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Revolução cultural nos becos e quebradas

Em todo o país, manifestações artísticas agitam comunidades carentes das periferias

MARCELO SANTOS


Grupo Aruê das Gerais, de Belo Horizonte
Foto: Divulgação

Num boteco de esquina, iluminado por poucas lâmpadas penduradas por fios sobre as mesas repletas de garrafas de cerveja, petiscos, cinzeiros e refrigerantes, um grupo de cerca de 200 pessoas silencia para ouvir os versos do poeta Sérgio Vaz. "Queria ter lido mais livros, porém, analfabeto de ousadia, passei muitos anos enxergando pelos olhos adormecidos de outras pessoas", declama.

O boteco, conhecido como Bar do Zé Batidão, é de propriedade de José Cláudio Rosa e está localizado onde ruas estreitas, becos e escadarias dão acesso a uma das regiões mais pobres da cidade mais rica do país. No extremo sul de São Paulo, no bairro Chácara Santana, donas de casa, pedreiros, desempregados, motoboys, taxistas, camelôs, entre outros, misturam-se a universitários, professores, turistas estrangeiros e músicos. Todos atraídos pelo sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), uma iniciativa de Vaz, que percebeu que sua vizinhança era bem diferente do que a tevê noticiava. "Muitas pessoas têm interesse por leitura, arte e poesia. Aqui é nosso quilombo de resistência da cultura periférica", diz ele.

De acordo com o poeta, que já tem cinco livros publicados, o objetivo era unir o ambiente do bar – um dos poucos redutos de "lazer" da comunidade – ao gosto pela poesia. "Nossa idéia nunca foi mudar da periferia e sim mudar a periferia."

A receptividade é tanta que o evento da Cooperifa, iniciado em 2000, chega a reunir até 400 pessoas amontoadas no bar e seus arredores. "Imagine só: muita gente aqui não gostava de ler e hoje está escrevendo livro", revela Vaz, referindo-se aos cerca de 30 títulos já publicados pelo pessoal que freqüenta o sarau de poesia.

As idéias de Vaz – de transformar áreas da periferia em pólos culturais – encontram eco em milhares de ações promovidas nas regiões pobres de todo o país. E, embora em sua maioria estejam a cargo de organizações não-governamentais (ONGs) de missão assistencialista, essas iniciativas, ao explorar as potencialidades dos moradores, acabam resultando numa forma de resgate da auto-estima. Esse talvez seja o maior benefício que a arte vem trazendo às favelas, guetos e quebradas. É o que acredita também a professora e socióloga Isaurora Cláudia Martins de Freitas, da Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará. "Com a experiência artística, os jovens das comunidades pobres criam uma nova visão de mundo. Então, a partir disso, eles se enxergam como pessoas com possibilidades", diz a pesquisadora, que, em sua tese de doutorado pela Universidade Federal do Ceará, observou as principais mudanças vividas pelos jovens que freqüentaram a Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes (Edisca), um projeto que atende pouco mais de 300 pessoas de regiões carentes da cidade de Fortaleza, principalmente os que buscam, no lixo do aterro sanitário de Jangurussu, um meio de sobreviver. "O fato de passarem pela instituição fez diferença na vida dessas pessoas. Ali elas tiveram a oportunidade não só de aprender dança, mas também de encontrar um modelo de atitude, de força de vontade, de desejo de sempre seguir em frente", ressalta a pesquisadora.

Choque social

De acordo com a professora Isaurora, apesar do saldo positivo de experiências como a Edisca, um grave conflito surge, por exemplo, quando os jovens que passam pelas fileiras da escola de dança voltam para casa. "A instituição proporciona às crianças viagens internacionais, com hospedagem em hotéis de luxo durante as turnês. Quando retornam ao lar, porém, elas se deparam com um cenário de total privação, como é comum entre os que moram nas periferias do país", lamenta. Para ela, é preciso descobrir uma forma de minimizar esse "choque". "Não dá para garantir o futuro desses jovens. As ONGs não conseguem absorver todos, mas é preciso trabalhar essas diferentes realidades."

