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Pelourinho: museu ou cidade viva?

Transformar área histórica em atração turística pode significar expulsão de moradores

HENRIQUE OSTRONOFF


Foto: Divulgação

"Antes de ser bom para o mundo, o Pelourinho tem de ser bom para quem vive lá. Se ele for interessante para os moradores, vai ser para os outros também." O arquiteto Marcelo Ferraz se refere a um dos poucos conjuntos urbanos preservados de nosso passado – uma verdadeira cidade colonial portuguesa fora de Portugal, formada por mais de mil imóveis antigos, localizada no centro de Salvador.

O Pelourinho é uma referência, para o bem e para o mal, de intervenção do poder público em um sítio histórico com o objetivo de recuperar uma área em estado de degradação. E a declaração de Ferraz, assistente da arquiteta italiana Lina Bo Bardi no primeiro projeto de reabilitação do centro histórico da capital baiana no final dos anos 1980, remete a uma questão polêmica nas discussões entre arquitetos, urbanistas, especialistas e estudiosos do patrimônio histórico: que destino dar aos imóveis e às pessoas que neles moram e trabalham, em áreas submetidas a esse processo?

O centro histórico de Salvador, do qual o Pelourinho faz parte, abrange os limites da cidade fundada em 1549 por Tomé de Sousa, governador-geral do Brasil nomeado pelo rei de Portugal para assegurar o poder da coroa e defender a baía de Todos os Santos, descoberta em 1501. O local era constantemente visitado por estrangeiros, que cobiçavam o porto natural. São Salvador da Bahia de Todos os Santos nasceu como cidade fortificada e se estendia originalmente a partir de onde se encontram hoje a Praça Castro Alves e a Praça Municipal, ponto mais alto do terreno. Primeira capital brasileira, desenvolveu-se em dois planos – a Cidade Baixa, com o porto e estabelecimentos comerciais, e a Cidade Alta, área administrativa onde se instalaram edifícios governamentais, construções religiosas e residências da aristocracia colonial. A configuração urbana atual é praticamente a mesma observada em mapas do final do século 17 e começo do 18. Quase todas as construções daquele perímetro são dos séculos 16, 17 e 18.

Em 1763, a capital da colônia foi transferida para o Rio de Janeiro, mas Salvador manteve a condição de pólo econômico regional devido ao comércio de tabaco, gado e cacau. Foi somente no final do século 19 que a região do Pelourinho começou a entrar em decadência, com a especulação imobiliária em áreas em torno do centro histórico. A partir das primeiras décadas do século seguinte, reformas urbanísticas promoveram o desenvolvimento da circulação viária na cidade, por meio da abertura de avenidas, estimulando a burocracia estatal e a classe alta a se deslocar em direção à orla sul. A pá de cal foi a construção do Centro Administrativo da Bahia nas imediações do distante aeroporto internacional, nos anos 1970. O Pelourinho perdia então sua importância como sede político-administrativa. Na década de 1980, a aceleração do processo de abandono transformou a área num lugar degradado e considerado perigoso, repleto de imóveis em péssimo estado de conservação e que abrigava prostitutas e traficantes de drogas.

O destino da comunidade

A recuperação do centro histórico começou durante a gestão de Mário Kertész à frente da prefeitura de Salvador, entre 1986 e 1989. No início de seu governo, o prefeito convidou Lina Bo Bardi a desenvolver o primeiro projeto para o Pelourinho, que em 1984 havia sido tombado pelo então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Um ano depois, o sítio era incluído na lista de Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Como contam Juliana Borges Köpp e Mariana Luscher Albinati no ensaio "Políticas Culturais de Salvador na Gestão Mário Kertész (1986 a 1989)", fez parte das primeiras iniciativas de recuperação um inventário das edificações do Pelourinho. "O resultado do levantamento demonstrou que 30% dos imóveis localizados na área tombada estavam completamente arruinados ou em avançado estado de deterioração", descrevem as autoras no ensaio publicado no site do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult), da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A partir desse diagnóstico, o governo municipal elaborou um plano emergencial para manter em pé os prédios em piores condições e criou o Programa Especial de Recuperação dos Sítios Históricos, com os objetivos de retomar "a vocação tradicional do centro da cidade como ponto de encontro, trabalho, moradia e lazer da população" e "preservar o patrimônio arquitetônico, urbanístico, paisagístico e cultural do centro histórico".

