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O ABC está de volta

Região mais industrializada do país recupera investimentos e sonha com o retorno da prosperidade

ALBERTO MAWAKDIYE


Arte: Maverpita

A tímida – mas aparentemente consistente – recuperação da economia brasileira está, aos poucos, dando o tão necessário fôlego para a região do ABC paulista, que como uma das mais industrializadas do país figura também entre as que mais perderam com a estagnação e as mudanças econômicas dos anos 1990.

Nesse conjunto de sete cidades que é o berço do vigoroso setor automotivo brasileiro, a sangria de indústrias não apenas parece ter sido estancada, como novas empresas estão chegando. O nível de emprego também melhorou um pouco, embora ainda não o suficiente para tranqüilizar os fortes sindicatos da região, em cujos quadros se forjou o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. A taxa de desemprego caiu de assustadores 22% na virada do ano 2000 para 14,6% em fevereiro último.

Há outros números animadores. Em 2006, São Bernardo do Campo, cujo poderio industrial equivale ao dos outros seis municípios juntos e é uma espécie de "locomotiva econômica" da região, viu seu Produto Interno Bruto (PIB) crescer 15,9%, enquanto no Brasil como um todo a taxa não chegou a ultrapassar 3%.

O salto deveu-se, principalmente, às vendas no mercado externo da cadeia automotiva de São Bernardo, que abriga cinco das seis montadoras implantadas na região (a General Motors fica em São Caetano do Sul) e centenas de indústrias de autopeças. As exportações da cidade cresceram 22,2% na comparação com 2005, somando US$ 4,5 bilhões, dos quais 71,5% originados no setor de transportes. "O município não tem arrecadação direta com as exportações, mas o comércio externo é fundamental para a manutenção e a geração de empregos", comemora o prefeito, William Dib.

A segunda cidade economicamente mais importante, Santo André, também tem bons números para mostrar. Menos dependente da indústria automotiva, o município vem recebendo pesados investimentos em seu pólo petroquímico, que divide geograficamente com a vizinha Mauá.

As indústrias do pólo – como a Polietilenos União, a Petroquímica União e a Refinaria de Capuava (Recap), da Petrobras – aplicaram nos dois últimos anos quase R$ 2 bilhões em obras de ampliação e modernização, e outro R$ 1,6 bilhão deve ser dividido até 2008 com um pólo gêmeo fora do ABC, em Cubatão, na região portuária da Baixada Santista.

Multiplicação

O empreendimento deverá resultar na contratação de 3,2 mil trabalhadores durante o período de construção e em mais 9 mil empregos em todo o ABC, levando-se em conta o efeito multiplicador dos projetos de expansão na indústria de transformação, por exemplo na produção de cosméticos, plásticos e autopeças.

"Sem dúvida, o pior já passou para Santo André", diz Antonio Carlos Schifino, coordenador do Observatório Econômico da Secretaria de Desenvolvimento e Ação Regional da cidade. "De 2003 para cá, os investimentos produtivos foram responsáveis pela criação de 35 mil novos empregos."

Até mesmo Diadema – que ficou conhecida no Brasil pela desmesurada violência urbana, bastante atenuada depois que a prefeitura adotou algumas medidas antipáticas, mas eficazes, como o fechamento obrigatório dos bares às 23 horas – e Ribeirão Pires, um misto de cidade-dormitório e estância turística, estão participando do processo de recuperação econômica em curso no ABC.

Diadema – onde metade do parque industrial foi instalado depois de 1991, ou seja, em pleno período recessivo – viu multiplicar-se o número de pequenas indústrias produtoras de componentes plásticos, que atendem principalmente as montadoras e fábricas de autopeças de São Bernardo. Um automóvel, hoje, leva 50% de plásticos em sua composição.

A retomada fabril também está fortalecendo ali as empresas fornecedoras de insumos industriais, como a Oxmar, especializada na fabricação de solventes para tratamento de metais e que está em Diadema desde 1995.

