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Repensar o Brasil

Integração social ou colapso

CLÁUDIO LEMBO


Cláudio Lembo / Foto: Nicola Labate

O ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo esteve presente no dia 8 de março de 2007 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Brasil: Visão do Paraíso Perdido". Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu.

O que eu poderia dizer aos senhores? Primeiramente, que esta longa vida que me foi oferecida pela natureza me levou a conhecer situações de absoluta perplexidade. Acima de tudo, a velhice me faz um pouco cético quanto à realidade que me envolve, apesar de esperançoso quanto a muitos anos de vida ainda. Considero este momento da história do Brasil bastante dramático. Vejo um país desintegrado socialmente, sem nenhum laço que una as pessoas, que as faça integrar-se em comunidades. Aquela nação tradicional, em que havia a figura do padre, do delegado, do juiz, desapareceu. Somos hoje uma sociedade desintegrada, com valores dissolvidos. E não se trata de conservadorismo de minha parte, mas apenas da constatação de uma realidade. Nos nove meses em que fui governador de São Paulo, em um momento difícil, pude testemunhar isso.

O êxodo rural trouxe grandes massas para os centros urbanos, de Recife a Porto Alegre, tornando as cidades inabitáveis, verdadeiros acampamentos medievais. Vejo nisso um sinal de desesperança, mas ao mesmo tempo acredito que é possível, no médio prazo, alcançar outra vez a integração, com a formação de novas comunidades.

Entretanto, constato também que os meios de comunicação, particularmente os eletrônicos, não têm colaborado para criar uma sociedade que tenha vínculos efetivos de solidariedade. Ao contrário, o que se assiste a todo momento é à desagregação de valores de convivência.

Isso vai nos levar a uma situação aflitiva, e confesso que não sei qual será a conclusão. Dentro de uma sociedade consumista globalizada, e num país extremamente pobre e com diferenças sociais como o Brasil, tinha que resultar no crime organizado, não aquele sofisticado dos países centrais, onde os criminosos são integrantes das elites financeiras. Aqui há o crime organizado de baixo nível, em que a agressão física violenta existe – e vai aumentar, não vamos ter sonhos.

Há uma disputa entre União, estados e municípios em relação à segurança. Vivi essa luta e procurei, por necessidade circunstancial, uma integração entre o exército, a polícia federal e as polícias militar e civil de São Paulo. É o que faltou sempre.

Os brasileiros somos extremamente preconceituosos e acima de tudo incapazes de ver a realidade. Por exemplo, tivemos o movimento de 1964, um golpe de Estado, o nome que se quiser dar a ele, mas havia serviços de informação que são absolutamente necessários em qualquer estrutura social, e particularmente nos governos. A partir de 1964 surgiu o heroísmo, a idéia dos grandes líderes, que eram na verdade aqueles que também praticavam o crime organizado de outra forma, em função de uma causa. E aconteceu então que todos os serviços de segurança e de inteligência foram desmontados. Houve até secretários de Justiça que quiseram queimar os arquivos, como se a história pudesse ser destruída. E ficamos a ver navios. Enquanto isso, o crime organizado, mesmo que pequeno e primário, conseguiu se organizar e formar sistemas próprios de segurança e de inteligência. Felizmente, naqueles nove meses à frente do governo paulista, tomei a iniciativa, porque procuro não ter preconceitos, de ir sozinho ao comando militar do sudeste em busca de integração. Depois de alguns desentendimentos eventuais, conseguimos nos entender. Continuamos assim, e isso é positivo para São Paulo.

Na segurança pública do país falta integração e inteligência. Os serviços de inteligência foram totalmente deformados e desestruturados, favorecendo a bandidagem. A droga é distribuída por mulas por toda parte, pobres-diabos, e há uma classe média e outros segmentos que a consomem, e então se discutem grandes temas, como a descriminalização. Penso que neste momento da história brasileira ela seria um grande desserviço à sociedade, seria criar mais um óbice ao desenvolvimento social harmônico. O que temos de fazer é combater a droga e demonstrar seus malefícios. Falta coragem para isso e há fragilidade moral.

Valores

Neste momento estamos vivendo sem escala de valores e, ao mesmo tempo, em liberdade, felizmente. Viver em liberdade, porém, exige algum limite, o qual não é formado pela lei, pela censura, mas por um código ético. É com ele que sabemos até onde vai nossa liberdade. Temos assim hoje a obrigação de repensar o Brasil e reconstruir a escala de valores. Somos seres humanos com vícios e defeitos, mas temos de transformar isso em necessidade. Essa é a grande missão das pessoas que pensam no Brasil.

Posso lhes dizer que a situação das estruturas burocráticas, particularmente as policiais, é extremamente complexa. Tenho um grande respeito pela polícia militar de São Paulo, hierarquizada, disciplinada e acima de tudo capaz de receber ordens e de executá-las com grande competência.

Faço esse registro porque me parece uma obrigação cívica. No Brasil se combateram as polícias e ficamos totalmente sem instrumentos de preservação da própria sociedade. Nós, sociedade, nestes últimos 25, 30 anos, dissolvemos tudo, perdemos a coragem de ser afirmativos quanto às forças permanentes do país. Isso é algo que captei nos nove meses em que governei o estado, quando senti o total desinteresse de muitos pelos problemas sociais brasileiros. Aí pude compreender Oliveira Viana, quando dizia que o brasileiro é acima de tudo um ser insolidário. Ele mostrava que em momentos de tragédia os brasileiros se unem rapidamente, mas logo em seguida a insolidariedade volta. Não temos a capacidade de união para criar uma estrutura sólida para o país.

