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Festa do Fogaréu ilumina Goiás Velho

Ritual religioso atrai turistas à antiga capital goiana

MAURÍCIO MONTEIRO FILHO


Foto: Maurício Monteiro Filho

Todos os anos, durante a primeira hora da véspera da Sexta-Feira da Paixão, alguns séculos de história percorrem as ruas da cidade de Goiás, antiga capital do estado de mesmo nome. E, até para um município que remonta ao passado em cada uma de suas esquinas e construções impecavelmente preservadas, o acontecimento é notável.

São 23h59 da chamada "Quarta-Feira de Trevas", e uma multidão se acotovela à frente da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte. A luz de 500 tochas, distribuídas entre os presentes, duela com a da lua cheia. Daquele local, na próxima volta dos ponteiros, partirá mais uma vez a procissão do Fogaréu.

Uma hora antes, a agitação é grande no Quartel do Vinte, próximo à igreja. Em poucos minutos, 40 homens que ali se encontram, entre os muitos organizadores do evento, se destacarão por usar túnicas reluzentes de cores vibrantes e cobrir o rosto com capuzes pontudos com apenas duas aberturas para permitir a visão: são os farricocos, personagens centrais da procissão.

No tumulto dos bastidores desse que é o maior evento turístico-religioso da cidade, algumas notas vindas de um clarim se sobressaem. Dali a duas horas, o toque desse mesmo instrumento trará um grave anúncio, mas esse instante é um momento de alegria para Domingos Nicolau. Nesta noite, ele completa sua trigésima participação no Fogaréu – desde 1996, passou a ser responsável pelo clarim – e promete: "Continuo enquanto agüentar".

No caso dessa procissão, esse é justamente o espírito. Além do sentimento de entrega mística, é preciso muita força física para encarar o percurso e vencer os paralelepípedos irregulares que forram boa parte das ruas de Goiás Velho, como é conhecida a cidade. Sobretudo quando se estará quase correndo, descalço, como farão os farricocos.

Meia-noite em ponto. O batuque da fanfarra precede a chegada à igreja dos 40 homens, cobertos dos pés à cabeça pelas túnicas. A iluminação pública do centro histórico, por onde passará o cortejo, é apagada, tornando as tochas, também carregadas pelos farricocos, a única fonte de luz.

Herança ibérica

A versão do Fogaréu de Goiás é inspirada no ritual que era realizado em cidades como Lisboa, em Portugal, e Sevilha e Toledo, na Espanha, na Quinta-Feira Santa. Lá, a procissão era realizada durante o dia e organizada pelas irmandades religiosas locais. O caráter do cortejo – antigamente chamado de "Fogaréus" – era de penitência, e os participantes inclusive se autoflagelavam. Já estavam presentes as tochas – que explicam o nome da procissão – e homens encapuzados, com as cores de suas vestes representando as da bandeira da irmandade a que pertenciam.

De acordo com informações da Organização Vilaboense de Artes e Tradições (Ovat), principal organizadora do atual Fogaréu, a partir de levantamento do pesquisador Fernando Pio, a primeira ocorrência da procissão em terras brasileiras foi em 1618, na Bahia. Também há registros de sua realização na Paraíba, em 1726. Ao cruzar o Atlântico, o sentido do Fogaréu foi se aproximando mais do que hoje se vê, ao perder sua carga de penitência e enfatizar a representação da noite da busca e prisão de Jesus.

Em 1745, a procissão chega à cidade de Goiás, trazida pelo padre português Perestrello Espíndola. Do final do século 19 até meados do século passado, sua realização foi interrompida. Porém, a criação da Ovat, em 1965, reforçou a importância do Fogaréu como símbolo da tradição local e, já a partir do ano seguinte, a organização assumiu a responsabilidade de preparar o evento. Desde então, o ritual só ganhou força, e a cidade de Goiás é a única brasileira a preservá-lo até hoje.

Sensível ao peso histórico da procissão, o próprio poder público, ao menos até o ano passado, era quem a financiava, com recursos do estado. Neste ano, o governo cancelou a verba, e o Fogaréu dependeu de doações – que totalizaram entre R$ 8 mil e R$ 10 mil – para ser realizado.

De acordo com Marlene Vellasco, presidente da Associação Casa de Cora Coralina e membro da Ovat, foi quando sua instituição assumiu as rédeas do evento que se iniciou uma nova leitura da procissão. "O Fogaréu começou a ter um caráter mais turístico. Perdeu o lado religioso, pendendo mais para o profano", explica.

Tanto isso é verdade que a procissão foi apresentada – fora de sua época regular – para um conselho ligado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), durante o processo que transformou, em 2001, o centro histórico da cidade de Goiás em patrimônio da humanidade.

