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Não é miragem: há desertos no Brasil

Uso inadequado de práticas agrícolas em solos frágeis gera desertificação

EVANILDO DA SILVEIRA


Arenização no sudoeste do Rio Grande do Sul
Foto: Atlas da Arenização / UFRS

O tema não tem tanto destaque nas páginas dos jornais e nos programas de TV quanto o aquecimento global, mas aos poucos o fenômeno da desertificação vem recebendo a atenção que merece de ambientalistas, pesquisadores e governos do mundo todo. Não sem razão. A cada ano, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 6 milhões de hectares de terras (ou 60 mil km², área que equivale a duas vezes a da Bélgica) se tornam improdutivos e caminham para se transformar em deserto. Por isso, já existe consenso em nível internacional de que esse é o maior problema econômico, social e ambiental em várias regiões do mundo.

Os números justificam essa idéia. A degradação afeta 33% da superfície terrestre, atingindo cerca de 2,6 bilhões de pessoas. Particularmente na região subsaariana, na África, de 20% a 50% das terras estão degradadas, prejudicando mais de 200 milhões de pessoas. A situação também é grave na Ásia e na América Latina, somando mais de 516 milhões de hectares. Como resultado desse processo, há perdas anuais de 24 bilhões de toneladas da camada arável, o que influi negativamente na produção agrícola e no desenvolvimento sustentável. Em todo o mundo, a extensão territorial onde ocorrem secas aumentou mais de 50% durante o século 20.

No Brasil, os dados também impressionam. As áreas suscetíveis à desertificação (ASD) no país estão localizadas no nordeste e em uma pequena parte do sudeste, onde se encontram espaços climaticamente caracterizados como semi-áridos e subúmidos secos. No total, elas somam cerca de 1,13 milhão de km², dos quais 710 mil km² (62,8 %) são caracterizados como semi-áridos e 420 mil km² (37,2 %) como subúmidos secos. Essas áreas se espalham por 1.201 municípios dos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e norte de Minas Gerais.

Dentro dessas áreas há outras em que a situação é mais grave. São os chamados núcleos de desertificação, onde o processo está bem mais adiantado. Existem quatro locais no Brasil classificados como tal: Seridó, no Rio Grande do Norte, na divisa com a Paraíba, com 2,3 mil km², Irauçuba, no Ceará, com 4 mil km², Gilbués, no Piauí, com 6,1 mil km², e Cabrobó, em Pernambuco, com 5,9 mil km². Segundo José Roberto Lima, coordenador do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil), do Ministério do Meio Ambiente (MMA), há outros que caminham para o mesmo destino, por exemplo no Cariri da Paraíba, no sertão da Bahia e em Canindé, no Ceará.

O problema não se restringe a esses lugares, no entanto. Aos poucos, ele avança para o entorno das regiões semi-áridas e subúmidas secas, compreendendo uma superfície de mais 207 mil km², distribuídos ao longo de 281 municípios. Somando com as ASD, são cerca de 1,34 milhão de km², ou 15,72% do território nacional, que correm o risco de se transformar em deserto. É um espaço onde, em 2000, viviam 31,6 milhões de habitantes, ou 19% da população brasileira.

Apesar de receber a designação de ASD, esses locais têm características peculiares em relação a outras áreas do planeta com o mesmo quadro. Em termos relativos, seu índice de chuvas e densidade demográfica são maiores. Além disso, seu espaço abriga um bioma único no mundo, a caatinga.

Aquecimento global

Para piorar a situação, o efeito estufa, que vem se acentuando nos últimos anos, deverá agravar o processo nas próximas décadas. Segundo o meteorologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o aquecimento global vai tornar as secas e as chuvas mais intensas nas regiões semi-áridas. Isto é, vai chover menos, mas quando isso ocorrer as precipitações serão mais fortes. "São justamente as condições que, aliadas à ação do homem, aceleram o processo de desertificação", diz. "Por isso, a tendência é de agravamento desse quadro."

As causas do fenômeno são várias. Entre elas, o uso inadequado das terras é uma das principais. "Normalmente, a falta de planejamento na ocupação do solo conduz à sobrecarga do meio ambiente, levando à degradação da terra e de outros recursos naturais, como a água e as florestas", explica o engenheiro agrônomo Luciano Accioly, da Embrapa Solos de Recife, uma unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Segundo ele, no nordeste, o uso para fins de agricultura e pecuária da região do semi-árido ocorre, na grande maioria dos casos, sem a utilização de tecnologias que reduzem, substancialmente, a perda de terras aráveis. "Dessa forma, as pastagens em geral têm mais gado do que poderiam suportar, levando ao sobrepastoreio, que prejudica o local", diz.

