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O historiador que enfrentou Getúlio

Documentalista e professor influente, Luiz Camillo de Oliveira Netto ajudou a derrubar o Estado Novo

CECÍLIA PRADA

"...aquele límpido Luiz Camillo, cujo sopro de cardíaco foi bastante quente
para começar a derreter o grosso boneco de gelo da ditadura."
Pedro Nava (Galo das Trevas)

Luiz Camillo de Oliveira Netto (1904-1953), historiador, documentalista, professor, político e empresário, pertenceu a uma geração de intelectuais que acreditavam apaixonadamente na refundação do Brasil – na quebra dos privilégios e vícios políticos da chamada República Velha, na retomada daquele ideal republicano puro e democrático que, desde o início de nossa República institucional, se vira traído e enxovalhado por numerosos episódios históricos de feroz arbítrio governamental. Luiz Camillo viveu seus anos de primeira mocidade sob o jugo ditatorial de Arthur Bernardes, sentiu todo o peso da instabilidade política que caracterizou a década de 1920, e assim deixou-se iludir pela Revolução de 1930 – pela figura carismática daquele caudilho vindo do sul, Getúlio Vargas, com grandes promessas de liberdade e progresso estampadas em seu sorriso estereotipado, logo desmentidas pela ferocidade de seu aparato militar e policialesco.

Um sonho que durou pouco tempo. Com a eternização do "regime provisório" de Vargas, o adiamento sine die das eleições, o arrocho da imprensa, a intervenção no campo universitário, aquele mesmo grupo de intelectuais mineiros que, esperançoso, ascendera ao poder a partir da posse de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde Pública em 1934, começou a retrair-se e perceber seu engano. Com a radicalização política do golpe do Estado Novo em 1937, com o fechamento do Congresso, a supressão de todas as liberdades pessoais e a instauração explícita da ditadura, o sonho geracional ruiu completamente. A intelligentsia nacional, em sua maior parte – isto é, descontados os oportunistas que continuariam refestelados em seus privilégios –, foi obrigada a votar à causa da derrubada do tirano a mesma energia que usara, ingenuamente, quando o auxiliara a se estabelecer.

Um processo que se desenvolveu em uma aura conspiratória bem própria da tradição do estado de Minas Gerais, terminando no lançamento, em 1943, de um Manifesto dos Mineiros, que, exigindo a volta do Estado democrático, constituiria peça essencial no desmonte do governo do Estado Novo – no dizer da historiadora Lúcia Hipólito, "a queda de Vargas começou com 92 assinaturas" (dos mais destacados intelectuais, jornalistas, empresários e profissionais liberais do Brasil).

Papel de maior relevo coube a Luiz Camillo de Oliveira Netto na elaboração e divulgação do documento. Empenhou-se tão visceralmente na derrubada de Vargas que teve de sofrer a vingança, a destituição de cargos e um agravamento de seus problemas cardíacos, que lhe causariam a morte em 1953, aos 49 anos incompletos. Dele diria seu primo e conterrâneo Carlos Drummond de Andrade: "Um capítulo dinâmico da história política do Brasil em tempos não longínquos haveria de chamar-se: ‘Da ação subterrânea (e eficaz) de um certo Luiz Camillo, que não era senador nem deputado nem ministro nem nada: era engenhoso e inteligente’ ".

Um mergulho nos arquivos

Nascido em 1904 em Itabira do Mato Dentro (MG) de tradicional e numerosa cepa genealógica – as entrelaçadas famílias Oliveira Penna, Torres e Drummond –, esse personagem que, modesto e despretensioso, se sentiu sempre cindido entre sua vocação introspectiva de historiador e escritor e a imperiosa necessidade da ação política, está presente de modo constante, inequívoco, em toda documentação historiográfica do período em que viveu e atuou. Somente agora, porém, com a publicação da tese de doutorado em literatura brasileira de Maria Luiza Penna, Luiz Camillo – Perfil Intelectual, é que o grande público vai poder inteirar-se de seu valor extraordinário, de sua história pessoal tão interessante.