O produtor cultural Guti Fraga tem a mesma opinião: "É por isso que precisamos de muita qualidade no nosso trabalho. A gente conhece bem todo o problema do estereótipo". Ele dirige o Grupo Nós do Morro, uma entidade com mais de 20 anos de experiência na formação de atores e profissionais das áreas cênica e audiovisual que atua na favela do bairro do Vidigal, no Rio de Janeiro. No local moram cerca de 30 mil pessoas, que praticamente não têm acesso aos bens sociais e culturais, além de viverem fragilizadas pela violência urbana. Para Fraga, a forma mais eficaz de combater tantos estigmas é primar pela excelência na produção cultural. "Há 20 anos que não nos dedicamos a outra coisa senão pesquisar uma forma nova de fazer cinema. Então, é claro que a gente se orgulha quando vê o profissionalismo dos garotos."

O Grupo Nós do Morro é o responsável pela maior parte dos atores que participaram do filme Cidade de Deus, dirigido pelos cineastas Fernando Meirelles e Katia Lund, em 2002. De lá para cá, diversas outras produções foram feitas com o pessoal do Vidigal, sem contar o trabalho de vários atores, técnicos, diretores que seguiram para a televisão, o teatro, a produção de documentários e mais uma infinidade de projetos audiovisuais. "Na época do Cinema Novo, as pessoas falavam da favela de fora para dentro. De repente você vê cineastas vindo das comunidades, com idéias inovadoras e ótimas experiências, interagindo com nomes como Cacá Diegues, por exemplo. Só sei que algo muito importante está acontecendo", diz Fraga, referindo-se à refilmagem de Cinco Vezes Favela, uma produção de 45 anos atrás, dividida em cinco episódios dirigidos pelos cineastas Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Marcos Farias e Miguel Borges, além do próprio Diegues. A diferença é que desta vez o filme será feito totalmente por moradores das favelas, treinados pelas ONGs Nós do Morro, Central Única das Favelas (Cufa), AfroReggae, Observatório de Favelas e Cinemaneiro.

À revelia do centro

"Não tenho dúvida nenhuma de que a novidade mais importante da cultura brasileira da última década foi o aparecimento da voz direta da periferia, falando alto em todos os lugares do país", observa o antropólogo Hermano Vianna, criador da série "Central da Periferia", da Rede Globo de Televisão. Ele explica que as comunidades pobres inventaram diversas indústrias culturais paralelas (como a que produz e difunde o funk carioca, o tecnobrega, o forró e o pop), independentemente do aval das grandes gravadoras e da mídia. "Também surgiram inúmeros grupos que trabalham com a conjunção de criação artística e combate à injustiça social de maneiras muito originais, o que deu origem a uma descentralização cultural sem precedentes no Brasil."

De acordo com o antropólogo, antes era necessária a mediação da indústria "central" para tudo isso acontecer, ser notado e sobreviver. "Hoje as coisas acontecem à revelia do centro", diz ele.

Vianna acredita que a produção cultural da periferia adquiriu tamanha relevância que já não pode ser negligenciada pelos veículos de comunicação de massa. "Bem que a mídia tentou ignorar o sucesso, por exemplo, da Banda Calypso. Mas é impossível, pois se trata do grupo musical mais popular do Brasil, com milhões de discos vendidos. Quem fizer isso corre o risco de perder a importância como mídia."

Uma das principais vozes nascidas nos morros, favelas e áreas pobres urbanas do país é, sem dúvida, a cultura hip hop, que ganhou visibilidade através das letras de rap, com sua forma contestadora de narrar a realidade de privação e violência, conquistando o status de "voz da quebrada". "Tradicionalmente, o hip hop se apresenta como um movimento político, social e cultural, só que na prática é um pouco diferente. Resolvemos então transformá-lo em fio condutor de nossas ações, pois sabemos que no momento em que os jovens acreditarem na revolução da favela, das periferias, isso – a revolução – será então provável", diz o cantor e compositor Celso Athayde, um dos fundadores da Cufa.

