e hoje, com raras exceções, o que resta deles são apenas ruínas. Esse processo acentuou o êxodo rural – o povo do campo se deslocou para as cidades e o litoral, mas sem esquecer o maracatu, que também acabou se urbanizando.

Segundo pesquisadores, essa manifestação popular integra elementos de uma tradição pernambucana mais antiga: o maracatu de baque virado, no qual não existem caboclos nem instrumentos de sopro. Mas, enquanto este é muito mais evidentemente ligado a ritos religiosos afro-brasileiros, à rainha e ao rei congo e ao culto aos antepassados, além de incorporar cantos e danças do candomblé, o maracatu rural professa seu misticismo de maneira mais discreta, em cerimônias que acontecem apenas nos terreiros. Entre elas, a bênção das lanças e da flor que os caboclos carregam na boca, a consagração da Calunga (boneca que representa a divindade e é levada pela baiana) e a abstinência sexual dos homens, que começa alguns dias antes do carnaval.

A coreografia do maracatu rural é dirigida por um mestre, que usa um apito para coordená-la. Quando ele apita, a orquestra silencia e os caboclos executam as "caídas", ajoelhando-se ou deitando-se. O mestre, então, recita as "loas" – versos improvisados que abordam temas regionais e homenageiam integrantes do grupo, autoridades e o lugar onde estão se apresentando.

Ao final de cada loa, a orquestra recomeça a tocar, os caboclos agitam suas lanças, as baianas rodam as saias e a brincadeira continua, com cada personagem representando seu papel: os caboclos de lança defendem o estandarte, e os de pena tomam conta das baianas. O Mateus (uma espécie de mensageiro) vai na frente do grupo, preparando a chegada do maracatu, e a Catirina cuida de arranjar comida para os brincantes. Toda essa coreografia é remanescente do tempo em que os grupos saíam dos engenhos e seguiam pelas estradas, de vila em vila.

O maracatu é isso, uma mistura de música, poesia, religião, brincadeira e, sobretudo, muita cor e animação. Entre os caboclos, há jovens e idosos, que têm em comum a mesma empolgação e o orgulho de sua gola, diferente para cada um. Mas é um mistério como eles agüentam o calor sob o peso daqueles trajes. Entre crenças e lendas, os rituais religiosos assumem sua importância, pois há histórias de caboclos que fracassaram por não levá-los a sério. Fala-se também de uma bebida energética chamada azougue, mistura de cachaça, azeite, limão e... pólvora!

Outros tempos

José Gomes da Silva, o mestre Zé Pequeno, do grupo Cambinda Nova, nasceu e trabalhou em engenho de cana. Está no maracatu há 47 anos e afirma que continuará participando enquanto tiver forças para carregar o surrão (suporte do chocalho). Mas não consegue mais fazer as golas, porque a vista não permite. Quando criança, enfrentava a resistência da mãe, que considerava a brincadeira pesada demais. Naquele tempo, caboclos de grupos diferentes eram inimigos, e um encontro casual entre eles invariavelmente acabava em briga feia, com ferimentos graves feitos pelas pontas das lanças. Segundo Zé Pequeno, contudo, isso não existe mais: "Hoje, o importante é brincar", diz ele, acrescentando que agora o pessoal tem mais amor pelo que faz.

Opinião bem diferente é a de Antônio Francisco dos Santos, caboclo há 50 anos e diretor do Maracatu Piaba Dourada. Na juventude, seu apelido era Rochedo, por ser bom de briga. Para ele, o amor pela brincadeira é coisa de antigamente. "Naquela época, o sol raiava e a gente continuava dançando, com os olhos vermelhos e cheios de entusiasmo para brincar. Agora, antes de vestir a gola, o caboclo quer saber quanto vai ganhar", diz, desencantado.

Diante de pontos de vista tão diferentes, talvez nem seja importante saber quem tem razão. A verdade é que o mundo mudou e, atualmente, quem lidava com a cana trabalha na construção civil ou está desempregado. Aquela região também não é mais a mesma: até a Capela de São Francisco Xavier, do século 18, localizada no Engenho Bonito, foi saqueada.

Os maracatus se transferiram para a cidade, e entre todos os grupos de Nazaré da Mata somente o Cambinda Brasileira ainda se reúne numa sede rural, onde funcionava o Engenho do Cumbe. Diante dessa realidade, mesmo quem ama a brincadeira – e é preciso amor para vestir um traje de mais de 20 quilos num dia de sol quente – acaba tendo de fazer disso uma forma de ganhar dinheiro.

Memória presente

Valorizar as tradições da Zona da Mata pernambucana é uma meta do governo do estado e dos municípios da região. O projeto, que já conta com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Banco Mundial (Bird), prevê a recuperação da Rota dos Maracatus e Engenhos e envolverá, entre outras, as cidades de Nazaré da Mata, Tracunhaém e Carpina. O objetivo é atrair o turista, de forma que ele possa, em qualquer época do ano, ter contato com a história, a cultura e o folclore daquela terra.

É por isso que Nazaré da Mata está investindo no Parque dos Lanceiros, onde será instalado também um centro de comercialização de artesanato, doces caseiros e comida regional. Mas não é só. Pensando no futuro, a prefeitura local criou o Maracatu Sonho de Criança, com cerca de 60 componentes, no qual somente o terno (banda) é composto por adultos. Os demais integrantes, incluindo dois mestres de loas, são meninos e meninas de 7 a 16 anos, na maioria filhos e netos de caboclos e baianas.

A cidade conta, ainda, com o trabalho de um artista que não só reconhece a importância de manter a tradição do maracatu como sabe ganhar dinheiro com isso. Há dez anos, Vladimir Caroba reproduz os caboclos de lança utilizando massa epóxi e garrafas plásticas. Cortadas e transformadas em golas, as garrafas são depois aquecidas com uma vela, o que cria a sensação de movimento. Em seguida, são pintadas à mão. Os bonecos – vendidos em lojas e também no aeroporto do Recife – levam, além da assinatura do artesão, a inscrição "Nazaré da Mata", para que a tradição da "Cidade dos Maracatus" seja conhecida e preservada. O trabalho de Caroba é uma das únicas lembranças associadas ao maracatu que se pode levar de lá.

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