Além disso, algumas culturas, como algodão e milho, têm sido implantadas com o emprego de métodos que agravam o problema. "Práticas como a irrigação, que têm um elevado custo para o agricultor ou para o governo e que podem representar uma saída para a produção agrícola no nordeste, são utilizadas de forma inadequada, gerando a salinização de terras agricultáveis, que é, também, uma das causas da desertificação", alerta Lima. "O custo de recuperação de áreas com altos teores de salinidade pode ser maior do que o da irrigação. Portanto, uma vez salinizadas, essas terras são abandonadas."

Para o geógrafo João Osvaldo Rodrigues Nunes, do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia, do campus de Presidente Prudente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), essa situação decorre da ação humana sobre as paisagens com tendência a virar deserto. "A partir desse aspecto, que serve de catalisador do processo, podem-se destacar algumas causas específicas", explica. "Entre elas, a implantação inapropriada de técnicas de uso intensivo de implementos agrícolas, com base na monocultura, sobre ambientes ecologicamente frágeis; atividades de mineração intensiva sem técnicas de controle das drenagens superficiais com excessivo revolvimento das coberturas; o uso intensivo de solos com textura arenosa em ambientes semi-áridos; e a redução da biomassa por meio do desmatamento em cabeceiras de drenagem e matas ciliares, em áreas de preservação permanente."

Solo pobre

A desertificação não é o único processo, no entanto, que torna improdutivas vastas áreas. Existem grandes espaços aparentemente sem sinal de vida ou água, mas que não se enquadram na categoria de deserto. São os chamados areais ou regiões de arenização, que no Brasil aparecem no Rio Grande do Sul e na região centro-oeste. Sua origem remonta a 200 milhões de anos, quando a maior parte do centro-sul brasileiro era um imenso deserto. Hoje, essa área é conhecida geologicamente como formação Botucatu – um solo pobre, com muita areia em sua composição.

A diferença básica entre os dois fenômenos está na quantidade de chuva que o local recebe. A primeira conferência das Nações Unidas destinada a discutir o assunto, realizada em 1977 em Nairóbi, no Quênia, definiu a desertificação como "diminuição ou destruição do potencial biológico da terra que poderá desembocar, em definitivo, em condições do tipo deserto". De acordo com a geógrafa Dirce Suertegaray, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o território gaúcho não é uma região afetada por isso. "Ele está localizado numa região de clima subtropical, com precipitação média anual de 1,4 mil milímetros", explica. "Assim, está fora da zona onde o clima é o motivo principal da degradação. Por isso, os areais, no Brasil, são denominados área de atenção especial."

Dirce sabe do que está falando. Há mais de dez anos ela estuda a questão e recentemente organizou e publicou, com colegas, o Atlas da Arenização – Sudoeste do Rio Grande do Sul. Nele, ela mostra que hoje o problema atinge dez municípios daquela região, em torno de Alegrete, Quaraí e São Borja, totalizando uma área de 36,7 km² já arenizados e mais 1,6 km² que segue o mesmo caminho. Dirce também demonstra que o fenômeno é mais antigo do que se imagina. "Povos caçadores-coletores já conviviam com ele há séculos", diz. "Mas isso foi agravado pelo uso inadequado do solo, principalmente pelo cultivo da soja."

Essa é, aliás, a causa da arenização que ocorre em algumas regiões do cerrado, principalmente em Goiás. Segundo o professor Archimedes Perez Filho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a retirada da vegetação nativa e a introdução da cultura da soja, após a utilização do cerrado pela pecuária, vem provocando o assoreamento de rios, como o Araguaia, principalmente nas cabeceiras dos afluentes que o formam, e intensificando a erosão de grandes áreas, um fenômeno que tem acompanhado o processo de arenização. São enormes manchas expostas, oriundas da formação Botucatu, constituídas de areia (grãos de quartzo) e localizadas em diversas áreas do território brasileiro. A ação dos ventos sobre a superfície e a criação extensiva de gado aceleram esse processo, tornando o solo improdutivo e degradado. Pode ser o prenúncio de futuros desertos.

Tragédia na África

Por ser mais globalizada e se manifestar em maior escala, a desertificação vem chamando mais a atenção do que a arenização. Um marco desse fenômeno, que despertou a atenção mundial para a gravidade da situação, foi a tragédia ocorrida na região do Sahel – uma extensa faixa de terra que corta vários países da África no sentido leste-oeste, ao sul do Saara –, entre 1968 e 1973, quando morreram cerca de 500 mil pessoas por causa de uma grande seca. Foi a partir daí que a comunidade internacional começou de fato a se mobilizar para combater o problema.