Transformação social e hip hop são duas coisas difíceis de dissociar. O próprio movimento cultural nasceu nas áreas pobres de Nova York, na década de 1960, como uma via alternativa à violência entre as gangues urbanas que se espalhavam pela cidade norte-americana. A proposta era trocar os socos e pontapés por acrobáticos duelos de dança, o break. Nesse cenário surgiram também a grafitagem, o rap e os DJs (disc jockeys).

No Brasil, esses embates podem ser conferidos nas edições anuais do Hutúz (a última ocorreu em novembro passado), o maior festival da América Latina, promovido pela Cufa, que premia talentos do cenário de rua. Athayde sabe, entretanto, que o movimento cultural não representa a salvação para os problemas das regiões pobres no país. "Nem todo mundo vai virar o MV Bill (rapper e co-fundador da Cufa), ver sua música tocando no rádio ou aparecer na novela. Não temos o objetivo de seduzir o jovem da favela com a arte, mas ampliar a perspectiva, mostrando que o mundo é muito maior que a realidade cotidiana em que ele vive", diz Athayde, que espera encontrar nas "quebradas" não apenas artistas e esportistas, mas também profissionais de diversas áreas, como administradores, jornalistas, advogados, entre outros.

É no rap, porém, que a realidade periférica se mostra de maneira mais clara. "Existem duas opiniões: uma de que ele faz apologia ao crime, à violência. Outra de que é a voz da periferia e um movimento de identidade. Na verdade, um rap não é igual a outro. Há diversas linhas, é um universo que retrata a comunidade", opina o professor Charles Kirschbaum, pós-doutorando e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que atualmente faz um estudo sobre o fenômeno em São Paulo. "É uma observação sobre o que o rap pensa do rap, como disse um entrevistado meu."

Uma das constatações do professor Kirschbaum é que, para escrever uma letra de rap, o jovem da periferia precisa de muito estudo e dedicação. "Você começa a ver o pessoal investindo em educação de forma muito consistente. Há uma fome pelo saber – afinal, só assim é possível fazer uma letra inteligente e autêntica. Alguns músicos até me perguntam, no final das entrevistas, o que estou lendo."

Protagonismo

Segundo José de Oliveira Junior, coordenador executivo do Grupo Cultural Afro- Reggae, a auto-estima é fundamental, e se estiver aliada a políticas culturais pode melhorar os indicadores sociais de uma comunidade. "Existe um protagonismo artístico das comunidades no carnaval do Rio de Janeiro, no maracatu e no frevo de Pernambuco, e nos blocos afro do axé, o que gera renda e ascensão econômica. O problema é que isso é absorvido por outros segmentos comerciais. Todo mundo ganha, menos os protagonistas. É o que temos de mudar."

O próprio AfroReggae é um bom exemplo de que iniciativas culturais podem ter resultados práticos no desenvolvimento social de uma comunidade. Nascido a partir de um jornal de notícias sobre a cultura negra que circulava na favela carioca de Vigário Geral em 1993, o grupo promoveu uma série de ações comunitárias, como cursos de dança, teatro, artes circenses e, paralelamente, um bem-sucedido grupo musical. "Essa foi nossa primeira experiência e, graças ao incentivo e ao empenho dos moradores locais, Vigário Geral, antes famosa em todo o Brasil pela violência, é agora reconhecida como pólo gerador de arte e cultura."

Oliveira Junior cita o exemplo de Bogotá, capital da Colômbia, uma cidade que até bem pouco tempo atrás era uma das mais violentas do mundo, com taxa de assassinatos de 80 pessoas para cada 100 mil habitantes – índice que hoje é de 17. "A violência muitas vezes é contida por ações ligadas à cultura e à educação. Bogotá, por exemplo, se transformou na Capital Mundial do Livro – título concedido este ano pela Unesco", explica ele.

A principal lição colombiana foi promover a convergência entre segurança e educação, cultura e urbanismo. Foram criadas grandes bibliotecas nas zonas periféricas da cidade, e espaços públicos foram recuperados para a apresentação de eventos culturais. "Experiências bem-sucedidas como essa ou outras do próprio Brasil podem ser transformadas em políticas públicas", conclui o coordenador do AfroReggae.