De volta a 1500

E agora? Agora há uma euforia total. Os homens de finanças dizem que tudo vai bem, que vamos subir nos graus de reconhecimento internacional, o Brasil vai ser igual aos países do Primeiro Mundo. Mais uma vez, porém, vejo uma situação de extrema perplexidade. O que mais se fala no Brasil é no álcool como combustível, e é ótimo. Realmente, essa foi uma experiência brasileira de que ninguém mais lembra. Aureliano Chaves lutava tanto, naquele seu estilo de coronel de guerra inexistente, fez um trabalho maravilhoso sobre o álcool e foi ironizado, humilhado. Ninguém mais sabe quem foi Aureliano Chaves. A própria Petrobras se colocou contra o álcool. Tinha suas razões técnicas, mas não devia ter se posicionado de forma tão antagônica.

O álcool nos leva à cana-de-açúcar e esta ao eterno retorno, a 1500. Bahia, São Paulo, Pernambuco, todos vão voltar ao início da história colonial brasileira. Estão todos felizes porque o Brasil vai ser uma grande monocultura, que destrói o que restou de comunidades no interior do país. Ninguém pensa, ninguém faz um projeto. Desde que desmontaram a idéia de estratégia, que era própria dos militares, tudo se faz no "chute". É tudo momento no Brasil, não temos estratégia. O álcool é ótimo, não tenho nada contra, mas será que teremos de usar toda a extensão geográfica para produzi-lo? Vamos avançar para o interior, tomar o oeste, invadir Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, a Amazônia. Se Evo Morales não tomar cuidado, vamos entrar na Bolívia, porque é próprio do bandeirante avançar. Isso porém é dramático, porque não se tem projeto, e a cana-de-açúcar como monocultura poderá desintegrar ainda mais o país, lançar para as grandes cidades novas massas humanas. No entanto, estamos todos aplaudindo.

Será que somos incapazes de pensar, de reagir? Sempre teremos de aceitar o que os economistas desejam, o que os maus políticos querem?

A situação é dramática, as coisas são feitas realmente ao vôo do pássaro, não há nada profundo, tudo é realizado de uma maneira muito frágil. As grandes consultorias que o Brasil tinha se desfizeram, era importante que houvesse projetos efetivos. O país perdeu compostura e não sei o que será de nossa sociedade no futuro. Confesso que tenho um grande ceticismo.

Neste momento procuro lembrar um pouco um período da história que me é muito simpático, a Idade Média. Há um afresco na cidade de Siena, na Itália, do pintor Ambrogio Lorenzetti. É uma visão medieval do que é o bom governo. Na parte superior está aquilo em que os seres humanos hoje não gostam de acreditar, porque não fica bem: Deus. Ele é a concórdia, e o que se vê nos governos democráticos é muita discórdia, porque há luta por espaço. No segundo plano do afresco está a justiça, a distributiva e a cumulativa. E aparecem ainda o padre, o militar, que naquele tempo era quase sempre um mercenário, a mulher, etc. Ali estão também as virtudes: paz, fortaleza, prudência, magnanimidade e temperança. E acima de tudo uma frase do Livro da Sabedoria: "Amai a justiça, vós que governais a Terra". Penso que deveríamos obter fotografias desse afresco e mandá-las para o Lula, José Serra, Gilberto Kassab. O bom governo é o que busca a concórdia e esses valores, a sabedoria, representada por uma mulher, coisas que estão faltando no Brasil.

Somos uma sociedade composta de uma imensidão de analfabetos ou apenas alfabetizados utilitários, não verdadeiramente alfabetizados. E saímos do analfabetismo diretamente para a televisão. E aí se deu a tragédia. O que temos a fazer é influenciar os formadores de opinião pública, por intermédio dos meios eletrônicos de comunicação, para que melhorem a programação. Naqueles episódios dramáticos do ano passado, naquele dia em que o governo falhou, como era governador tive a obrigação de ligar aos diretores das redes de TV. Um deles me deu uma resposta genial: "Lembo, quero ajudá-lo, mas e a concorrência?" Não tinha acontecido absolutamente nada naquela segunda-feira, já havia uma situação de equilíbrio, mas não faltavam imagens dos dias anteriores.

Então não quero nada a não ser novos códigos de ética para os meios de comunicação, um autocódigo, sem imposição ou censura. Quero que as pessoas, principalmente os que têm o comando dos meios de comunicação eletrônicos, comecem a repensar. Houve tais códigos no passado, e hoje se perdeu essa consciência.

Estamos voltando a 1500, mas sem a chegada de princípios religiosos, porque se criou uma atomização religiosa que vai nos trazer conflitos e nenhum encaminhamento moral. É uma situação patética, porque tende a se acentuar. O crime organizado se mantém, medíocre mas violento, violento porque primitivo. Ele vai continuar agindo, porque não foi desintegrado. Nossos presídios ainda estão em situação difícil. Recentemente vi o Senado transformar a existência de celular no interior das prisões em crime para o diretor da prisão. É de rir. Atualmente os presídios de São Paulo têm poucos celulares. Deve sempre existir algum, aquele aparelhinho maldito ingressa nos presídios das formas mais inusitadas que se possam imaginar. Mas transformar isso em pena para o diretor do presídio é loucura, ele vai ser condenado por aquilo que combate.

