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Mulheres à Frente

Beatriz Seigner, diretora de <b><i>Los Silencios</b> </i>(2018). Foto: Juliana Vasconcelos
Beatriz Seigner, diretora de Los Silencios (2018). Foto: Juliana Vasconcelos

Por Luísa Pécora*

Um teste simples e rápido pode ser feito por qualquer pessoa interessada em descobrir, por si mesma, se a desigualdade de gênero é uma realidade no cinema. Primeiro, consulte a programação das salas da sua cidade, veja a lista dos últimos filmes que você assistiu no streaming ou vá até a estante onde você guarda seus DVDs (se ainda tiver algum). Agora, responda à pergunta: quantos destes filmes foram dirigidos por mulheres?

É bem provável que a resposta seja “poucos”, “a minoria” ou até mesmo “nenhum”. Embora as mulheres tenham ajudado a criar o cinema, dirigido filmes desde 1896 e feito contribuições fundamentais ao longo das décadas e dos movimentos cinematográficos, seu trabalho ainda é menos conhecido pelo público, menos celebrado em cursos e livros especializados, e menos visto nas salas, na televisão e nos festivais.

Se o teste parece pouco científico, eis alguns números que ajudam a definir melhor este cenário. Comecemos por Hollywood, a principal indústria cinematográfica do mundo, que exporta suas produções em massa e domina as salas de exibição de quase todos os países. De acordo com estudo da Annenberg Inclusion Initiative, ligada à Universidade do Sul da Califórnia, mulheres dirigiram apenas 10,6% dos cem filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos em 2019. O mesmo levantamento analisou as 1,3 mil maiores bilheterias no país entre 2007 e 2019 para revelar uma porcentagem baixíssima de cineastas mulheres por trás das câmeras: 4,8%.

O Oscar, maior premiação da indústria americana, segue o mesmo padrão: em 92 anos, só uma mulher - Kathryn Bigelow, em 2010 - ganhou o troféu de direção. Apenas outras quatro diretoras foram indicadas (todas elas brancas) e o longa de Bigelow, Guerra ao Terror (2008), foi o único a triunfar na categoria principal, de melhor filme.

Passemos para o cinema da Europa e encontraremos um cenário um pouco melhor, mas não muito. De acordo com o Observatório Europeu do Audiovisual, apenas 17% dos filmes produzidos e lançados nos cinemas da Europa entre 2003 e 2017 foram exclusivamente dirigidos por mulheres. Nos 72 anos de Festival de Cannes, só um longa-metragem dirigido por mulher ganhou a Palma de Ouro - O Piano (1993), de Jane Campion - e só duas cineastas levaram o troféu de direção - Yuliya Solntseva, por A Epopeia dos Anos de Fogo (1961) e Sofia Coppola, por O Estranho que Nós Amamos (2017). 

O Piano, de Jane Campion. Único longa metragem dirigido por mulher que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Foto: Entertainment film distributors

Esta breve exposição de dados mostra que a desigualdade de gênero por trás das câmeras não se restringe a um território ou a um tipo de cinema. Mulheres enfrentam obstáculos para trabalhar no audiovisual em praticamente todos os países do mundo, seja fazendo filmes comerciais ou independentes, e são pouco reconhecidas tanto no Oscar quanto nos festivais. Ignorar esta realidade tem se tornado mais difícil, já que o debate sobre a presença (ou a ausência) da mulher no cinema se fortaleceu muito na última década - e especialmente nos últimos cinco anos, embalado também por um novo momento do movimento feminista, bastante ligado às redes sociais. Hoje, a falta de diversidade nas indicações ao Oscar ou na competição pela Palma de Ouro é discutida anualmente tanto no Twitter quanto nas manchetes dos jornais. E mesmo um tema como assédio, antes reservado a conversas a portas fechadas, passou a ser debatido de forma mais frequente e mais pública após o escândalo Harvey Weinstein, revelado em 2017, e o fortalecimento do movimento #MeToo.

Cinema brasileiro

As discussões se fortaleceram também no Brasil: de 2015 para cá, profissionais se uniram em coletivos e grupos de debate, novos festivais foram criados, editais com paridade de gênero foram anunciados e dados sobre a presença feminina no audiovisual passaram a ser coletados e divulgados pela Agência Nacional de Cinema (Ancine).

Em 2014, apenas 10% de todos os longas-metragens brasileiros lançados nos cinemas tinham sido exclusivamente dirigidos por mulheres. A porcentagem chegou a quase 20% em 2016, caiu para 15% em 2017 e alcançou 22%, o maior índice até agora, em 2018. A continuidade da pesquisa, importante para qualificar o debate, é incerta, já que sua principal instigadora, a produtora Debora Ivanov, deixou a diretoria da Ancine em 2019.