A preocupação científica com a questão, no entanto, é um pouco mais antiga. Ela começou a vir à tona na década de 1930, quando uma seca de três anos no meio-oeste americano, agravada pela degradação da terra, deu início a uma série de pesquisas acadêmicas voltadas ao conhecimento dos processos que levam à formação de desertos. A consciência de sua gravidade, no entanto, só surgiu mesmo com a tragédia do Sahel. A partir da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente Humano, realizada em 1972 em Estocolmo, o caso começou a ser de fato debatido nos fóruns internacionais. Em 1977, na Conferência sobre Desertificação ocorrida em Nairóbi, foi discutida a necessidade de adotar uma política específica para as regiões semi-áridas do mundo, tanto por suas características ambientais como pela situação geral das populações.

Nada foi posto em prática, entretanto, nos anos seguintes. Por isso, diante do fracasso dos programas internacionais, ficou evidente a necessidade de criação de uma convenção mundial, com o objetivo de conseguir maior comprometimento das nações, principalmente as mais ricas. Isso foi debatido na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992, a Eco 92.

Em janeiro do ano seguinte foram iniciadas as discussões para a criação da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês), concluídas em 17 de junho de 1994, data que se transformou no dia mundial de luta contra esse problema. A convenção é um instrumento de acordo internacional ratificado por diversos países, que estabelece as diretrizes de ação, na luta para reverter a situação. Trata-se, atualmente, da maior referência para planejar quaisquer iniciativas de controle ou combate ao fenômeno.

A UNCCD está em vigor desde 26 de dezembro de 1996 e já foi assinada por 190 países. O Brasil a ratificou em 12 de junho de 1997 e, como signatário, obrigou-se a elaborar um plano de ação nacional para amenizar ou resolver o problema – compromisso que levou à criação do PAN-Brasil.

Esse programa foi lançado na Conferência Sul-Americana sobre o Combate à Desertificação, realizada em agosto de 2004 em Fortaleza. Na mesma ocasião, Brasil, Argentina, Peru, Venezuela, Chile, República Dominicana e Honduras se comprometeram a unir esforços para reduzir os impactos econômicos, sociais e ambientais da desertificação na América Latina e no Caribe.

Segundo José Roberto Lima, que coordenou a elaboração do PAN-Brasil, participaram desse trabalho, além de representantes ministeriais, cerca de 400 organizações, envolvendo diversos atores sociais com experiência nas ASD, num total de 1,3 mil pessoas.

Ações integradas

Entre as medidas já implementadas, podem-se citar o programa de construção de cisternas, que é anterior ao PAN-Brasil mas foi incorporado a ele, a divulgação de técnicas adequadas para conservação do terreno e cursos para a formação de agentes multiplicadores que atuem no combate à desertificação. Segundo Lima, cerca de 500 pessoas já foram treinadas na região do semi-árido, com essa finalidade.

Ainda de acordo com Lima, as próximas ações do PAN-Brasil, em parceria com o Ministério da Integração Nacional, tratarão da segurança hídrica nas ASD. "Serão construídas barragens e promovido o treinamento de comunidades, nos moldes do Programa de Recursos Hídricos e Recuperação de Solos Degradados (Prodam), desenvolvido pelo Ceará", explica.

Quanto aos recursos para colocar em prática as ações previstas, Lima diz que eles serão mais bem definidos no Plano Plurianual 2008-2011 do governo federal. Segundo seus cálculos, serão necessários R$ 2 bilhões por ano, até 2020, para recuperar as áreas que apresentam risco de se transformar em deserto. Em termos mundiais, a UNCCD estima que deveriam ser investidos US$ 22 bilhões anuais durante 20 anos, o que totaliza US$ 440 bilhões nesse período. Pode parecer muito, mas corresponde a pouco mais da metade do prejuízo que a desertificação já causa no mundo hoje, que é de US$ 42 bilhões anuais – em outras palavras, US$ 840 bilhões em 20 anos.

Esse valor excede em muito o que efetivamente vem sendo aplicado. No caso do Brasil, para este ano, o programa do governo federal conta com apenas R$ 12 milhões no orçamento destinados a essa finalidade.

Embora o número de ações seja pequeno, devido à escassez de recursos, Lima garante que o PAN-Brasil já tem resultados a apresentar. "Nos últimos dois anos foram reduzidos sensivelmente os índices de avanço das áreas degradadas, que chegaram a ser de 3% ao ano", diz. "Aos poucos, vêm sendo desenvolvidos estudos e ações que estão ajudando a mudar a realidade nas localidades atingidas pelo problema."

 

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