Integração ou colapso

O Brasil é o país dos sonhos irrealizados, não tem os pés no chão. Isso é dramático. Mas vamos continuar pensando no Livro da Sabedoria: "Amai a justiça, vós que governais a Terra". Não sei se nossos governantes têm capacidade para amar a justiça, porque muitos deles são um produto da demagogia barata das oligarquias, que, felizmente, vão se desfazendo. Creio que, se prosseguirmos em liberdade e democracia, certamente vamos avançar muito, porque assim se cria a cidadania. Mas antes é necessário educar para a cidadania. É o que está nos faltando. A tola mania de destruir tudo o que tem valor pelo simples prazer de destruir, essa visão niilista que se tem hoje e se teve ainda mais até há pouco é dramática. Precisamos nos recompor, repensar, debater para recriar o Brasil. Não temos mais partidos políticos, que aqui são aluvião da pior espécie. Muda-se de sigla sem nenhum respeito ao voto recebido, altera-se nome de partido, troca-se tudo, nada se mantém. E falam em voto distrital. Isso é bobagem, é cola do sistema alemão.

O grande problema político no Brasil é a fidelidade partidária. O voto não pode ser do eleito, mas do partido. No momento em que o Tribunal Superior Eleitoral aprovar a norma de que o voto pertence ao partido, aí certamente vamos avançar um pouquinho. Mas são tantos os cenários, tantos os problemas a enfrentar que me confesso perdido.

A América Latina possui grandes massas populacionais, o Brasil particularmente. Nós, minoria branca, temos de pensar, junto com a maioria, e formar a grande integração de todos os segmentos sociais, caso contrário vamos para a luta social desenfreada. Por isso fiz um alerta meses atrás, quando fui muito criticado, e sou até hoje. Mas não me sinto nem um pouco irresponsável ou culpado, porque simplesmente procurei fazer um alerta: ou integramos a sociedade brasileira ou ela caminhará para um grande colapso.

 

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – Sobre a questão da violência e do emprego das forças armadas para combatê-la...

LEMBO – Sou contra.

MUSSALÉM – As forças armadas também eram contra, elas não são preparadas para a guerrilha.

LEMBO – É verdade. Já que você citou, posso dizer. Tenho um bom diálogo com as forças armadas e grande respeito por elas, nunca escondi isso e tive conversas muito densas naquela oportunidade. E não quis colocar principalmente o exército numa situação de confronto ridícula e absolutamente antinacional.

MUSSALÉM – O conceito militar e a doutrina de combate é a vitória, ou seja, a destruição do inimigo.

LEMBO – O inimigo não pode ser o cidadão brasileiro.

MUSSALÉM – Outra questão são os limites da ação da Justiça. Hoje vemos a Justiça muito cerceada e uma legislação protetora da bandidagem. O poder das polícias civil e militar é limitado. Um bandido é preso e em questão de uma semana a dez dias está solto. São limites dos governos de origem esquerdista. Um amigo meu, especialista em ciência política pela Universidade de Haifa, em Israel, disse-me que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, talvez pelo fato de ter sido vítima do regime militar, foi muito complacente com determinados fatos.

LEMBO – Fernando Henrique teve nove ministros da Justiça em oito anos. Ninguém fala disso, é incrível.

MUSSALÉM – Exatamente. Vejam os movimentos sociais. O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra], por exemplo, é uma organização criminosa disfarçada de atividade social, mantida pelo governo, que desrespeitou o próprio presidente da República ao invadir sua fazenda, e ele não fez absolutamente nada.

LEMBO – Naquela época Marco Maciel determinou que se retomasse a fazenda, era um símbolo nacional.

MUSSALÉM – Mas isso depois de alguns dias de invasão, mostrada pela televisão.

LEMBO – O então governador de Minas Gerais, que é meu amigo, Itamar Franco, não queria o exército lá. Foi um conflito político. É o Brasil insolidário.

MUSSALÉM – Outro assunto é a questão cultural. No livro Insurgências e Ressurgências Atuais, de Gilberto Freyre, reeditado pela Global, há um texto assinado por Vamireh Chacon, que diz assim: "Em 1940, no auge das vitórias militares nazi-fascistas na 2ª Guerra Mundial, Gilberto Freyre chamava a atenção que o grande drama é a guerra entre as culturas. Não peregrinações contra nações, essas são transitórias, nem de Estado contra Estado, essas são ainda mais superficiais, e, sim, o perigo de culturas contra culturas. Sim, as ameaças de imposição violenta por parte de grupos tecnicamente mais fortes a grupos tecnicamente ainda fracos, de valores de cultura e de formas de organização social dentro das quais os povos menores se achatariam em vassalos, ou por serem mestiços, ou por serem considerados corruptos ou ainda por isso ou aquilo". Isso nos faz lembrar que no Brasil temos a cultura de aceitar determinadas situações de ruptura, como essa da violência, como uma coisa natural.

LEMBO – A banalização do mal.

OLIVEIROS FERREIRA – Tenho a impressão de que pensamos igual no que se refere ao diagnóstico geral. Você chama de desintegração e eu chamo de anomia. Venho dizendo que o Brasil vive num estado de anomia há muitos anos. Só que não houve nenhum sociólogo que resolvesse o problema.

LEMBO – Nenhum sociólogo poderá resolver, ao contrário.

OLIVEIROS – Nem teoricamente se resolveu.

LEMBO – Nossa universidade não estudou o Brasil.

