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Emenda 3 e insegurança jurídica

Conselho Superior de Direito discute sistema tributário


Milton Monti, Everardo Maciel, Ives Gandra e Bernardo Cabral
Foto: Nicola Labate

"Se o Congresso mantiver o veto à emenda 3, no dia seguinte todos os trabalhadores passarão a estar sujeitos à autuação imediata pela Receita Federal. O governo tem gerado insegurança jurídica de que se beneficia o Fisco, e, quanto maior esta, mais prevalece o princípio da chamada ilegalidade eficaz, pelo qual tudo o que é arrecadado ilegalmente, mas o contribuinte não pede de volta, transforma-se em receita", disse o presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), Ives Gandra Martins, ao final da reunião do conselho que debateu a questão da emenda 3, realizada no dia 21 de maio de 2007.
Esse é um tema que mexe até mesmo com as bases da Constituição Federal, pois, segundo o espírito do parágrafo único do artigo 170, nada – além de quesitos de segurança nacional – impede que se constitua empresa, instituição, associação ou sociedade que se desejar. E a Medida Provisória do Bem, exaustivamente negociada e que concilia os interesses do Fisco com as angústias de várias entidades profissionais, deixa claro que qualquer "empresa unipessoal", isto é, empresa de trabalhador profissional, pode ser constituída.
O governo enviou projeto de lei ao Congresso Nacional que tenta conciliar os interesses do governo com os anseios da sociedade e do qual é relator o deputado federal Milton Monti e, a pedido deste, o Conselho Superior de Direito indicou dois de seus membros – Antonio Carlos Rodrigues do Amaral e Ricardo LoboTorres – para participar de uma comissão consultiva capaz de aprimorar o projeto, antes de submetê-lo à discussão e votação.
O convidado especial desta reunião do Conselho Superior de Direito da Fecomercio foi o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, que passa a integrá-lo. Participaram do encontro, além de Milton Monti, Agostinho Tavolaro, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Bernardo Cabral, Cássio Mesquita Barros, Cid Heráclito de Queiroz, José Nilvan de Oliveira, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Ney Prado, Ricardo Lobo Torres e Rodrigo Graça Aranha.

EVERARDO MACIEL – Nosso objetivo é discutir o projeto de lei nº 536, que, na verdade, é uma manobra diversionista. Quer dizer, ou bem o governo mantinha a emenda 3 e enviava o projeto, ou bem a vetava e não mandava o projeto. Qualquer coisa diferente disso é uma contradição em termos. Reconhece-se que se precisa da lei, entretanto veta-se uma emenda que diz que ela é necessária? É quase uma confusão mental. E o governo envia para o Congresso um projeto de lei em regime de urgência urgentíssima que, de fato, não precisa disso, embora convenha a ele dizê-lo. Só que, na verdade, não é para valer.
No entanto, tudo isso esconde uma confusa agenda oculta. Há algumas organizações ligadas à área trabalhista que não sabem o que estão defendendo nem têm um argumento minimamente razoável, como essas histórias de trabalho escravo e infantil. A emenda 3 não trata de fiscalização, mas de desconsideração, duas coisas diferentes. Ela não fiscaliza nada. Segundo o presidente da Associação dos Juízes do Trabalho, 30 milhões de trabalhadores têm ações na Justiça do Trabalho. Mas se 48 milhões estão na informalidade, 30 milhões têm ações e a força de trabalho é de 80 milhões, então apenas 2 milhões não têm nenhum problema, e estão satisfeitos com a situação. Talvez haja uma aparente vontade de aumentar os impostos sobre essas pessoas. Mas o que existe, de fato, é algo mais prosaico: inveja e, mais do que isso, aumento de carga tributária pura e simples.
De todo modo, toco num ponto tabu no Brasil, que é a empresa individual. Por que razão pode existir uma firma individual daqueles que praticam com habitualidade atos de comércio e não pode a que se refere à prestação de serviço de profissões regulamentadas? Pela simples razão de que a lei diz não. Não faço a menor idéia do porquê dessa lei. Legislações tributárias de vários países prevêem a empresa em nome individual. É absolutamente comum. Se a alternativa for tratar essas empresas com regime especial, que se faça, então, o regime especial, que não sei exatamente qual é. Enquanto não existir nada disso, continua do jeito que está.
Na verdade, falta clareza para a legislação, uma questão para a qual Ortega y Gasset já advertia ao afirmar que essa qualidade é a menor das gentilezas que o legislador deve ter para com o povo. Isso nem sempre é possível, mas, para ser minimamente justo com a sociedade, precisa ser tentado como objetivo.