Nos últimos anos, a agência também começara a coletar dados sobre a participação da população negra no audiovisual brasileiro. A pesquisa ajudou a demarcar uma das questões fundamentais do cinema do país: assegurar oportunidades iguais aos realizadores negros, especialmente mulheres. São elas as que têm menor espaço nas telas, atrás não apenas dos homens brancos, mas também das mulheres brancas e dos homens negros. O estudo mais recente da Ancine, referente aos longas-metragens brasileiros lançados nos cinemas em 2016, mostrou que 75% tinham sido dirigidos por homens brancos, 19,7% por mulheres brancas, 2,1% por homens negros e nenhum por mulheres negras.

Este número saiu do zero em 2018, quando ao menos três filmes dirigidos ou codirigidos por mulheres negras chegaram aos cinemas: O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes; Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa; e Slam - Voz de Levante, de Roberta Estrela D’Alva e Tatiana Lohmann. Vale lembrar, aliás, que antes de O Caso do Homem Errado, o último filme brasileiro exclusivamente dirigido por uma mulher negra a entrar no circuito comercial fora Amor Maldito, de Adelia Sampaio, em 1984.

Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D'Alva, diretoras de Slam - Voz de Levante. Foto: Renato Nascimento

Os obstáculos se estendem às mulheres negras que aparecem em frente às câmeras, como mostrou um levantamento de 2016 do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). De acordo com a pesquisa, atrizes não brancas representaram apenas 4% dos elencos principais nas 238 produções nacionais de maior bilheteria entre 2002 e 2013. Considerando que a população brasileira é formada por 48,5% de mulheres e por 54% de negros, a conclusão é óbvia: o país que vemos na tela não se parece com o país que vemos nas ruas.

Desigualdade tão brutal não se corrige da noite para o dia, e nem sem o auxílio de políticas públicas e ações afirmativas. Mas realizadoras e realizadores negros não estão apenas esperando que o governo e as instituições façam o que deveriam. Há uma série de iniciativas interessantes sendo criadas pelos próprios artistas, como o Afroflix, uma plataforma online de filmes que tenham pelo menos uma pessoa negra na produção, roteiro, direção ou elenco principal; o Fórum Itinerante de Cinema Negro - Ficine, que promove debates e eventos sobre o trabalho de cineastas africanos e da diáspora; e Empoderadas, uma web série feita por mulheres negras que conta histórias de mulheres negras.

Questão de gênero

O público cumpre um papel importante ao assistir aos filmes dirigidos e estrelados por mulheres, pois além de prestigiar o trabalho das artistas, também demonstra aos exibidores e aos produtores de conteúdo que existe interesse por estas histórias. Comprar um ingresso para ver um filme no cinema, sobretudo na semana de estreia e na seguinte, ajuda a produção a permanecer em cartaz. E isso vale mesmo para as grandes produções de Hollywood: como a indústria responde em grande medida ao resultado comercial, um bom desempenho nas bilheterias pode ser fundamental para que produções similares saiam do papel.

O exemplo mais evidente é Mulher-Maravilha, que chegou às telas em 2017 como um raro filme inspirado em quadrinhos que tinha mulheres em frente e por trás das câmeras. E a pressão sobre a diretora Patty Jenkins era grande. Se o longa não fosse um sucesso estrondoso de bilheteria, seria usado como argumento para reforçar ideias antigas: a de que histórias protagonizadas por mulheres não são universais e a de que mulheres não sabem dirigir filmes de ação ou gerir grandes orçamentos. Como superou as expectativas da indústria, Mulher-Maravilha não apenas ganhou uma sequência, que chegará aos cinemas em junho, como abriu portas para uma grande leva de blockbusters dirigidos por mulheres. Só neste ano, são três: Aves de Rapina, de Cathy Yan; Mulan, de Niki Caro; e Viúva Negra, de Cate Shortland.      

Mulher-Maravilha (2017), de Patty Jenkins. Um raro filme inspirado em quadrinhos que tinha mulheres em frente e por trás das câmeras.

Talvez este novos lançamentos ajudem a quebrar os persistentes estereótipos sobre que tipos de filmes as mulheres sabem e podem dirigir. Tanto em Hollywood quanto no Brasil, a presença das diretoras é muito maior no documentário, não por acaso um gênero que costuma ter orçamentos menores do que os da ficção. De acordo com a Annenberg Inclusion Initiative, depois do documentário a menor desigualdade está no drama, no qual há 10,8 diretores para cada diretora, e na comédia, no qual são 14,7 homens para cada mulher. A diferença aumenta bastante conforme a análise passa para gêneros e temas considerados mais próximos aos talentos e interesses dos homens. Nos filmes de animação, há 23 homens para cada mulher; nos de terror, 33; nos de suspense, 44; e nos de ação, a maior desigualdade de todas: 68 diretores para cada diretora.