OLIVEIROS – Não estou falando da universidade, mas da sociologia geral. Nenhum sociólogo resolveu o problema da anomia, porque é político e sociológico. Trata-se da questão da integração, que você abordou muito bem, da dissociação. Se é assim, como vamos sair? E estamos caminhando para um rumo muito perigoso.
Nós todos que protestamos contra a violência queremos uma solução para ela e de repente esquecemos que estamos nos colocando diante de um dilema muito sério: o bandido tem direitos ou não? Recordo-me de uma mesa-redonda na TV Cultura, um pouco antes da cassação de Fernando Collor, em que a discussão era sobre voto secreto na Câmara. Uma jornalista disse: "Mas quero que seja voto aberto". O presidente da Casa, Ibsen Pinheiro, lhe respondeu: "Minha filha, a lei não foi feita para nós, a lei foi feita para o ladrão". Estamos reclamando, queremos envolver as forças armadas no combate à criminalidade, e daqui a pouco vamos esquecer os direitos das pessoas, dos cidadãos. Esse é o problema que nós todos temos de discutir: o ladrão tem direito a gozar de todos os privilégios constitucionais ou não?

LEMBO – Principalmente quando ele agride o Estado de direito, como fez o PCC [Primeiro Comando da Capital, organização criminosa] de São Paulo.

OLIVEIROS – Temos de resolver isso como cidadãos, sob risco de cairmos num regime totalitário. Não estou propondo solução, nem sim, nem não, estou falando do perigo que corremos por termos a ética absoluta. A política é o que está aí porque fazer acordo é contra a ética, digamos assim, deixar que uma coisa passe porque a conseqüência seria pior se não passasse. Nós não sabemos o que queremos.

LEMBO – No passado sempre aconteceram movimentos que agregavam as pessoas. Hoje não temos nada, é a anomia.

OLIVEIROS – Você esqueceu um fenômeno importante que é causa disso, a inflação, a megainflação por que passamos.

LEMBO – Alguém disse que a doença da democracia é a inflação. Essa frase, não sei de quem, é genial. Você tem razão. O Brasil fala que Juscelino Kubitschek foi um grande homem, mas destruiu o Rio de Janeiro e construiu Brasília. Ora, o país não é capaz de fazer uma reflexão sobre o governo de Juscelino, acha que foi realmente um grande herói responsável pela auto-afirmação nacional, mas com um custo que foi a inflação e que destruiu o Brasil.

IVES GANDRA MARTINS – Estou absolutamente de acordo quanto à desestruturação das forças armadas e do serviço de segurança, o que representou algo dramático, inclusive a criação do Ministério da Defesa. Antigamente os três ministros militares se reuniam com o presidente e podiam, evidentemente, fazer uma reflexão que seria útil. Agora é um ministro civil de Defesa, sem nenhum conhecimento do que representam as forças armadas. Sou professor da Escola de Comando de Estado-Maior do Exército há 17 anos. Hoje, estou absolutamente convencido de que os generais que saem depois de um curso de um ano examinando todos os problemas do Brasil estão muito mais preparados do que a grande maioria de nossos políticos. Em relação aos índios, temos indígenas paraguaios, argentinos, uruguaios e bolivianos que estão no Brasil reivindicando terras, 15% do território nacional. E quanto à insolidariedade, também estou de acordo. Aureliano Chaves foi um homem genial.
Gostaria de abordar dois aspectos. O primeiro deles é que tenho a impressão de que a Idade Média é pouco estudada e nos dá lições impressionantes. Foi nesse período que povos bárbaros conseguiram preservar a cultura romana e foi quando surgiu uma filosofia poderosa, que aproveita a filosofia grega. Todos os professores universitários vivemos muito aquela formação da Idade Média.

LEMBO – E o papel da Igreja.

IVES – E as Cruzadas, muitas vezes criticadas, que representavam pelo menos uma busca de valores. Muitos historiadores entendem que aquelas guerras não foram de origem econômica – e a primeira Cruzada, a única que deu certo, representou quase 200 anos de presença cristã. Mas o que queria colocar é algo que está na essência de nossos problemas, pois na verdade nosso povo tem uma religiosidade sentimental, mas perdeu os valores religiosos. Ou seja, temos o sentimentalismo, mas não estamos dispostos a fazer alguma coisa. Estou convencido de que a Lei de Gérson é que determina a política brasileira. A ética não é fundamental no país, o que é importante é que, se ganho alguma coisa, não posso perder o que ganhei. É o que elimina o sentido de nacionalidade e o de pátria. Podem dizer que temos esse sentido quando a seleção nacional de futebol joga. Mas há quem goste mais do Corinthians, do São Paulo ou do Palmeiras do que do selecionado brasileiro. É a religião deles.
É exatamente essa falta de valores que está na essência de nossa desagregação. É a Lei de Gérson que faz com que um presidente seja eleito exclusivamente pelo sistema de Bolsa Família, que é assistencialista e não gera oportunidades de trabalho. A "Folha de S. Paulo" apresentou recentemente a dificuldade de contratação de mão-de-obra no nordeste, porque quem ganha Bolsa Família tem medo de trabalhar e perder a vantagem de receber à custa de todos. Termino com a afirmação de Ivan, célebre personagem de Dostoievski em Os Irmãos Karamazov: se Deus não existe, tudo é permitido. No Brasil tudo é permitido, porque ninguém acredita em valores.