BERNARDO CABRAL – Na Constituição de 1988, da qual fui relator, o objetivo do parágrafo único do artigo 170 era assegurar o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nas circunstâncias da necessidade de capacitação, que não dizem respeito à discussão atual. O que se vê é uma aberração, segundo a qual a lei perde a eficácia embora esteja em vigor. Acontece que o governo claudica na forma e quando quer argumentar é pobre no conteúdo. Na verdade, não sei a razão por que hoje há um vezo a se tomar certas medidas que não apontam caminhos nem indicam soluções mas, ao contrário, agravam os problemas, como é o caso atual da emenda 3.
Ora, se nesse projeto de lei há uma clara manobra diversionista, se o governo ao vetar não precisava de lei mas, aprovado o projeto, aí sim viraria lei, dessa forma estamos, sem dúvida nenhuma, embarcando numa contradição política terrível. O artigo 170 é absolutamente resoluto e definitivo a respeito da matéria e é uma pena que o governo desconsidere essa Constituição já tão criticada. Ela é exagerada? Acho que sim, pois muitas coisas deveriam estar no plano da legislação ordinária, mas sei o que ela tem de bom, como esse artigo 170, do qual o governo não pode desviar os olhos, ignorando que é um assunto sério.

MILTON MONTI – Vão sobrar dificuldades para relatar o projeto de lei nº 536 na Câmara dos Deputados. O governo concordou em retirar o caráter de urgência do projeto e sugerimos que o Congresso Nacional e a sociedade fossem ouvidos e participassem da elaboração de uma alternativa à emenda 3 e ao projeto enviado. De fato, o projeto é muito mais abrangente do que a simples desconstituição de prestadores de serviço de caráter intelectual personalíssimo. A proposta dele é regulamentar o artigo 116 do Código Tributário Nacional, que só é eficaz se regulamentado, aliás, como está em suas normas. Enquanto não for regulamentado, o governo não terá condições de autuar empresas ou desconstituir contratos de pessoas jurídicas legalmente constituídas – contratantes e contratados – inscritas no Ministério da Fazenda, na Junta Comercial e em outros órgãos, as quais podem transacionar livremente. Existe um viés de arrecadação. É para isso que existe a Receita Federal, e seus secretários querem sempre arrecadar mais. No tempo de Everardo Maciel também foi assim. A Receita é voraz, busca eficiência, normas antielisão, isto é, instrumentos jurídicos possíveis para que a legislação tributária seja eficiente. Mas o fundamental é a clareza da legislação tributária.
Ouvimos vários segmentos da sociedade, vamos ouvir mais, os sindicatos e as centrais sindicais. Do outro lado está o governo, que argumenta não poder perder as prerrogativas e precisa continuar atuando apesar das decisões administrativas futuras ou até mesmo do Judiciário. Existe uma preocupação real do governo quanto à possibilidade de o Congresso derrubar o veto, pois a emenda foi aprovada por dois terços da Câmara e do Senado, o que explica a pressa governamental. Analisada do ponto de vista político, a colocação do veto em pauta para votação é uma espécie de espada ameaçando o governo.
Na verdade, o Congresso Nacional também é culpado por não haver uma [proposta de] reforma tributária decente, capaz de desonerar custos, e as pessoas procuram mecanismos para se desonerar da elevada tributação. Como isso não existe, a alternativa legal é a busca da eficiência fiscal. Por isso há várias empresas de planejamento fiscal, coisas tão complexas, que são necessários especialistas para, dentro da lei, entender as contribuições e impostos do país e pagá-los. As contratações de pessoas jurídicas existem, essa é uma realidade do mercado de trabalho, e as centrais sindicais gritam porque as características apontam para o trabalho formal da habitualidade e subordinação.
Posso lhes garantir que o governo aceita essas contratações, porque são legais, mas elas precisam ser explicitadas na legislação. Nos casos em que ficassem muito assemelhadas às relações tradicionais de trabalho, isto é, com as características de emprego, para arrecadar um pouco mais o governo propõe uma taxação extra a essas pessoas jurídicas, com um certo viés ideológico. Na verdade, existe a comparação: um trabalhador ganha R$ 2 mil e paga 27,5% (descontadas as deduções) e um profissional ganha R$ 100 mil e vai pagar menos, prestigiando-se dessa forma quem ganha mais e onerando quem ganha menos. É preciso equilíbrio. O governo quer regularizar isso de forma a, na verdade, aumentar a carga tributária. E as pessoas jurídicas sem as características da subordinação e da habitualidade não teriam a tributação complementar. O texto que trata das atividades culturais e artísticas é subjetivo, e os profissionais nelas incluídos podem vir a ser questionados se podem ser enquadrados nessas categorias. A vinculação com a sua categoria profissional pode evitar problemas futuros. O governo é pressionado pelas centrais sindicais por conta de uma possível precarização do trabalho, mas há também o imposto sindical.

MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO – Há 20 anos redigi um texto ao qual dei o nome de Direito Constitucional Econômico, um conjunto de normas que garantissem a livre iniciativa e, assim, propiciassem o desenvolvimento nacional. O trabalho expressava a preocupação com o crescimento e a intervenção do Estado e sua ganância e apetite em matéria de tributação. Critiquei muito a Constituição de 1988, mas o artigo 170 e seu parágrafo 1º contribuíam para o equacionamento da economia brasileira, que se vê ameaçada por propostas como a que está em discussão aqui.

CID HERÁCLITO DE QUEIROZ – Além dos já citados artigos, há o de número 5, inciso XVII, segundo o qual é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedadas as de caráter paramilitar. A liberdade de associação é ampla, isto é, para todas as formas de sociedade de pessoas jurídicas admitidas pelo Código Civil. Há mais: na origem disso tudo, mais do que incidência de tributos está a das contribuições previdenciárias.

IVES GANDRA MARTINS – Se o Congresso Nacional mantiver o veto à emenda 3, no dia seguinte todos os trabalhadores passarão a estar sujeitos a autuação imediata pela Receita Federal. O governo não tem alertado para isso, que precisa ser levado em consideração. Ou então deve declarar que, no momento do envio do projeto, ficam anulados todos os autos de infração lavrados até agora, para que não sejam levados ao Judiciário e não se explore a seguinte contradição: a Receita protege de tal forma que, em nome disso, os trabalhadores terão que pagar mais tributos. Isso me parece uma armadilha do governo, que pode prejudicá-lo ainda mais perante o trabalhador.
Há mais duas questões que levo à reflexão do deputado Milton Monti. Uma trata da coerência jurídica. Segundo o governo, é um absurdo o trabalhador constituir pessoa jurídica, que esse mesmo governo pretende desconsiderar dizendo que não há pessoa jurídica, só física. Mas se quiser ser pessoa jurídica, pagará 10% mais de tributo, e aí o argumento jurídico desaba, sem que nada o sustente. O governo tem gerado insegurança jurídica de que se beneficia o Fisco, e quanto maior esta mais prevalece o princípio da chamada ilegalidade eficaz, pelo qual tudo o que é arrecadado ilegalmente, mas o contribuinte não pede de volta, transforma-se em receita.
Em outros países, como nos Estados Unidos, o contribuinte é respeitado. Aqui, ele é desqualificado numa discussão em que aparece esse elemento que é o interesse público, isto é, o interesse do imposto sindical, do aumento da receita, da não defesa do contribuinte, da execução fiscal sem necessidade, da participação do Poder Executivo, da redução da correlação de forças no Conselho de Contribuintes, de forma a que não se possa discutir.
Não haverá reforma tributária, porque, se houvesse, implicaria em quê? O governo já tem a receita que pretende, e na medida em que tira direitos do contribuinte só precisa do exercício da força para arrecadar, sem interesse maior em discutir uma reforma, que pode lhe subtrair uma parcela do bolo tributário. Os contribuintes gostariam de reduzir o nível impositivo e o governo só quer aumentá-lo. Como não consegue diminuir as despesas, cobre-as com a ampliação da receita. Sem reforma tributária chegaríamos a aspectos curiosos e irônicos da insegurança jurídica. No momento em que uma empresa fosse desconsiderada para pessoa jurídica, um município que estivesse satisfeito com os 5% que recebe poderia criar sua emenda 3, para não ter sua receita prejudicada. E o cidadão ficaria na dupla condição de ser pessoa física para a Receita Federal, pagando mais, e pessoa jurídica para o município, em face do mesmo direito que, na igualdade da Federação, todas as entidades federativas têm em relação ao nível e à forma impositiva no sistema tributário brasileiro.
Tem a Receita Federal tributos mais que suficientes para administrar este país. Efetivamente, há alguma coisa de muito errado em tirar ainda mais da sociedade quando o PIB é constituído de 40% de tributos e 60% de participação da própria coletividade.

 

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