A circunstância especial da alentada e documentadíssima obra (mais de 650 páginas) – o fato de a biógrafa ser filha do biografado –, longe de desmerecê-la ou colocá-la sob suspeita de parcialidade, é transformada pela autora em elemento consciente da própria metodologia investigativa, reconhecida como uma dificuldade a mais a ser vencida, e como tal resolvida, dentro de uma proposta que em si já continha complexidade suficiente. "Tenho diante de mim uma pletora de documentos" – assim se apresenta Maria Luiza, revelando (para resolvê-la de uma vez, com sua organização, análise e transmissão) sua grande responsabilidade de depositária espiritual, desde os 15 anos de idade, do "conjunto descontínuo" que forma o grande arquivo deixado pelo pai.

A enorme correspondência ativa e passiva de toda a sua vida, conservada no arquivo, abrange das cartas mais íntimas e familiares às trocadas com as maiores personalidades do seu tempo, do seu meio intelectual, no Brasil e no exterior, e acresce-se de uma meticulosa conservação de bilhetes, notas de trabalho, pesquisas iniciadas, rascunhos, memórias, depoimentos, artigos publicados – no dizer da autora, "escritos [que] nasceram e cresceram em um momento cultural e histórico preciso, no ponto de encontro de forças infra e suprapessoais que os fazem objeto ora da história, ora da política, da sociologia, dos gêneros, das ideologias".

Como diz Sergio Paulo Rouanet no posfácio da obra, Luiz Camillo sofria daquele mal d’archive detectado por Derrida, uma "pulsão de mergulhar em todos os arquivos na esperança de neles encontrar diretrizes ‘arcônticas’ autorizadas". Trabalhando com esse riquíssimo material, Maria Luiza cria uma metodologia própria, inserindo ao longo do texto de sua obra algumas considerações que denomina de "subjacentes" – reflexões suas sobre os meandros da trajetória pessoal de Luiz Camillo, inserida na atormentada realidade nacional de sua época.

Após a publicação de estudos históricos esparsos sobre Minas Gerais, Luiz Camillo foi nomeado em 1934 diretor da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Cargo em que se manteve até 1938, e no exercício do qual viajou ao exterior, como representante do Brasil em congressos de história e para fazer pesquisas nos arquivos de Portugal. Em 1936 o encontramos como professor contratado da Universidade do Distrito Federal (UDF) e em 1938 é nomeado professor catedrático de história do Brasil e diretor comissionado da Faculdade de Política e Economia, da UDF.

Criada por um projeto de Anísio Teixeira, representante do movimento renovador da Escola Nova baseado na laicidade e na universalidade do ensino, assim como na visão da universidade como amplo campo de debate de idéias –, a UDF sofreu, desde sua fundação em 1935, a maior oposição dos círculos conservadores, especialmente da Igreja Católica, por intermédio de seus próceres, como Alceu Amoroso Lima e Sobral Pinto. Sua extinção em inícios de 1939 foi um dos mais repulsivos, atrasados e arbitrários atos da ditadura varguista, que a incorporou à recém-fundada Universidade do Brasil (a "Universidade do Capanema"), que centralizava o ensino e queria subordiná-lo aos ditames ideológicos estadonovistas.

O rebelde

Convidado pelo próprio Capanema, que se dizia "seu amigo", para integrar a faculdade governista, Luiz Camillo escreve uma carta que é um modelo de altivez e autenticidade, recusando o cargo e encerrando a amizade. Após vencer a depressão inevitável causada por esses eventos, pois se via novamente desempregado, com família para sustentar, aproveita seu tempo para refletir sobre sua vida e estudar – está mais do que nunca convencido da necessidade de se preservar a memória e a história do país, para nelas buscar exemplos de revitalização de seu pensamento e ação. Seu liberalismo afasta-o simultaneamente dos extremismos do momento – comunismo/integralismo – e não consegue aceitar nem o determinismo histórico do século 19 nem o catolicismo conservador e engajado de sua época.