LEMBO – Estou de acordo e há um pormenor que me deixa muito sensível quanto à Idade Média: nos templos religiosos desse período, particularmente no caso muito específico da cidade de Assis, na Itália, havia pela manhã o culto católico, à tarde o judaico e o muçulmano. É notável ver naquela Europa como as três religiões monoteístas podiam conviver. Existem representações incríveis em toda a Idade Média da integração das religiões sem nenhum conflito, o que mostra que naquele tempo havia mais capacidade de diálogo. Isso foi obscurecido por alguns pensadores durante muitos anos, mas esse é outro problema.

HUGO NAPOLEÃO – A respeito da fidelidade partidária, devo dizer que estou no PFL [Partido da Frente Liberal] desde a fundação. Chegamos a propor no Senado Federal a punição, quatro anos de inelegibilidade, para aquele que muda de partido, coisa que hoje acontece geralmente para uma adesão a governo estadual ou federal, em troca de benefícios, benesses, cargos, emendas, etc., o que é uma pena. Ives Gandra citou o Bolsa Família. No Piauí, mais de 80% do eleitorado recebeu esse benefício e agradeceu votando no presidente Lula, no governador e no senador que estavam na coligação do PT [Partido dos Trabalhadores]. Isso precisa ser observado talvez como aquisição ilegal de sufrágio, é uma coisa a pensar.

EDUARDO SILVA – Ouvi com satisfação o comentário sobre televisão. Meu tio Homero Silva foi um dos primeiros a trabalhar na TV, na antiga Tupi, quando não havia montagem, nem da entrevista, nem das músicas que cantavam. Hoje a televisão faz uma edição exagerada, e são somente as coisas extremas que chamam a atenção, nada mais é natural. Não acredito que o povo brasileiro não tenha condições de seguir para a frente. O país tem tudo para avançar.

LEMBO – A dignidade das pessoas, é isso o que está nos faltando. Ainda temos formas de escravidão no Brasil, uma coisa patética. Creio que o país vai dar certo, sim, mas com um custo social e emocional muito alto. Talvez tenham-nos faltado grandes conflitos externos para que pudéssemos consolidar nossa nacionalidade. Jogados no Atlântico Sul, de imensidão incrível, faltou-nos um vínculo, um liame. Diria até que hoje o Brasil talvez esteja mais interligado que no passado. Por exemplo, os pernambucanos hoje não agridem os paulistas e estes aos cariocas.
Hoje estamos melhor em termos de bairrismo, mas falta a consciência do valor da pessoa. Somos um país escravocrata, a escravidão aqui começou muito cedo, em 1500, e foi até 1888, enquanto nos Estados Unidos se iniciou bem depois e terminou antes. Na extinção da escravidão não houve conflito, mas quem levou vantagem foram os latifundiários, todos indenizados pelo Império. Nos Estados Unidos houve cessão das terras, destinando-se pequenas áreas aos libertos. Lá criaram as famosas universidades rurais, o associativismo. Aqui nada, não pensamos, não temos estratégia e o governo, a partir de 1988, como todos os que vieram após a redemocratização, não pensa em planejamento.
O governo de Fernando Henrique Cardoso não planejou, mas desintegrou o que existia. Havia autarquias, criou agências, desmontou o país e não colocou nada no lugar. Ou a minoria branca, que é a elite – todo país deve ter uma elite –, desenvolve novamente projetos estratégicos, pensa o Brasil muitos anos à frente, ou vamos ficar sempre como uma grande aldeia desintegrada.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – O que mais agride é a falta de planejamento na educação. Vivemos uma época que se traduz pelo elogio ao improviso e promessas nunca cumpridas.

LEMBO – O brasileiro, quando assume o poder, desmonta tudo e começa do zero. O governo de São Paulo, por exemplo, deletou agora toda a história do estado em seu site na internet, e começou uma nova era, no dia 1º de janeiro de 2007. O brasileiro não tem consciência de que é preciso preservar instituições. Estão desmontando a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], uma fundação que, boa ou má, funcionava. Todos querem ser o momento inicial da história. Isso é dramático.

JACQUES MARCOVITCH – Penso que houve uma complementaridade entre um ciclo longo a partir de 1500 e outro bem curto, das últimas eleições até hoje. Não nasci no Brasil, fui adotado por este país, minha única nacionalidade é brasileira e consigo ver o país com a perspectiva interna e às vezes externa. Permito-me destacar três pontos, sem o objetivo de discordar: o tema da desagregação, o do etanol e o da segurança.
Na questão da desagregação, se compararmos 1500 a 2000, o que há de semelhança é o surgimento de uma nova forma de disseminação do conhecimento. Na época era a palavra impressa, hoje é a digital, e o conhecimento, preservado nas catedrais, se tornou mais acessível. Vejam o desafio.
Cláudio Lembo nos lembrou que em 35 anos invertemos a equação entre rural e urbano, mas vou agregar mais um dado: na Copa de 1970, eram 90 milhões em ação, na de 2000, 185 milhões de frustrados, ou seja, mais de 90 milhões de pessoas a mais. Nas concentrações urbanas éramos 30 milhões em 1970, hoje estamos com 120 milhões. Esse desafio, essa expansão demográfica concentrada, não existe em nenhum outro lugar do mundo. Portanto, não estamos em um país em desenvolvimento. Nosso problema não é construir mais um quarto na casa, mas uma nova sociedade. Nesse aspecto concordo plenamente com o professor Lembo, quando diz que muito provavelmente não temos consciência do tamanho de nosso desafio. No Judiciário, no sistema de saúde, não são reformas, são revoluções que precisam ser feitas.
Quanto ao etanol, concordo que estamos olhando a dimensão agrícola, só que o mundo não admira o Brasil por essa dimensão, mas pelo que aconteceu na década de 1950 no ITA [Instituto Tecnológico da Aeronáutica] e no CTA [Centro Técnico Aeroespacial], quando o país foi capaz de desenvolver tecnologias inexistentes.