O próprio bispo da diocese de Goiás, o belga dom Eugênio Rixen, concorda com essa visão e completa: "Nós mesmos, da Igreja, lutamos por essa associação do turismo com a religião no Fogaréu".

A continuidade do evento, no entanto, já foi motivo de preocupação. Logo no início do período de retomada do Fogaréu, em 1967, a diocese passou a ser presidida por dom Tomás Balduíno, ícone da teologia da libertação no Brasil. Por sua interpretação mais progressista do catolicismo, o bispo gerou apreensão entre as famílias locais e os membros da Ovat. "As oligarquias reagiram, achando que a estrutura de celebração da Semana Santa tradicional seria modificada. Mas sustentamos que a forma do ritual dos antepassados não era obstáculo à nova mensagem da Igreja", relembra dom Tomás.

Superado o impasse, ele reconhece o papel determinante da Ovat na manutenção e na renovação do Fogaréu. "A procissão evoluiu mesmo por força deles", acrescenta.

Assim, apesar da origem religiosa do evento, atualmente a Igreja participa diretamente da procissão apenas durante a homilia, realizada pelo bispo ao fim do percurso. Com isso, o Fogaréu é hoje, segundo um consenso entre leigos e religiosos, um ritual "paralitúrgico".

E isso não quer dizer que sua nova roupagem o afaste da tradição – uma crítica freqüentemente aventada em relação ao ritual e à própria Ovat. "Nunca tivemos a intenção de realizar uma encenação exatamente igual à da procissão original. Mas ainda nos reportamos a ela. O Fogaréu é tradição, sim", atesta Heber Rezende, tesoureiro da Ovat e organizador do evento desde 1978.

Sagrado x profano

Passaram-se cerca de 15 minutos de quinta-feira. No único momento de parada da procissão, a multidão atinge a Igreja do Rosário, onde está montado um cenário que representa a Última Ceia após a saída de Cristo e dos apóstolos.

Além dos farricocos, só as câmeras de televisão e fotógrafos de todo tipo de veículo jornalístico, presentes em grande número, furam o cordão de isolamento criado por voluntários da Ovat e se aproximam da mesa, o que demonstra que o Fogaréu de hoje se tornou também bastante midiático.

Na visão da mestre em ciências da religião pela Universidade Católica de Goiás Ana Pinheiro, essa secularização do sagrado, que ocorre no Fogaréu, é natural. "Apossar-se da religião para torná-la profana faz parte de um processo da modernidade", explica ela.

Apesar de abrir espaço até para o uso eleitoreiro do ritual – diversos políticos, entre os quais o governador do estado, estiveram presentes –, isso permite que a cidade não apenas preserve sua cultura, como também se beneficie economicamente com a realização da procissão, que é apenas um dos eventos da movimentada Semana Santa de Goiás.

É o que ocorre com o comércio e, principalmente, a rede hoteleira da cidade. De terça para quarta-feira, é visível um aumento exponencial no número de turistas em Goiás. De acordo com Flávia Rabelo, gerente da Agência Goiana de Turismo (Agetur), esse período sempre apresenta 100% de ocupação dos cerca de 1,2 mil leitos disponíveis, entre hotéis e pousadas. "A Semana Santa é alta temporada em Goiás", define.

Ainda assim, Flávia conta que é difícil dimensionar exatamente o total de pessoas que visitam Goiás no período, e mais ainda saber quantas foram exclusivamente para assistir ao Fogaréu. "A maioria vem de municípios próximos, e se hospeda com parentes ou aluga uma casa", justifica ela.

Por isso mesmo, a Agetur vem tentando sensibilizar os empresários locais quanto à necessidade de realizar um cálculo mais preciso do número de turistas atraídos pelo Fogaréu, para que a própria atividade econômica da cidade ganhe com isso.

De qualquer maneira, fazendo uma estimativa com base na movimentação do Museu Casa de Cora Coralina, Flávia acredita que Goiás recebe uma média de 8 mil pessoas nos quatro dias da Semana Santa – um contingente bastante expressivo, se levado em conta o número de habitantes da cidade (pouco mais de 26 mil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2006).

Ícones vila-boenses

Para Rezende, o que explica o magnetismo que caracteriza a procissão é o conjunto formado pelo ar medieval do evento e a arquitetura da cidade. "Isso mexe com a fantasia da população", analisa.

Dom Tomás vai mais longe: "O Fogaréu penetrou o imaginário do povo porque toca em seus próprios símbolos. É uma referência muito importante porque é popular. E ocorre durante a lua cheia da Páscoa, um momento muito propício à reflexão. Por isso, até toleramos a presença dos políticos. O evento maior é a massa, acompanhando com fé".