Linha de crédito

Com o Programa Cultura Viva, criado em 2004, o Ministério da Cultura procura justamente implementar esse tipo de política, financiando projetos no interior dos estados e nas grandes cidades. É por meio dos Pontos de Cultura – um dos desdobramentos do programa federal – que iniciativas culturais são subsidiadas. "A situação poderia ser definida da seguinte maneira: o Ponto de Cultura seria uma microrrede, de âmbito local, e o Cultura Viva, uma macrorrede, com estímulo governamental. Nesse meio, outras redes vão surgindo, desenvolvendo-se por afinidades temáticas, regionais, etc. Dessa forma, vai se estabelecendo um processo de compartilhamento efetivo entre Estado e sociedade, que chamamos de Estado ampliado", explica Célio Turino, secretário de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura.

Segundo ele, a maioria dos trabalhos realizados nos Pontos de Cultura já existia antes de receber financiamento do governo e muitos terão continuidade, independentemente desse apoio. "O fato novo é a possibilidade de o Estado estabelecer parcerias com quem antes nunca nem mesmo conversou, como um grupo de maracatu, um terreiro de candomblé ou integrantes do hip hop."

O Programa Cultura Viva prevê o repasse de R$ 185 mil para cada projeto, divididos em cinco parcelas semestrais. Há mais de 600 Pontos de Cultura espalhados pelo país, como o Grupo Cultural Negros da Unidade Consciente (NUC), da comunidade do Alto do Vera Cruz, na periferia de Belo Horizonte.

Na opinião da MC (mestre de cerimônia, no hip hop) Rosane Barbosa Miranda, ou Negra Rô, como gosta de ser chamada, os financiamentos e repasses são essenciais para os projetos das comunidades mais pobres. "Hoje, a periferia está ‘na moda’, e os investimentos em iniciativas culturais ali desenvolvidas são vistos com simpatia. Mas, para que isso ocorra, é necessário um trabalho profissional das entidades", diz ela. Ativista do NUC e cantora de rap no grupo Estilo Feminil, Negra Rô acredita que a arte pode transformar destinos. "Isso aconteceu comigo. Ninguém é obrigado a se tornar artista, mas através da cultura se muda a percepção da vida."

Mapeamento cultural

É também de Belo Horizonte a mais bem-sucedida iniciativa de mapeamento da cultura de periferia. Tudo começou com o Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte, um livro publicado em 2004 pela antropóloga e dirigente da ONG Favela é Isso Aí!, Clarice de Assis Libânio. Ela mesma garante ter se surpreendido com o resultado de sua pesquisa. "É claro que supúnhamos que o movimento cultural nas favelas fosse diversificado e intenso, mas realmente não tínhamos noção do tamanho dessa produção. Os números nos impressionaram mais do que a diversidade em si, que já era esperada." Foram catalogados quase 7 mil artistas, de 740 grupos distribuídos em 226 favelas da capital mineira. "Com as atualizações que estamos fazendo, parece que esses números estão triplicando, no mínimo. Para se ter uma idéia, em apenas 18 comunidades já cadastramos quase 5 mil artistas nessa nova empreitada."

Outras iniciativas para mapear a produção cultural das regiões mais pobres estão em andamento, como o trabalho que vem sendo feito nos assentamentos do sertão central cearense, nos municípios de Banabuiú, Choró, Quixadá e Quixeramobim, por meio de uma pesquisa financiada pelo Cultura Viva e realizada por jovens da comunidade de Boa Água, em Banabuiú, atendidos pela ONG Catavento. Há ainda o projeto coordenado pela pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda, cujo objetivo é identificar a produção artística da periferia pernambucana.

Mapeada ou não, a cultura produzida na periferia não pede permissão para existir, e os resultados são a melhor forma de legitimá-la, como define a antropóloga Clarice Libânio, que vê benefícios em níveis distintos, como na construção da auto-estima e no reforço da identidade, no nível dos relacionamentos e na articulação social. "Há, ainda, mudanças significativas nas formas de mobilização e participação. As atividades culturais são, agora, entendidas como movimentos coletivos importantes para a construção da imagem do eu cidadão." 

 

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