Em 1940 é nomeado para chefiar a Biblioteca do Itamaraty. Com entusiasmo redobrado, alia o trabalho físico da minuciosa organização e recuperação de documentos, da ampliação de espaços, à ambição maior, intelectual, de transformar o Serviço de Documentação – iniciado pelo próprio barão do Rio Branco – em espaço de debates e pesquisas, para a produção de conhecimentos que beneficiassem não somente aos diplomatas mas ao público geral. Em novembro de 1941 o chanceler Oswaldo Aranha propõe a criação de um novo cargo, para Luiz Camillo: a de consultor técnico para assuntos históricos – competia-lhe estudar continuamente as questões históricas que pudessem servir de precedente para a solução de casos diplomáticos análogos, no futuro. Nada mais adequado, tanto para o próprio historiador como para os interesses mais prementes da Casa. Nesse cargo, participou de missões culturais do governo brasileiro em países estrangeiros, representou-o em numerosas reuniões e comissões de caráter internacional, enquanto não esmorecia na ampliação, por meio de aquisições e doações valiosíssimas, do Arquivo Histórico e da Mapoteca do Itamaraty. Graças a seu dinamismo pessoal, conseguiu formar, entre os diplomatas da casa e os que ocupavam postos no exterior, além dos intelectuais seus amigos que viajavam, uma verdadeira rede, empenhada em adquirir, mundo afora, códices, arquivos, livros e documentos raros para enriquecimento de nosso patrimônio histórico.

Entre seus amigos e correspondentes estava Mário de Andrade, e foi a seu convite, e na Biblioteca do Itamaraty, que o modernista realizou, no dia 30 de abril de 1942, a famosa conferência comemorativa dos 20 anos da Semana de Arte de 22 – toda votada aos sentimentos democráticos e aos Aliados, e uma confissão de culpa pelo que definia como "alienação política" da sua geração intelectual. Coisa que, evidentemente, não podia agradar ao governo Vargas, ainda simpatizante dos países do Eixo – aos quais o Brasil só declararia guerra em 22 de agosto do mesmo ano, por pressões internas e dos Estados Unidos.

O conspirador

Dali por diante a necessidade de ação contra o regime ditatorial tornou-se para Luiz Camillo imperiosa – estreitando seu relacionamento com o grupo de intelectuais mineiros seus amigos, entre os quais estavam Virgílio e Afonso Arinos de Melo Franco, Adauto Lúcio Cardoso e Dario de Almeida Magalhães, revestiu-se conscientemente, e sabendo bem o perigo que corria, daquela aura conspiratória bem própria de seu estado natal. No correr do ano de 1942 o grupo encontrava-se freqüentemente, e a idéia de fazer uma declaração pública exigindo a volta do Estado de direito foi tomando forma. Nas palavras de Maria Luiza Penna, "Luiz Camillo não só foi um dos articuladores do manifesto, foi também o mediador, o correio de coleta de assinaturas entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro".

Divulgado de norte a sul, inclusive entre os militares, e apoiado por muitos deles, o Manifesto dos Mineiros foi impresso e reimpresso numerosas vezes, sempre de maneira clandestina. Em Barbacena, por exemplo, o gráfico só o imprimia à noite, às escondidas, ocultando as provas no forro de sua casa, tamanho era o temor popular à repressão dos esbirros do regime.

Levado o documento a Vargas, com arrogância tentou ele minimizá-lo, qualificando seus assinantes como "leguleios em férias". No entanto, todos eles foram duramente perseguidos e punidos; as cadeias, já abarrotadas, não poderiam contê-los, e assim a vingança do ditador assumiu feição econômica, com demissões sumárias, aposentadorias precoces, confiscos e destituições – o primeiro a ser dispensado, naturalmente, foi Luiz Camillo, em 4 de dezembro de 1943. Uma demissão rumorosa, que logo despertou a solidariedade de um grande número de amigos e partidários, caracterizada por incidente pitoresco: ao ser chamado ao gabinete do chanceler Oswaldo Aranha – que sempre se mostrara seu amigo e para quem Luiz Camillo escrevia a maioria dos discursos –, ocorreu o seguinte diálogo, transcrito, entre outros, pelo jornalista Sebastião Nery:

" – Tu me puseste numa situação muito difícil, porque o Getúlio exige a tua demissão [dizia Oswaldo Aranha]. Agora tu vês como eu fico. Vê se te colocas na minha posição.
– Bom, ministro, isso é impossível.
– Por quê?
– Porque eu nunca ficaria na sua posição."

E acrescenta Nery: "Foi demitido, saiu, não tinha carro, alugou um táxi e passava o dia inteiro de táxi, conspirando, fazendo ligações".