A companhia, que tem apenas quatro operários, faturou R$ 1,9 milhão em vendas no ano passado. "Com a economia em marcha, só podemos crescer, pois os solventes que produzimos são essenciais para a indústria metalúrgica", afirma Edson Neves, administrador da empresa, que faz parte do grupo Agro Química Maringá.

Já Ribeirão Pires está recebendo recursos privados que somarão cerca de R$ 80 milhões até o fim de 2007. A verba é equivalente ao orçamento anual da estância turística. Entre as empresas que anunciaram os investimentos estão a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), a SF Industrial e a Metalúrgica Moniz. A fabricante de armamentos CBC, a principal indústria da cidade, é responsável pelo montante de R$ 37 milhões e está ampliando a capacidade produtiva por conta do incremento das exportações.

Tombo

De qualquer forma, esses números tranqüilizadores não escondem o fato de que o ABC continua muito distante da posição privilegiada que ocupou na economia brasileira até a década de 1990. A verdade é que o tombo foi tão grande que é difícil imaginar que um dia a região, que hoje tem 2,5 milhões de habitantes, voltará a ocupá-la, mesmo prosseguindo no atual caminho de recuperação.

Em 1970, o ABC, ancorado principalmente em sua poderosa cadeia automotiva, era responsável por 4,57% do PIB brasileiro. Em 2004, essa participação não passava de 2,52%. Ou seja, houve uma queda de quase a metade em pouco mais de 30 anos.

A fase de prosperidade começou com a implantação da Volkswagen em São Bernardo, no final dos anos 1950, e se acentuou com a posterior chegada de outras montadoras e de indústrias metalúrgicas, químicas, têxteis e eletroeletrônicas para atender o novo pólo automotivo que surgia entre São Paulo e o porto de Santos. Nesse período, os então disputados operários metalúrgicos alcançaram um padrão de vida equivalente ao de seus congêneres europeus. Com direito a certo luxo: a rápida prosperidade da região fez de São Caetano do Sul, o reduto da classe média afluente, uma das cidades com os melhores indicadores sociais da América Latina.

Essa situação social quase paradisíaca também se perdeu. O padrão de vida no ABC continua relativamente alto (apesar dos crescentes bolsões de pobreza) e um operário metalúrgico de São Bernardo ainda recebe 30% mais do que um colega do pólo automotivo de Camaçari, na Bahia, por exemplo. Mas o PIB per capita da região desabou de US$ 11,29 mil em 1970 para US$ 6,5 mil em 2004.

"A região empobreceu demais nos últimos 15 anos, tanto do ponto de vista econômico como social", afirma José Lopes Feijóo, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, sucessor do lendário Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, cujas greves, sob a liderança de Lula, praticamente forçaram a abertura política do país a partir do final dos anos 1970.

Segundo Feijóo, "o ABC foi a maior vítima da abertura da economia quase irresponsável que tivemos na década de 1990". Essa política comercial, que aumentou substancialmente o volume de importações, aliada ao enxugamento dos quadros das empresas decorrente da globalização – no bojo da qual as multinacionais começaram a retalhar as linhas de produção, distribuindo-as por todo o planeta –, é considerada pelo sindicalista a principal responsável pelo declínio do ABC.

De fato, durante os anos 1990, dezenas de indústrias do ABC (principalmente pequenas fornecedoras automotivas) tiveram de fechar as portas, e a redução da atividade econômica foi tamanha que o número de metalúrgicos na região caiu de 200 mil na década de 1980 para 95 mil em 2001. "Hoje a situação está um pouco melhor, somamos 115 mil, mas esse ainda é um número baixo, na comparação com 25 anos atrás", lamenta Feijóo.

Diga-se que a área metalúrgica não foi a única atingida. O estrago na indústria foi generalizado, como mostra a espantosa queda na arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tributo que incide sobre a atividade industrial, entre 1991 e 2003: nada menos que 45%. Em 1991, a região respondia por 13,57% da arrecadação do ICMS paulista. Em 2003, esse percentual foi de 6,34%.