Dados como estes mostram que não basta que as mulheres tenham mais oportunidades para dirigir: é preciso, também, que tenham a mesma liberdade dos homens para realizar qualquer tipo de projeto. Há quem defenda a importância de termos mais filmes dirigidos por mulheres para que possamos ver o mundo pelo “olhar feminino”. Mas o conceito de “olhar feminino” implica em um feminino único e o olhar das diretoras, ao contrário, é múltiplo. E se as mulheres (do cinema, mas também da plateia) seguem sendo vistas como bloco, é crucial destacar a variedade, riqueza e complexidade do trabalho delas.

CineAtiva - Mulheres à Frente

Esta é uma das premissas que guia a programação do CineAtiva - Mulheres à Frente, promovido pelo Sesc Campo Limpo de março a dezembro de 2020. Com sessões mensais, algumas seguidas de debate, o projeto vai exibir curtas e longas-metragens realizados por diretoras brasileiras que, trabalhando diferentes temas, gêneros e formatos, têm ajudado a apontar o caminho para o futuro. É o futuro, por exemplo, que vemos em Eleições (2018), documentário no qual a diretora Alice Riff acompanha a votação para eleger o novo grêmio de uma escola pública no centro de São Paulo. Este espaço tão desvalorizado pela sociedade, e tão pouco retratado pelo cinema, é visto aqui como parte fundamental da formação política dos jovens e como microcosmo do Brasil.

Assim como Eleições vai muito além da votação do grêmio, também o documentário Slam: Voz de Levante (2017) extrapola a proposta inicial de narrar a trajetória do slam, nome dado à batalha performática de poesia que surgiu nos Estados Unidos e tornou-se muito popular no Brasil. Ao retratar esta cena artística vibrante, as diretoras Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D’Alva refletem sobre a importância de todas as vozes serem ouvidas - especialmente as de grupos historicamente e injustamente subrepresentados na política, nos meios de comunicação e também nas artes. Três curtas-metragens exibidos em sessão única acrescentam a este debate: Cores e Botas (2010), de Juliana Vicente; Peripatético (2017), de Jéssica Queiroz; e Sem Asas (2019), de Renata Martins. Trabalhando no registro da ficção, as cineastas escalam crianças e adolescentes negros como protagonistas e convidam o público a refletir sobre a potência das imagens e de se contar a própria história.

O protagonismo negro também está em frente e por trás das câmeras em Até o Fim, novo filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa, a dupla do sucesso Café com Canela (2017). Com lançamento nos cinemas previsto para agosto, o longa sobre o reencontro de três irmãs após 15 anos é novamente ambientado no Recôncavo Baiano, onde os diretores estudaram cinema, começaram a carreira e seguem desenvolvendo seus filmes.  A maior descentralização da produção audiovisual brasileira foi um dos mais bem-vindos resultados das políticas públicas das últimas décadas, agora lamentavelmente ameaçadas, e a programação do CineAtiva - Mulheres à Frente também inclui Amor, Plástico e Barulho (2015), de Renata Pinheiro, sobre uma jovem que sonha em ser cantora de brega no Recife; A Cidade Onde Envelheço (2016), de Marília Rocha, sobre amigas portuguesas vivendo em Belo Horizonte; Mutum (2007), de Sandra Kogut, que adapta Guimarães Rosa para mostrar a infância de um garoto no sertão mineiro; e Los Silencios (2018), de Beatriz Seigner, que extrapola as fronteiras brasileiras e discute a condição dos imigrantes na América Latina a partir da história de uma mãe que foge do conflito armado colombiano.

O ciclo ainda celebra o cinema de gênero produzido no Brasil exibindo Sinfonia da Necrópole (2014), um misto de romance, fantasia e musical dirigido por Juliana Rojas; e o belo trabalho das brasileiras na animação, com a exibição de três curtas em sessão única:    Guida (2014), de Rosana Urbes; Torre (2017), de Nádia Mangolini; e Carne (2019), de Camila Kater. A programação se completa com a exibição de um clássico do cinema e da literatura nacional: A Hora da Estrela (1985), adaptação de Suzana Amaral para a obra de Clarice Lispector. Nesta sessão especial, o filme será exibido com trilha sonora apresentada ao vivo.

Longe de tentar abraçar toda a multiplicidade da produção, o CineAtiva pretende convidar o público a conhecer melhor o trabalho das diretoras brasileiras, discutir a presença da mulher nas telas e na sociedade, e refletir sobre porque uma indústria audiovisual mais inclusiva é também mais rica e mais forte.

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*Luísa Pécora é jornalista e criadora do site Mulher no Cinema, dedicado ao trabalho das mulheres nas telas. Ela assina a curadoria compartilhada com o Sesc Campo Limpo do CineAtiva - Mulheres à Frente.