A prefeitura interveio em áreas como Barroquinha, Ladeira da Misericórdia, Praça da Sé e Terreiro de Jesus. Obras de infra-estrutura buscavam "disponibilizar as condições mínimas de moradia para a comunidade dessa área e para visitação dos turistas e dos próprios soteropolitanos, que devido ao estado de deterioração física e social daquela área não conheciam o centro antigo da cidade", relatam as autoras. A área tombada pelo Sphan e reconhecida pela Unesco foi declarada pela prefeitura Parque Histórico do Pelourinho – correspondia a 42 quarteirões e tinha cerca de mil edificações.

Ao mesmo tempo em que os donos de imóveis da região passaram a contar com isenção de impostos e taxas municipais, a prefeitura impôs pesadas multas aos que não contivessem a deterioração de suas propriedades. Pavimentação de ruas, melhoria na iluminação pública, estabilização de ruínas, regulamentação do comércio informal e do serviço de guias turísticos, além da promoção de eventos culturais buscavam incrementar o turismo na região. De acordo com Juliana Köpp e Mariana Albinati, ao buscar atender às necessidades básicas da comunidade do centro histórico, a prefeitura sinalizava que os moradores da região "seriam beneficiários e parceiros da iniciativa".

Em entrevista publicada no mesmo ensaio, o ex-prefeito Mário Kertész falou dos objetivos do programa promovido por seu governo: "Defendíamos a manutenção da comunidade na região. Não tínhamos a intenção de transformar o Pelourinho em um shopping center, como ACM [Antônio Carlos Magalhães, ex-governador da Bahia, cuja administração assumiu, mais tarde, a recuperação do Pelourinho] tentou fazer em sua reforma". Ainda segundo Kertész, "é claro que os moradores iriam constituir comércio. Mas seria algo espontâneo e não artificial como o governo do estado fez posteriormente, quando chamaram até restaurantes de comida japonesa para se instalar no Pelourinho".

O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Eduardo Nobre, no ensaio "Intervenções Urbanas de Salvador: Turismo e ‘Gentrificação’ no Processo de Renovação Urbana do Pelourinho", aponta, como obra mais importante da arquiteta Lina Bo Bardi no centro histórico, a intervenção realizada na Ladeira da Misericórdia, projeto-piloto que seria expandido para toda a área. Os andares superiores de casarões restaurados foram destinados ao uso residencial da população local, e os pavimentos térreos, a atividades comerciais. E continua: "O que é notável em todos os projetos de Lina é a preocupação que ela demonstrava em manter a diversidade de atividades e usos, levando sempre em conta o social, um traço marcante no contexto do Pelourinho".

O arquiteto Marcelo Ferraz explica como o projeto concebido por Lina Bo Bardi via a questão do uso misto. "Bem ou mal, as pessoas [que viviam no Pelourinho] conservaram aquilo. Aquela gente tinha de ser com grande esforço mantida. Lógico que não todos, porque alguns moravam empilhados, havia cortiços. Então algum êxodo tinha de acontecer, mas não como foi feito depois". Segundo ele, o plano de Lina definiu com precisão o que era necessário ao centro histórico: ali deveria haver habitação.

As diretrizes de recuperação do local sofreram profundas alterações a partir de 1991, quando o governo estadual, por meio do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), passou a investir na região. O projeto de promover o uso misto do Pelourinho cedeu lugar à orientação de explorar o potencial econômico, por meio do turismo de massa. Segundo Eduardo Nobre, "as grandes residências e os solares foram convertidos para usos culturais e de entretenimento, tais como galerias de arte, casas de espetáculos, pequenos ateliês, escola de música, dança, artes e ofícios tradicionais". Tudo voltado para atrair o turista, transformando a área numa espécie de "disneylândia", segundo o professor da FAU-USP.

