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O Lado B da Censura

* Por Pedro Alexandre

Na memória coletiva, o termo apartheid se conecta imediatamente com a lembrança do regime de segregação racial instalado oficialmente na África do Sul entre 1948 e 1994. Os humores humanos que levam à segregação social, no entanto, estão muito mais próximos de nós do que aparentam: apenas alguma variável de apartheid cultural pode explicar o lugar marginal que artistas brasileiros como, por exemplo, os fluminenses Benito di Paula e Luiz Ayrão e o goiano Odair José ocuparam na cultura oficial brasileira da ditadura de 1964 em diante.

Uma dessas estratégias segregacionistas carimbou na testa de artistas como essas três estrelas do projeto O Lado B da Censura, do Sesc 24 de Maio, o rótulo discriminatório de “cafonas”, como se, “menores” ou “inferiores”, eles ocupassem um lado B da cultura classe A da MPB de extração universitária. Esse lugar-comum começou a mudar em 2002, quando o historiador baiano Paulo Cesar de Araújo publicou o livro Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar (ed. Record). O que ele defendia é que as camadas mais intelectualizadas da sociedade brasileira disfarçaram sob o manto da reprovação estética o que era, na verdade, uma política de discriminação contra os artistas que criavam (e criam) a partir de origens sócio-culturais marginalizadas.

A bordo do apelido discriminatório de “cantor das empregadas” e de hits colossais como “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, Odair José falou a um público abandonado pela cultura oficial, que não se sentia bem-vindo no elevador social dos edifícios culturais brasileiros, embora ajudasse a erguê-los e a sustentá-los financeiramente, à custa do amor pela espetacular galeria de artistas brasileiros ditos “cafonas”.

De maneira semelhante, ergueu-se com o tempo a falsa noção de que a Censura do governo militar teria incidido apenas contra os artistas engajados da música popular universitária. Tal como Chico Buarque ou Caetano Veloso, artistas como Ayrão, Benito e Odair tiveram canções censuradas pela ditadura por motivos comportamentais, morais ou políticos e colecionam histórias antológicas de burlas à repressão. Essas compõem a razão de ser do projeto O Lado B da Censura, em causos ou em canções como “Apesar de Você”, de Benito (cujo LP foi recolhido das lojas por determinação da Censura), “Liberdade! Liberdade!”, lançada por Ayrão em pleno 1968, e “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, que indispôs Odair com o regime por bater de frente com a estratégia de controle de natalidade advogada pelo governo militar.

Nestes dias em que o passado parece amargamente presente, o Sesc cumpre a tarefa cidadã de rejeitar o apartheid que separou e separa músicos populares de músicos muito populares. É especialmente loquaz que o reencontro se dê diante do público da unidade 24 de Maio, no centro de São Paulo, onde sempre vicejaram livremente (ou quase) sambistas, forrozeiros, roqueiros, rappers e funkeiros.

Pedro Alexandre
Jornalista musical e autor dos livros "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" e "Como Dois e Dois São Cinco"