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De como fugir das leis trabalhistas

Empresas contratam pessoas jurídicas para não pagar direitos garantidos pela CLT

OLAVO SOARES


Manifestação de metalúrgicos: em defesa da fiscalização
Foto: André Campos

Tornar-se um empresário. Essa é uma meta de muitos brasileiros, que vêem nessa forma de trabalho um modo de se ver livres do mundo de patrões e horários e dar uma oportunidade ao próprio empreendedorismo.

Para outra parte deles, no entanto, entrar para o clube dos "donos de empresa" não significa avanço na vida profissional. Ao contrário, é um verdadeiro retrocesso, que tem de ser aceito como a única alternativa ao desemprego. Trata-se daqueles que são contratados no regime de pessoa jurídica – conhecidos como "PJs" ou "empresas de uma pessoa só". Trabalhadores que vivem o cotidiano típico de quaisquer outros – com chefe, horário, punição por faltas, etc. –, mas, no contrato, são donos de uma empresa que presta serviços a um empregador regular.

O acirramento da competição na área econômica a partir da década de 1990, durante o governo de Fernando Collor, reforçado pelo regime de âncora cambial de Fernando Henrique Cardoso, fez com que a redução dos encargos trabalhistas se tornasse uma verdadeira meta no meio empresarial. "O Brasil está em competição direta com Índia e China – países em que os gastos com mão-de-obra são extremamente baixos. Então os empresários vêem a necessidade de reduzir essa despesa e, em muitos casos, lançam mão de fraudes", diz o professor Adalberto Cardoso, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

Pagar corretamente os benefícios ao trabalhador – décimo terceiro salário, contribuições ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e outros – é algo que realmente complica as contas dos pequenos empregadores. Mas não são necessariamente eles que recorrem a esse expediente na hora de contratar um funcionário. Grandes empresas, que pagam altos salários a executivos gabaritados, são as que mais se valem desse recurso.

Nos últimos meses, essa prática ganhou destaque na mídia com o debate acerca da emenda 3 da Super Receita. Segundo esse dispositivo da lei, aprovada pelo Congresso Nacional em fevereiro, os auditores fiscais não mais poderiam determinar o fechamento da PJ nem autuar o empregador. Sua função ficaria restrita a comunicar a irregularidade do vínculo empregatício à Justiça do Trabalho, que iniciaria então um processo judicial, com a lentidão que caracteriza essas ações. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou a emenda em março, mas ainda existe a possibilidade de que a Câmara dos Deputados derrube o veto presidencial.

Fraude

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que rege as relações trabalhistas no Brasil, sugere logo em seu terceiro artigo a ilicitude dessa prática. Diz o texto oficial: "Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário". Ou seja, caso seja constatada a ocorrência de relação empregatícia entre duas pessoas jurídicas, ficará caracterizada fraude.

E como averiguar se o que ocorre legalmente entre duas pessoas jurídicas é uma relação de trabalho? Por meio de elementos como a exclusividade (prestação de serviços para um único tomador), subordinação (existência de um "chefe", na acepção da palavra) e jornada determinada (regime de trabalho com horários predeterminados e desconto caso haja descumprimento por parte do "empregado"). "Quando se verificam esses elementos, trata-se de uma fraude descarada", diz o juiz titular Jorge Araújo, da Vara do Trabalho de Rosário do Sul (RS). E ele não está sozinho: o meio jurídico, em geral, condena a prática.

A advogada Maria de Lourdes Amaral, de São Paulo, qualifica essa prática de "enriquecimento ilícito". Corriqueiramente, casos similares aparecem no noticiário – e os processos costumam ser favoráveis aos empregados, que recebem a posteriori valores referentes aos direitos trabalhistas que os contemplariam se a contratação fosse feita, desde o início, de acordo com a CLT. "Ainda assim, o sistema continua a ser vantajoso para o empregador. Afinal, não são todos os trabalhadores que recorrem à Justiça para reaver seus direitos, e os que fazem isso nem sempre ganham. Mesmo perdendo um processo ou outro, ainda é algo que compensa financeiramente aos empregadores", diz a advogada.

Segundo Araújo, esse "favorecimento" aos trabalhadores se explica pela própria natureza da contratação. "O empregado é a parte fraca do processo: ou aceita o regime de PJ ou fica desempregado. Se ele pudesse optar livremente entre dois sistemas, teríamos outro cenário. Nesse caso, porém, o que ocorre é que o trabalhador não pode escolher, e por isso o Estado precisa intervir", explica. Em sua opinião, a ação do Judiciário se faz necessária porque essa questão econômica traz reflexos gerais para a sociedade – não se tratando somente de uma relação entre duas partes.