Uma das intervenções mais polêmicas aconteceu nos miolos de quadra. As ruas do Pelourinho, assim como de outras cidades coloniais brasileiras, não são arborizadas. No entanto, os grandes quintais das casas encontravam-se repletos de árvores, como mangueiras, coqueiros, palmeiras. O plano de Lina Bo Bardi previa a adequação dos miolos de quadra formados pelos quintais como áreas coletivas para os moradores. Segundo Marcelo Ferraz, o que ocorreu foi a transformação desses espaços em algo como "uma praça de alimentação de shopping", com a construção de fachadas falsas nos fundos das casas, imitando as autênticas, frontais. Essa solução, no entanto, causou, segundo Ferraz, um problema mais grave. "Onde faltava uma casa ou havia uma ruína, em vez de substituírem o espaço, fosse por um muro, fosse por alguma coisa que recompusesse o traçado, o arruamento, eles deixaram uma grande rua entrando nos fundos das casas. Com isso, desvirtuaram o traçado original, que era o grande valor do centro histórico."

"Gentrificação"

Com a conclusão, em 1999, da sexta etapa de recuperação do centro histórico, 1,35 mil imóveis haviam sido restaurados. Desses, o governo baiano adquiriu 432 e obteve o usufruto de 133. Outros 785 permaneceram nas mãos dos proprietários. O professor Eduardo Nobre demonstra, porém, que não houve uma mudança significativa no perfil econômico da população. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicados em seu ensaio, indicam que a população da região com renda de até 5 salários mínimos variou de 90% em 1991 a 80% em 2000. Entretanto, ainda segundo o IBGE, o número de moradores diminuiu de 9.853, em 1980, para 3.235, em 2000. Para deixar a região, em 1995, cerca de mil famílias receberam, cada uma, aproximadamente US$ 1.000 de indenização.

"Muitos sobrados hoje permanecem com o segundo e terceiro pavimentos fechados, quando poderiam abrigar moradores, como as famílias daqueles que trabalham no Pelourinho", analisa Nobre. E completa: "Os que foram expulsos para a periferia ficaram distantes dos equipamentos urbanos".

O presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, também tem uma visão crítica do processo. A seu ver, mudanças no zoneamento urbano de Salvador tiraram da região central da cidade "todo o universo institucional da Bahia", transferindo-o para outros bairros. A inversão desse movimento de abandono da área central, entretanto, foi realizada mediante políticas públicas "equivocadas". Almeida se refere à forma como o governo da Bahia lidou com a questão a partir de meados dos anos 1990. "O conceito preponderante naquele momento era o de esvaziamento, de retirada da população, até porque havia um modelo de gentrificação, de modo a tornar aquilo mais aceitável e palatável para o padrão de consumo da classe média e turística. Assim, prevaleceu a idéia de transformar o centro de Salvador em núcleo turístico, expulsando a população de baixa renda."

O termo "gentrificação", usado pelo presidente do Iphan – e que aparece também no ensaio de Eduardo Nobre –, ainda não faz parte de dicionários da língua portuguesa. O neologismo vem do inglês gentrification, que pode ser traduzido por "enobrecimento". Urbanistas utilizam o conceito quando querem se referir à substituição da população de áreas urbanas degradadas que passam por um processo de recuperação. Normalmente, após receberem aplicação de recursos públicos em infra-estrutura e mesmo na restauração de edificações tombadas, ou investimentos privados, por meio de grandes empreendimentos imobiliários, os espaços tornam-se valorizados, e a população se vê pressionada a deixar o local.