Durante os dois anos seguintes, realmente Luiz Camillo reduplica sua ação conspiratória. Passa a maior parte do tempo na rua, de um lado para outro, ou andando de táxi – tinha medo de ser preso a qualquer hora –, com motorista conhecido a quem só pagava quando podia. Demitido de seu único emprego, com os filhos pequenos, sem recursos, começa a viver de "papagaios" levantados nos bancos, mas conta com a solidariedade dos amigos e até de pessoas estranhas. Relata Maria Luiza: "O português a quem devia as prestações da compra da casa, anti-salazarista ferrenho, faz-lhe uma visita de solidariedade e diz para não se preocupar com a dívida. Ela pode esperar. Para grande surpresa e alegria dos filhos de Luiz Camillo, leva-lhes um pacote de bombons".

Driblando a censura, concentra-se Luiz Camillo em um trabalho jornalístico: escreve uma série de artigos contundentes sobre a política econômica de Vargas, "A ditadura arruinou o Brasil", publicados no "Diário Carioca", com autoria atribuída a "uma comissão de economistas". Em abril de 1944 arquiteta, com Dario de Almeida Magalhães, nada menos do que um documento dirigido aos militares – a "Carta a Timandro", redigida por Dario, posta em circulação por Luiz Camillo e que acabou sendo entregue ao marechal Eurico Gaspar Dutra com a aparente aceitação por uma boa parte do exército, que na época já participava da guerra, com os Aliados. No Natal daquele ano, entretanto, vários componentes do chamado "grupo dos mineiros" foram presos e mantidos incomunicáveis por uma semana.

De 1943 a 1947 foram incessantes as atividades de Luiz Camillo como contato entre "conspiradores" e a imprensa, e foi nele que nasceu a idéia que acabaria por se tornar a pedra fundamental na queda de Getúlio Vargas: a famosíssima, histórica e destemida entrevista de José Américo de Almeida – escritor e grande figura política que em 1937 fora candidato à presidência da República (candidatura inutilizada pelo golpe do Estado Novo) –, que o "Correio da Manhã" do Rio de Janeiro publicaria no dia 22 de fevereiro de 1945 com o título "A Situação Nacional", e que teria ampla e imediata repercussão pelo país. O próprio José Américo testemunharia, mais tarde, que só concordara em dar a entrevista (a Carlos Lacerda), porque "Luiz Camillo, o puro, o democrata até a medula, não me deixava sossegado. Amanhecia e anoitecia na minha casa, batendo no assunto, com uma sacrossanta impertinência".

Outro testemunho da época, o de Pedro Nava, considerava que havia "uma ligação orgânica entre o manifesto e a entrevista, e esse ponto de ligação chama-se Luiz Camillo, o desassombrado". O reconhecimento é generalizado, entre os coetâneos, da articulação vital de Luiz Camillo para a queda de Getúlio. Entre muitos outros, diz por exemplo Rodrigo Mello Franco de Andrade que ele "dedicou-se de corpo e alma à obra de demolição do Estado Novo".

Mas o desgaste físico de seu organismo pelo sofrimento, pela humilhação e pela injustiça experimentados, e pela ação contínua, desenfreada quase, na persecução de seus ideais, minou de forma irremediável a saúde de Luiz Camillo – embora readmitido ao Itamaraty em 1946, e contando depois com uma breve mas proveitosa carreira de empresário (como diretor do Banco de Crédito Real de Minas Gerais e na Metal Leve de José Mindlin), ele não conseguiria se recuperar de uma crônica e maligna hipertensão arterial. Chegou a submeter-se a perigosa e inútil operação (simpatectomia), em um hospital de Boston, mas encerrou sua breve e brilhante carreira neste mundo no dia 3 de setembro de 1953, naquela sua casa da Rua da Matriz, 22, em Botafogo. Um local que ficaria historicamente conhecido como "a Casa da Resistência", pois mesmo depois da volta ao Estado de direito continuaria ela (ou melhor, seu porão, onde estava a biblioteca) como centro de reunião de todos os intelectuais que persistiam na luta para que o país tentasse se desenvolver segundo os padrões da ordem democrática e da liberdade. 

 

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