Vale ressaltar que, em alguns casos, o beneficiário dessa fraude pode ser também o empregado. Entre os trabalhadores com altos salários, tem sido comum a opção por esse sistema, que lhes garante o recebimento do salário "limpo", sem os descontos previstos pela CLT. Entretanto, mesmo que haja "comum acordo" entre empregado e patrão, fica caracterizada uma prática que burla a lei. "Dentro do direito do trabalho, há algumas normas irrenunciáveis, ou seja, das quais a pessoa não pode abrir mão. E o vínculo de emprego é um desses elementos", explica a advogada Ana Hirano, que desenvolve pesquisa sobre o tema na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

O juiz Jorge Araújo, assim como outros representantes do mundo jurídico, não acredita que essa prática fraudulenta ocorra devido a uma possível falta de legislação adequada sobre o assunto. "As leis existem, o que falta é cumpri-las", resume ele. Segundo Luís Fabiano de Assis, procurador do Ministério Público do Trabalho de São José dos Campos (SP), "muitas das respostas para esse problema estão na própria Constituição Federal". A saída, então, está na fiscalização.

Mas é justamente a fiscalização que ficaria na berlinda caso fosse aprovada a emenda 3. "Essa proposta é completamente ilógica. É como se um policial não pudesse mais prender um bandido e precisasse para isso da autorização de um juiz", diz Araújo. O deputado federal Paulo Pereira da Silva (PDT-SP) acredita que o principal efeito da emenda seria a aplicação em massa da "pejotização". "Estaria aberta a possibilidade para que as empresas transformassem em pessoa jurídica desde o diretor até o faxineiro."

Já os defensores da emenda alegam que a medida evitaria arbitrariedades dos fiscais. "A emenda era boa, o veto é ruim. Não é qualquer um que tem condições de verificar se uma relação de trabalho é ou não fraudulenta", afirma Almir Pazzianotto, ex-ministro do Trabalho do governo de José Sarney. Segundo ele, a complexidade desse tipo de atribuição faz com que ela deva ser direcionada ao Judiciário.

Impostos, sempre eles

Como se sabe, um empregador precisa desembolsar uma quantia considerável, além do salário, para contratar um funcionário de acordo com o que impõe a lei. A legislação brasileira tem um traço paternalista e onera o "patrão" com encargos como INSS, FGTS, seguros e outros. A grita do meio empresarial é constante: é necessário reduzir a carga tributária para que mais pessoas sejam contratadas e, por conseqüência, a economia do país cresça.

A professora Maria Cristina Cacciamali, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, afirma que um remanejamento dos impostos é a principal saída: "Não há grandes alternativas a esse caso que não passem por uma reforma tributária". Alguns itens que compõem o universo dos impostos ao empregador poderiam, segundo a professora, ser repensados. "Encargos como alguns seguros não precisam ser recolhidos para todos os profissionais. Essas modificações já representariam um bom avanço", declara.

Maria Cristina ressalta também que a estrutura social é prejudicada com a sonegação praticada por muitos empresários em casos como o de contratação de PJs – e que isso tem reflexos na própria cadeia de impostos. "Os efeitos são macroeconômicos e acabam, de fato, pesando sobre a produtividade do país. É uma perda de receita para o governo e, em linhas gerais, para o Brasil. Afinal, cria-se um cenário não de concorrência, mas de competição degradada", acrescenta.

É importante ressaltar que a questão das PJs é diferente do sistema conhecido como terceirização, adotado por empresários para reduzir custos, mas que, se aplicado de maneira adequada, funciona nos parâmetros da lei. "As PJs são uma forma de burlar a CLT, o que não acontece na terceirização, uma vez que os trabalhadores recebem todos os seus direitos", diz Jan Wiegerinck, presidente do Sindicato das Empresas de Prestação de Serviços a Terceiros, Colocação e Administração de Mão-de-Obra e de Trabalho Temporário no Estado de São Paulo.

Guerra fiscal

A criação indevida de PJs gera ainda, em muitos casos, outra prática ilícita. Os trabalhadores, obrigados a abrir uma empresa em seu nome, temem – assim como seus empregadores, aliás – os altos impostos. Por isso, muitos instalam a sede de sua empresa em um município em que as alíquotas do Imposto sobre Serviços (ISS) sejam menores que as das capitais.

É o caso de Renato (nome fictício), técnico de cinema. Ele presta serviços continuamente em São Paulo e tem uma empresa em seu nome que está sediada em Guararema, na Grande São Paulo. A escolha desse município foi sugerida por seu contador, justamente por ter uma alíquota mais baixa de ISS. "Ele me disse que tinha um endereço na cidade e que eu poderia usá-lo para registrar a empresa, como também fizeram outras pessoas que seguiram seus conselhos. Nunca fui até esse local, nem conheço Guararema", conta Renato.

Em São Paulo, o assunto explodiu no primeiro ano da passagem de José Serra pela prefeitura, em 2005. A administração municipal se deu conta de que muitas prestadoras de serviços que atuavam na cidade mantinham sedes "de fachada" em outros municípios. Reportagens da época chegaram a noticiar casos como o de uma pequena casa em Santana de Parnaíba, na região metropolitana de São Paulo, onde havia 706 empresas cadastradas.