Com grande parte do patrimônio restaurado, o Pelourinho converteu-se, até agora, em uma das atrações turísticas mais conhecidas e visitadas do país. Ricas igrejas barrocas, museus, centros culturais, bares, restaurantes, lojas de artesanato, eventos artísticos atraem brasileiros e estrangeiros. Tudo em um ambiente formado pelas centenas de casarões coloridos dispostos nas ruas da antiga São Salvador. Marcelo Ferraz comenta o resultado da restauração dos edifícios: "Aquelas cores que colocaram ali... O Pelourinho não tinha cor nos séculos 18, 19. Era mais para o amarelado, ocre, cinza, pardo, branco, muito branco – era cal. Lina dizia que aquilo ficou parecendo uma sorveteria – pistache, limão, abacaxi..."

O filósofo francês Henri-Pierre Jeudy, autor do livro Espelho das Cidades, criticou, em entrevista à "Folha de S. Paulo" em 2005, o princípio que tem regido a conservação de centros históricos. "É uma síndrome de morte da cidade. Ele petrifica a cidade", afirmou. Segundo Jeudy, a região central de Salvador, que visitara 15 anos antes, havia se transformado de uma "área viva" em "um museu, um pólo para turistas". Ele disse também que a tendência de conservação patrimonial deixa as cidades cada vez mais parecidas. "No fundo, há sempre um centro histórico, onde tudo é refeito da mesma forma. Normalmente o início desse processo é uma busca de identidade local que leva a cidades patrimonializadas, onde o centro é colocado como a vitrine de uma loja".

A socióloga Maria Cecília Londres Fonseca, membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan, não concorda com a postura "radical" do filósofo francês. Segundo ela, "a preservação de qualquer centro urbano, dependendo do modo como for administrada, pode significar uma marca que valoriza o espaço, tornando-o atraente inclusive em termos de valor econômico". E questiona: "O que seria de Paris, o mais concorrido destino turístico do mundo, se suas características arquitetônicas e urbanísticas não tivessem sido preservadas?"

Interlocução

A imagem do Pelourinho como pano de fundo para o turismo está distante de ser desfeita. No entanto, uma mudança ainda tímida, mas significativa, já se faz sentir na atual fase de reabilitação do centro histórico de Salvador e pode mudar esse cenário. Como o presidente do Iphan reconhece, modificações no uso da área são necessárias. "A forma como se está planejando e executando as novas etapas de intervenção pressupõe o uso misto, a permanência de parte da população, e é isso o que está em curso no Pelourinho."

As diretrizes da sétima etapa da restauração começaram a ser discutidas em 2000. Na ocasião, estava prevista a retirada dos moradores, que poderiam escolher uma das ofertas da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Conder), empresa pública vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado – auxílio em dinheiro para relocação ou mudança para um conjunto habitacional da periferia. Algumas famílias aceitaram as condições. Outras, porém, preferiram continuar morando no sítio tombado, apesar das péssimas condições dos imóveis que habitavam. As obras, entretanto, permaneceram paralisadas devido a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado da Bahia contra o governo estadual e a Conder, por conta das remoções realizadas durante as etapas anteriores de recuperação.

A solução para o impasse foi encontrada em 2005, quando o governo federal, por meio dos ministérios das Cidades e da Cultura, promoveu a interlocução entre os moradores, representados pela Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico (Amach), e autoridades do governo baiano. Dessa forma, garantiu-se a permanência na área de famílias remanescentes, que poderão contar, nos 21 imóveis restaurados, com 103 apartamentos e 13 lojas. Posteriormente, mais 54 prédios abrigarão outras 203 famílias e 49 lojas. Sete monumentos, dos quais quatro tombados pelo Iphan, estão incluídos nos trabalhos de restauração. As obras serão bancadas por composições de recursos provenientes do programa Monumenta – iniciativa do Ministério da Cultura que conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) –, do Ministério das Cidades e do governo da Bahia.

A política de recuperação patrocinada agora pelo Iphan volta a ser baseada no uso misto do centro histórico de Salvador. Se for mantida, o Pelourinho poderá, aos poucos, se tornar interessante não só para o mundo, mas ser muito bom também para os que vivem lá. 

 

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