LEMBO – Não esqueça a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária].

JACQUES – A Embrapa veio de institutos como o Agronômico, o Biológico e outros. Concordo com o professor Lembo quando nos alerta: cuidado com a monocultura, com a invasão de espaços como a Amazônia, com a expulsão da mão-de-obra do campo.
O terceiro ponto diz respeito à criminalidade e à ilicitude. Vários estudos mostram que essa guerra é desigual, porque enquanto o Estado impõe limites à própria ação, inclusive na área internacional, a ilicitude e a criminalidade estão conectadas em todo o mundo. Já não é possível combater o crime dentro de territórios fechados, porque as redes de ilicitudes – quer se trate de lavagem de dinheiro, de tráfico de pessoas ou de drogas, ou ainda de comércio de armas – estão todas conectadas. Professor Lembo, qual é a possibilidade de aumentar a cooperação entre órgãos de segurança, se ela existe? Caso não exista, como promover uma capacidade de articulação que seja no mínimo igual à dos criminosos?

LEMBO – É importante reconhecer a capacidade e criatividade dos brasileiros. E aqui faço uma homenagem ao brigadeiro Casimiro Montenegro Filho, que mudou o Brasil. Ele rompeu com antigos dogmas da educação brasileira e teve a coragem de introduzir aulas de inglês e russo no ITA. Esse instituto é excepcional, assim como a Embrapa, que todos esquecem. Se temos etanol é porque a Embrapa pesquisou novos produtos agrícolas, etc. Mas não sou militarista, sempre lutei pela liberdade. Montenegro era militar, a Embrapa surgiu no período dos militares, como o etanol, porque havia planejamento, estratégia e visão nacional. Hoje há somente palavras vazias.
Para responder a sua pergunta, digo que o serviço de informação estava totalmente desintegrado. O ser humano não pode ter sua intimidade agredida. Mas o criminoso pode agredir nossa vida, pode nos fechar no porta-malas do carro, quando é bonzinho. Os consulados também começaram a trabalhar conosco e o exército tem hoje uma ação, não sei se o atual governador deu continuidade a tudo isso. Quinzenalmente, salvo erro, há uma reunião no Comando Militar do Sudeste, onde todos os serviços de inteligência trocam informações. Isso ocorreu de forma tão surpreendente que veículos da Argentina e de outros países vieram me procurar, queriam entrevistas, porque se estava rompendo um ciclo tolo da história da América espanhola. Quem também oferece muito apoio quanto aos serviços de inteligência são os Estados Unidos, transferindo à polícia federal equipamentos de escuta de altíssimo nível. Em São Paulo isso não foi permitido, e não tive tempo para consegui-lo. Era tão complexo que preferi fazer um convênio específico com a polícia federal de São Paulo. Hoje, se é que tudo teve continuidade, as coisas estão razoáveis, mas houve um desmonte total.

JANICE THEODORO – O Brasil de fato está passando por uma situação trágica. Vivemos uma crise institucional profunda e seu diagnóstico é perfeito com relação a isso. O problema que se coloca é, sendo cidadãos brasileiros, pensar o que faria essa sociedade sair da crise ou viver dentro dela ad eternum. Voltando à referência que o senhor fez à pintura de Lorenzetti, penso que ela talvez contenha o núcleo da esperança.

LEMBO – Minha esperança é que nas próximas gerações haja a integração de comunidades nas maiores cidades. Este acampamento urbano que é a Grande São Paulo, a Grande Rio, a Grande Recife, tudo isso vai se integrar novamente. Vão surgir instrumentos de reestruturação e efetivamente será mais fácil criar cidadania nos centros urbanos do que na área rural. No campo sempre existe o dono, o latifundiário, e a estrutura social é frágil, sem força, sem voz; já nas cidades todos têm voz. Mas isso vai demorar muito e é para as futuras gerações, não para a minha. Sou cético ao menos quanto ao momento contemporâneo.

JANICE – O afresco de Lorenzetti fica numa cidade bem pequena, mais fácil de administrar. Acredito que o ethos, a ética que vem dos usos e costumes, vai partir da demanda da sociedade e poderá reconstruir as instituições necessárias para o exercício do bom governo. Como a sociedade pode fazer isso? No afresco há a figura de Deus, que é o direito natural. Os homens são capazes de restaurar os bons costumes através das representações que a sociedade apresenta, isto é, através do debate que se instaura dentro dela. Ou seja, existe o ethos e existe o elemento central que é o diálogo, só que não há canais institucionais para encaminhar o desejo de estabelecer o ethos. Mas existe esperança, como se vê em algumas ONGs e no papel político que o Brasil desempenhou, por exemplo, com relação ao etanol. Há um crescimento populacional assustador e estamos funcionando, o país ainda não foi para o brejo. Existe uma possibilidade de mudança perigosa, a curto prazo, e uma de mudança lenta, pressupondo mecanismos institucionais a longo prazo.