A Secretaria dos Negócios Jurídicos da capital paulista chegou a encaminhar um ofício ao Ministério Público, em agosto de 2005, queixando-se da "alíquota inferior à mínima possível" praticada por algumas dessas cidades. Santana de Parnaíba é citada nominalmente no texto, assinado pelo então titular da pasta, Luiz Antônio Guimarães Marrey, que diz que o município, ao reduzir a base de cálculo do ISS para 37% do valor bruto, leva a alíquota de cálculo a 0,74%, inferior aos 2% determinados pela Constituição Federal.

Passados dois anos, hoje a cidade de São Paulo fiscaliza de perto as empresas que ali atuam. Todas devem fazer um cadastramento na prefeitura da capital, para o qual devem apresentar, dentre outros documentos, foto da fachada de sua sede no município em que são registradas. "Não é proibido que uma empresa sediada numa cidade preste serviços em outra, desde que não seja apenas um artifício para escapar dos impostos", diz Ronilson Bezerra Rodrigues, diretor do Departamento de Fiscalização da Secretaria de Finanças da cidade de São Paulo. Em sua opinião, a saída está num aprimoramento do que chama de "inteligência fiscal", ou seja, detectar uma possível fraude antes que ela seja cometida. Essa tarefa, em muitos casos, é até facilitada pela própria ingenuidade de muitos empresários, que colocam em seu site oficial endereço na capital paulista, embora estejam registrados em outros municípios.

A prefeitura de Santana de Parnaíba rebate as acusações: "Cobramos o valor mínimo do ISS determinado pela Constituição, que é de 2%. Diante dos pedidos constantes de redução dos impostos no Brasil, acreditamos que Santana de Parnaíba faz sua parte", diz a secretária de Comunicação Social do município, Marisa Ramazotti. Ela destaca ainda que a cidade foi a única da Grande São Paulo a constar do grupo de 17 apontadas como as de melhor gestão tributária do Brasil, em estudo divulgado recentemente pela Fundação Getúlio Vargas.

Soluções

Se os especialistas crêem que não faltam leis e a reforma tributária é ponto pacífico, a solução para evitar esse tipo de fraude, com ou sem emenda 3, concentra-se principalmente na fiscalização. E, para que ela ocorra de maneira eficaz, um de seus principais motores é justamente a denúncia de trabalhadores lesados pelo sistema.

São poucas, entretanto, as queixas dessa natureza, como informa o delegado regional do Trabalho de São Paulo, Márcio Chaves: "Não recebemos muitas reclamações relacionadas a isso. Geralmente, o empregado acaba aceitando a proposta que lhe é feita", diz. Segundo Chaves, o momento atual, com o fortalecimento do debate dessas questões por conta da emenda 3, estimula a capacitação dos fiscais.

Denise Motta Dau, secretária nacional de organização da Central Única dos Trabalhadores (CUT), afirma que é necessário também que a discussão sobre o assunto esclareça alguns pontos. "A idéia não é proibir a PJ em todas as suas formas. É só criar critérios para que a relação típica de trabalho encoberta por esse regime de contratação seja coibida", afirma. Discurso semelhante tem o deputado federal Vicente Paulo da Silva (PT-SP), o Vicentinho: "Precisamos combater esse problema, mas sem tolher a liberdade de iniciativa do trabalhador, que em alguns casos pode optar por abrir uma empresa a fim de diversificar suas atividades", resume.

"O governo atual é composto por muitos membros originários do meio sindical. Nunca o momento foi tão propício para um debate como este", diz a professora Maria Cristina, da FEA-USP.


Qual o perfil do empregado-empresa?

Em geral, são os empregados de alto salário os contratados pelo sistema de PJ. Denúncias recebidas pelos órgãos do trabalho costumam citar empresas de grande porte, em geral multinacionais, como as que adotam esse método.

Por outro lado, parte dos próprios profissionais que têm vencimentos elevados opta por receber dessa forma. Eles vêem a menor cobrança de impostos e encargos como uma forma de aplicar de maneira livre seus rendimentos.

"Quando a empresa me propôs receber como pessoa jurídica, achei que não fosse bom negócio. Mas agora vejo que meu salário aumentou e tenho liberdade de investir meu dinheiro como bem entender", diz a administradora de empresas Solange (nome fictício), de São Paulo, que passou a ser remunerada por esse sistema quando foi transferida para outra empresa do mesmo grupo em que trabalhava anteriormente.

A prática, no entanto, se verifica também entre trabalhadores que recebem valores mais baixos. Em São Paulo, a advogada Maria de Lourdes Amaral aponta o perfil de alguns dos clientes que a procuram para tratar de casos como esse: "São instrutores de academia, trabalhadores da área de colocação de pisos e outros, cujo salário gira em torno de R$ 1.000".

 

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