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Rinocerantas
Apreciação Crítica do Espetáculo "Rinocerantas" da Cia. Lona De Retalhos.
Mostra de Teatro Político no ABC: identidade e resistência.
Apresentação no teatro do Sesc Santo André – 8 de abril de 2018.
A mais recente edição do Festival de Teatro de Curitiba registrou um episódio emblemático do momento em que vivemos nesse país. Logo no início de um dos espetáculos da mostra oficial, uma espectadora levantou-se e, indignada, vociferou “paguei ingresso para ver teatro e não ouvir sobre política”. Sua voz é representativa de um grande número de cidadãos que sofreu algumas das consequências mais nefastas do golpe civil-militar de 1964, reforçadas pelo golpe televisionado de 2016: a obsolescência programada da educação (lembremo-nos de Darcy Ribeiro ao denunciar que a crise da educação no Brasil era um projeto), o desábito paulatino do livre pensar e a despolitização generalizada, ainda que sob o disfarce de grandes movimentos sociais, manipulados em sua maioria.
Para ela e para tantos outros “cidadãos de bem”, teatro é lugar de entretenimento, de preferência inócuo, uma extensão de certos conteúdos televisivos. A convivialidade teatral – pressuposto de uma assembleia reunida em torno de um debate comum a todos – passa-lhes despercebida. Em sua opinião, o que une os espectadores e lhes dá a totalidade de um público, é o riso ou o choro atávicos, desprovidos de maiores reflexões. Ao final do espetáculo, retorna cada um à sua mônada e segue-se vivendo, à espera de novos surtos coletivos. Uma plateia de rinocerontes a considerar os artistas meros bobos da corte, sem qualquer “utilidade” ou função que não a de entreter a quem “pagou ingresso” para “se divertir e se emocionar”.
A eficiente metáfora animal quem sugere é o dramaturgo romeno Eugéne Ionesco (1909-1994), consagrado autor de uma linhagem de textos enfeixados na estética do Absurdo. Sua peça “O rinoceronte”, publicada em 1959, ganhou mundo e a ela se recorre sempre que se quer falar do totalitarismo, da intolerância, do desrespeito às diferenças. Nela, “Cidadãos de bem” de uma cidadezinha pacata transformam-se pouco a pouco em feras capazes de grandes destruições. Ao final, resta apenas Bérenger, triste por haver perdido seu amigo Jean, sua amada Dayse, seus colegas de escritório, todos metamorfoseados. Bérenger, uma espécie de Pierrô – melancólico, romântico, sensível, ponderado – estranho às normas férreas, criticado justamente por não se enquadrar, é o único ser humano que sobrevive, não sem antes se questionar sobre as vantagens que teria em ser como todos os demais. Ainda que sozinho, não se renderá.
Dado o nosso contexto, a Cia Lona de Retalhos foi buscar, sabiamente, na obra de Ionesco, o material para seu trabalho. Haveria de ser uma releitura contemporânea suficientemente oportuna, não fosse sua adaptação dirigida ao público infantil. A decisão por retomar “O rinoceronte” pela estética clownesca radicalizou a metáfora, aprofundando-a, tornando-a ainda mais potente e alcançando os pequenos na esperança de uma pedagogia da alteridade.
Em sua busca pelo essencial, o grupo reduziu a trama à convivência, ora harmoniosa ora não, de duas figuras que vivem sob o mesmo teto: Berinjela e Joanete. O próprio espaço trata de caracterizá-los: uma casa estilizada, dividida em dois ambientes contrastantes. O da esquerda é organizado, minimalista e quase monocromático, o da direita revela uma certa desordem, a presença de cores e paredes desenhadas. Um armário, um rádio e um cronograma de atividades decoram o primeiro, o segundo é despojado. O comportamento dos personagens desdobra-se na relação com o espaço: hábitos rígidos ou flexíveis; trajetos e trejeitos retilíneos ou desformes; obediência ou descaso para com as regras; sisudez ou airosidade; destreza ou inabilidade e assim por diante. Joanete, como aquela protuberância dolorosa no pé, é sistemática, incomoda-se com os desvios de Berinjela que, como o fruto sugere, é “macia”, curvilínea e presta-se a múltiplas finalidades.
A estética do cartoon é boa aliada na medida em que acentua o tom crítico da abordagem, de modo que a fábula consegue a empatia do público não só com relação ao discurso verbal. Para isso contribuem também o figurino, o teatro de objetos e a trilha sonora, permeada de música erudita, a tecerem uma camada delicada em que situações por vezes conflituosas se desenrolam. É delicioso presenciar a reação das crianças a determinadas cenas e perceber o quanto é possível comunicar de forma lúdica conteúdo tão marcadamente político.
Apresentadas as personagens e as diferenças entre elas, fica-se sabendo da presença dos rinocerontes alhures. Em pouco tempo, acompanhamos a transformação de Joanete e vemos sua intolerância exacerbada. Em suas falas, o grupo evoca muito do que se diz nas ruas e nas redes sociais – o preconceito, o moralismo, o modismo, a segregação, a violência e tudo mais. A figura do animal cinza, gigantesco, com seu chifre e sua rígida carapaça é perfeita para simbolizar certos grupos e seu comportamento. Joanete chega até a se comover com o balé sugerido pela amiga, mas a recordação não é suficientemente forte para retirá-la do transe e ela retoma o peso e a gravidade da fera.
Assim, em pouco tempo, “a peste” cerca Berinjela e transforma o médico, o locutor de futebol e até a dupla sertaneja (aquela que recentemente não se comoveu com o assassinato de uma vereadora carioca) em bestas. Parece restar apenas um espécime ainda original, que se debate em vão na tentativa de se igualar aos demais: Berinjela, que tenta ainda repetir palavras de ordem, mas conclui que não precisa seguir a manada. Ao contrário, pode ser rinoceronte, gato, cachorro, galinha, gente e o que mais quiser. Pode se vestir como quiser, viver como quiser, enfim.
Em menos de 60 minutos, Carina Prestupa e Thaís Póvoa revisitam o clássico de Ionesco, conjugam-no a dois contos infantis e promovem um diálogo muito próximo com o momento presente. O distanciamento e a leveza propostos pela metáfora sugerem reflexões pra lá de políticas, maiores até que muitos espetáculos ditos engajados.
Nesse sentido, a Cia Lona de Retalhos assume o fazer teatral como espaço de entretenimento sem abrir mão de seu propósito de reunir pessoas em torno de uma ideia, sem abrir mão de seu potencial transformador para todos os envolvidos.
No mesmo Festival de Curitiba, quatro artistas vilipendiados em 2017 se uniram para um espetáculo que trata justamente do julgamento público a seus trabalhos e/ou à sua atitude: dois performers, uma atriz e a mãe de uma criança que interagiu em uma performance. Plateia lotada, o público acompanhou os depoimentos e solidarizou-se aos artistas. Nenhum rinoceronte se manifestou, sinal de que ainda há um grande espaço para a discussão coletiva de temas urgentes, em sua maioria políticos.
Daí a importância de projetos como esse “Teatro político no ABC: identidade e resistência”, ora levado pela equipe do Sesc Santo André. Catorze espetáculos nas mais diversas abordagens temáticas e estéticas, não por acaso a retomar a vocação teatral do ABC nos anos 1970. Que esta tenha sido apenas a primeira edição e que possamos, juntos, interromper a proliferação de bestas-fera.
Por Adélia Nicolete.