LEMBO – Confesso que não tenho preocupação com uma grande explosão de caráter ideológico a curto prazo, a ideologia está vencida. O problema é o crime. O crime organizado no Brasil, como no caso do PCC, é produto dos guerrilheiros de ontem, que criaram toda uma estrutura criminosa.

JANICE – Mas acho que existem na sociedade mecanismos para reconstruir as instituições. É nossa responsabilidade fazer essa reconstrução. A educação, como já foi referido, é o caminho adequado, e vejo também sinais positivos em termos de história. Tenho a sensação de que vivemos um período de transição. Penso, portanto, que estamos menos para tragédia e mais para esperança.

LEMBO – É bom que haja esperança, mas no momento o que existe é a tragédia.

JOSEF BARAT – Para agregar valores, tornar uma sociedade mais consistente e preservar a liberdade é necessário o respaldo de instituições. As brasileiras são razoavelmente sólidas. Mas serão capazes de preservar o Brasil para a democracia ou corremos riscos? É possível que a apatia da sociedade nos leve a situações críticas?

LEMBO – Não acredito. Nesse aspecto fico com a Janice. Tenho esperança de que as instituições serão preservadas, não há clima e nenhum ator contra elas.

ÁLVARO MORTARI – No aspecto político, o senhor acredita que, com eleições a cada dois anos, não haja uma degradação moral e política dos candidatos? Estamos agora pensando já nas eleições de 2008 e de 2010 e começa a haver uma série de junções políticas extremamente preocupantes. Não seria muito melhor ter eleições a cada quatro anos? O senhor seria favorável ao presidencialismo como temos agora ou ao parlamentarismo?

LEMBO – Sou simpático a eleições de dois em dois anos, tecnicamente acho melhor. Quanto mais houver exercício do voto e a possibilidade do surgimento de novos atores políticos, melhor. As grandes democracias, como os Estados Unidos, têm eleições a curto prazo. Quanto a presidencialismo ou parlamentarismo, sou pelo primeiro, particularmente no Brasil, onde temos uma sociedade bastante complexa. E o povo brasileiro, consultado duas vezes, fez essa opção. Ora, se o país quer o presidencialismo, por que temos que ser contra?

MORTARI – É a favor da reeleição?

LEMBO – Não, a reeleição é um grande risco para as instituições. O que corrompeu o Brasil nestes últimos anos foi a reeleição, foi uma tragédia. Sou a favor de um mandato de cinco anos para presidente da República, sem reeleição. Ela desintegra. Em nove meses como governador resisti ao crime organizado e a uma eleição, então sei o que é uma reeleição dentro do governo, ou seja, como é preciso ter parâmetros éticos, um jogo de cintura horrível para manter a máquina funcionando e suportar ao mesmo tempo os mecanismos de reeleição. Desejá-la foi um grande erro do presidente Fernando Henrique. Ninguém fala isso porque ele é intocável, mas fez um grande mal ao Brasil, por vaidade pessoal, egoísmo e egocentrismo. Reeleição num país com os valores culturais que temos nos leva à degradação. O jurista e ministro Barbalho [João Barbalho Uchoa Cavalcanti] já dizia isso em 1891, logo após a proclamação da República. Reeleição é um grande erro, um crime contra a história e os valores brasileiros.

JOSEF BARAT – Corremos o risco de alguma coisa tipo Venezuela?

LEMBO – Não creio. O sociólogo Leôncio Martins Rodrigues lançou a idéia do terceiro mandato. Não acredito que Lula consiga isso nem que essa idéia seja do foro íntimo do presidente. Não vejo condições.

PEDRO KASSAB – É claro que as questões de método e planejamento são muito importantes, mas não creio que seja por esse lado o encaminhamento de uma melhor situação para o Brasil. Acredito que isso seja decorrência de certo espírito messiânico, certa vocação de liderança, que de certo modo repetem um pouco Antônio Conselheiro com sua Canudos. Na realidade, a tecnologia cria contradições no mundo atual, principalmente em países como o Brasil, onde existem situações extremas em todos os domínios, na educação, na saúde, etc. e ao mesmo tempo problemas que resultam do esforço para o desenvolvimento econômico, como a poluição, os acidentes decorrentes do uso de substâncias e fontes de energia para produzir mais e com maior rapidez, etc. No entanto, não é por aí que a questão deve ser encarada, mas pelo esforço concentrado na formação do ser humano.
O que se impõe como idéia é, quanto à educação, cessar a discussão sobre sua prioridade. Isso não é suscetível de discussão. Tem de ser aceito não em termos de teorema a ser demonstrado, mas de axioma. Sem isso não se formará a cabeça dos jovens como é preciso para que eles próprios intervenham, discutam, tenham espírito crítico, participem ativamente e não se sintam, como hoje, manejados como rebanhos. O ceticismo da juventude é a pior das heranças que nós, em parte, recebemos e estaremos deixando de forma bastante ampliada. A educação é um processo permanente, não tem fim. Talvez a única coisa que exista de comum na humanidade é a busca incessante do saber, que é uma finalidade em si mesma. São respeitáveis todas as posturas relativas a como organizar a sociedade, mas tenho a convicção absoluta de que nenhum sistema funcionará se as individualidades não estiverem conscientes de que há valores reais que precisam ser preservados. O valor da justiça, da responsabilidade, da solidariedade social. Isso tem que fazer parte da cabeça de cada pessoa, se quisermos um desenvolvimento da sociedade dentro de bases que permitam aquela convivência que se busca, com harmonia, com a paz.