As diversas lendas que pairam sobre a noite do Fogaréu também servem para aumentar ainda mais a aura mística e enigmática que a cerca.

Rezende conta que, até 1950, mulheres e crianças eram proibidas de participar e mesmo de assistir ao cortejo. "As mulheres ficavam só olhando pelas gretas da cidade", conta Marlene.

Rezende explica o motivo: "A superstição dizia que o diabo andava solto na cidade nessas noites". Ele mesmo se lembra de, quando pequeno, olhar a multidão passando através da janela, sentado sobre os ombros do pai, com um misto de medo e curiosidade.

A vontade de descobrir mais sobre o festejo venceu a apreensão, e ele, anos mais tarde, se tornou farricoco – o nome é de origem portuguesa, e pode designar o participante da procissão ou o capuz por ele usado –, numa época em que eles eram apenas 18.

Segundo Rezende, que só exerceu a função por poucos anos, os únicos critérios para se tornar um farricoco são ser homem e ter uma altura razoável, para se destacar na multidão. Pelo prestígio que a função acarreta, há uma longa lista de espera para ocupar uma das 40 vagas. Mas ela só deve aumentar, uma vez que o cargo é vitalício.

Movido pelo mesmo fascínio de Rezende, João Conceição, o Coxinha, também acompanhava o Fogaréu pelas frestas, quando criança. Neste ano, completou sua vigésima terceira procissão como farricoco. "Toda vez sinto a mesma emoção do primeiro dia", declara. A tensão é ainda maior porque só há tempo de realizar um ensaio geral. "Mas poder participar é como um troféu", acrescenta.

Domingos Nicolau, apelidado de Tapuia devido à ascendência indígena, começou a participar como tocador de surdo, na fanfarra, em 1977. O ofício de farricoco, no entanto, quase lhe custou mais do que os cortes nos pés, causados pelos paralelepípedos. Há 19 anos, recém-noivo de sua atual esposa, ele perdeu a hora, quando descansava para a procissão. "Acordei a 15 minutos da meia-noite. Tive de sair correndo e deixar a noiva para trás. Quase deu briga", relembra, sorridente.

O orgulho de João Conceição e Nicolau por fazerem parte desse grupo reduzido é justificado. A figura do farricoco está presente em toda a cidade, representada no artesanato e na arte locais.

Estranhamente, esses símbolos da vida vila-boense – palavra usada para designar os naturais do município, que já se chamou Vila Boa de Goiás –, assim como toda a riqueza da procissão do Fogaréu, nunca figuraram na obra de outra marca registrada da cidade: a poetisa Cora Coralina. Não há registro de nenhum poema escrito por ela que tivesse o cortejo como tema. Marlene Vellasco arrisca uma explicação: "A procissão acontece muito tarde. Cora devia estar dormindo. Acho que ela nunca viu o ritual", brinca.

Jesus é política

Próximo da 1 hora da madrugada de quinta-feira, a lua cheia alta já ofusca as tochas, enquanto o cortejo chega a seu destino, a Igreja de São Francisco. Nessa noite, ela representa o monte das Oliveiras. Um sentimento de tristeza invade Domingos Nicolau, enquanto ele sopra seu clarim. As notas anunciam a prisão de Cristo. "A gente fica sentido. Aqui é como um teatro, mas tudo isso realmente aconteceu, e Jesus sofreu muito", desabafa ele.

O único dos farricocos vestido de branco sobe as escadarias da igreja, levando o estandarte de linho que representa Cristo. Agora, o encerramento da procissão do Fogaréu será feito pelo bispo de Goiás e por seu convidado de todos os anos, dom Tomás Balduíno, que desde 1967 sempre esteve presente – a partir de 1999, como bispo emérito.

Olhando do alto para a multidão, ele inicia sua fala tradicionalmente combativa. O tema é a Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil de 2007, que tratará da Amazônia. Enquanto discorre sobre o aquecimento global e as ameaças ao cerrado brasileiro, temas caros à teologia da libertação, gritos esparsos começam a pipocar: "Fala de Jesus, não de política".

Mas, para dom Tomás, ambos são indissociáveis. "Jesus enfrentou o poder religioso, que era também o político. Se ele transmitisse uma mensagem de conformidade, não teria sido condenado."

Portanto, para dom Tomás, uma ocasião como o Fogaréu é perfeita para tratar de temas sociais. "Tiramos partido dessa celebração para mostrar que a pregação de Jesus não é espiritualista, mas sim realista. E a Campanha da Fraternidade expressa essa abertura da Igreja para a realidade dos de baixo: os negros, os índios, as mulheres, os sem-terra, os sem-nada."

 

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