NEY PRADO – Gostaria de colocar um dado político, porque os hábitos e os costumes geram a cultura e esta gera as instituições, que têm seus formatos, feições, etc. O grande drama do Brasil é que a democracia é um fato histórico, não é produto da história. Na medida em que fizemos a opção pela democracia, se não somos produtos de uma história, mas de um autoritarismo histórico ou da corruptela da democracia que é o populismo, em dez ou quinze anos será muito difícil criar uma cultura compatível com a opção política que fizemos. Então estamos pagando o alto preço do aprendizado.
Sabemos o que não queremos, que é o retorno ao passado, mas temos dúvidas em relação àquilo que realmente desejamos. Queremos uma sociedade ideal, não nos conformamos com a sociedade real, mas esquecemos que o ideal não é possível, e que a única saída é a democracia que efetivamente podemos operacionalizar.
Gostaria também de acrescentar um dado sobre os direitos dos criminosos ou delinqüentes, porque acompanhei os fatos, como membro da Comissão Afonso Arinos e também na Assembléia Nacional Constituinte.
Esses direitos elencados em favor do preso têm sua vertente política, porque boa parte daqueles que elaboraram a lei de proteção ao preso foram alcançados pelos órgãos de repressão do regime anterior e confundiram direitos políticos do preso com direitos do preso comum, e deram a este todos esses direitos que, sabemos na prática, se levados a efeito inviabilizam a possibilidade de o Estado alcançá-los. Então, em grande parte, direitos elencados na Constituição impedem a ação policial e o combate que pretendemos fazer. Não temos nem os meios técnicos nem o suporte jurídico para permitir que os policiais atuem na busca do criminoso e na repressão. Então vejo a democracia brasileira em sua forma embrionária. Criar uma sociedade com nosso passado e com nossos vícios num curto espaço de tempo é um desafio muito grande.

LUIZ HUMBERTO PRISCO VIANA – Discutimos muito as questões políticas e me surpreende sua reação manifestada contra a introdução no país do sistema de votação por distrito. Estudei muito essa questão, cheguei a acompanhar o presidente da República numa visita à Alemanha, em que se incluiu no roteiro uma reunião com os dirigentes partidários para conhecer o sistema que praticam, e voltei convencido de que deu certo.

LEMBO – No último pleito alemão, não.

PRISCO – É verdade que nem sempre o transplante de instituições ou de regras dá certo. Mas aqui alguma tentativa tem de ser feita para mudar o sistema das eleições e de organização dos partidos, e para criar uma consciência partidária no país. Os partidos estão muito mal referidos e o povo não acredita neles.

NEY – E os políticos também não.

PRISCO – Os políticos às vezes não se ajustam muito. A verdade é que a política brasileira está dominada pelo pragmatismo, pelos resultados, não há mais idealismo, discussão de idéias. Gostaria que se instituísse aqui o sistema misto adotado pelos alemães e em outros países, de eleições majoritárias e proporcionais. Pelo menos se resolveria uma questão, a de que os eleitos não têm vínculo com as comunidades que os elegem, não têm compromisso. Chegam à Câmara e seguem seu rumo próprio. A eleição distrital colaboraria para evitar isso e também outros vícios, sobretudo porque a eleição, que sempre foi um momento político e cívico, hoje é um megaevento financeiro. Se o país vai mal, em grande parte é porque a política vai mal.

ADIB JATENE – Sempre me preocupei com os deslocamentos do poder. Na área médica temos um deslocamento que está distorcendo a profissão, o poder está passando para as empresas de equipamentos, de medicamentos, grupos de pré-pagamento e o próprio governo, que não são os mais adequados para estabelecer as normas e o comportamento na medicina. Na área política, sou mero observador, e mais de 200 anos depois da Revolução Francesa, que pregou a igualdade, fraternidade e liberdade, o mundo nunca foi tão desigual, a fraternidade cedeu lugar ao egoísmo e a liberdade não faz nenhum sentido para quem tem dificuldade para sobreviver. Representamos um estrato da sociedade que não passa de 10%, mas sempre mandamos, determinamos as leis, sempre éramos acatados e agora o poder mudou.
Quando se diz que a ideologia não mais prevalece, fico pensando que não é verdade. A ideologia descobriu que pode ter o poder ou pela força ou pelo voto e resolveu chegar ao poder pelo voto. Evoluímos de uma sociedade que era, bem ou mal, administrada e comandada por intelectuais, e hoje são os sindicalistas que comandam o processo, não é o presidente e seus ministros. Apóiam e subvencionam conselhos nos ministérios, que são hoje eleitos e têm uma série de representações, a grande maioria ligada aos sindicatos. Nosso estrato não se interessa em participar desses órgãos, ou seja, o espaço está sendo ocupado de uma forma tal que o poder já está deslocado, e isso pode ter implicações futuras. Aqui foi dito que quando tínhamos os militares no poder eles fizeram coisas importantes. Agora, se o poder autoritário ficar na mão de quem não tem competência nem preparo, não sei o que pode acontecer.

LEMBO – O professor Adib Jatene está certíssimo. Mas a burguesia tem uma capacidade notável de ocupar os espaços que os outros pensam que estão ocupando. Isso é o que me deixa mais despreocupado. Nada mais aburguesado do que o presidente Lula neste momento. O sindicalista Lula é o homem mais burguês do Brasil hoje, pela sua forma de pensar, de se equilibrar.

 

 

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