Praticamente todos os setores perderam. No complexo metalmecânico, a queda, entre 1991 e 2003, foi de 66,15%. No segmento eletroeletrônico, a redução foi de 49,1%. E nas outras áreas industriais, a arrecadação caiu 68,45%. A única exceção ocorreu nos segmentos químico e petroquímico, em que houve crescimento, nesses 12 anos, de 3,34%.

Todos os setores perderam importância relativa dentro do estado de São Paulo, incluindo também o químico e o petroquímico. A participação do complexo metalmecânico na arrecadação do ICMS estadual, entre 1991 e 2003, desabou de 33,84% para 15,95%, e a do setor eletroeletrônico, de 12,78% para 6,6%. Na área petroquímica, a redução foi de 18,84% para 9,79%. Nos demais complexos industriais, a queda da participação foi ainda mais brutal, de 6,32% para 2,08%.

"Além de todos os fatores negativos decorrentes da globalização, o ABC também se ressentiu profundamente dos efeitos da recessão no conjunto da economia brasileira", analisa Miguel Matteo, chefe do Departamento de Estudos Econômicos da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), de São Paulo. "Afinal, a característica da indústria do ABC, como de resto a de todo o estado, sempre foi produzir principalmente para o mercado interno. A recessão dos anos 1990, em nível nacional, só complicou a situação."

De acordo com Matteo, a crise do ABC foi apenas a face mais dramática daquela que atingiu a indústria paulista no período. De fato, produzindo quase a metade de todos os bens industriais do país – e parte substancial desse volume no próprio ABC – não havia como São Paulo atravessar incólume aquele período de internacionalização e de enxugamento industrial quase radical que marcou a economia.

O complexo metalmecânico paulista foi, a exemplo do que ocorreu no ABC, o que mais se ressentiu. A participação do setor no ICMS do estado caiu nada menos que 27,94% entre 1991 e 2003.

Debandada

Talvez o ABC não tivesse sentido tanto os impactos da globalização se esse cruzado no queixo não tivesse sido precedido de um direto no fígado. O triste fato, entretanto, é que, desde os anos 1970 e principalmente no transcorrer da década de 1980, a região foi também uma das principais vítimas da chamada "guerra fiscal", com a qual outros estados e municípios (inclusive do interior de São Paulo) tentavam atrair indústrias para seus territórios por meio da concessão de generosos benefícios fiscais, secundados por toda ordem de "brindes" na área de infra-estrutura.

Era chegada a hora de o ABC pagar o tributo do próprio sucesso. A concentração de indústrias na região valorizara os preços dos terrenos, dificultando a ampliação física das indústrias, e elevara a um nível considerado "irreal" os salários dos trabalhadores especializados. Esse cenário não era encontrado em outros locais do país.

Como dezenas de empresas de menor porte, indústrias referenciais do ABC fizeram as malas, a exemplo da Bosch (que foi para a região de Campinas, no interior de São Paulo) e da Aços Villares, cuja usina acabou transferida para o trecho paulista do vale do Paraíba. A CBC desmontaria sua antiga fábrica de cartuchos em Santo André para reuni-la à nova unidade de Diadema, ainda no ABC, muito mais enxuta e automatizada.

Mais grave até do que isso, a indústria automotiva, preocupada principalmente com o custo da mão-de-obra, passaria a abrir novas fábricas bem longe do velho ABC paulista – a Fiat e a Mercedes Benz em Minas Gerais, a General Motors no Rio Grande do Sul, a Volkswagen Caminhões no Rio de Janeiro, a Ford na Bahia e assim por diante. Em pouco mais de duas décadas, a região perderia boa parte de seu peso na produção de veículos do país, passando de 82% em 1980 para apenas 23% em 2005. Nesse movimento de migração, as montadoras foram acompanhadas por centenas de indústrias de autopeças, já instaladas ou não no ABC.

"Hoje, a indústria de autopeças é verdadeiramente nacional, não mais apenas paulista ou do ABC", reconhece Paulo Butori, presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças). "Mas o pólo do ABC é ainda o mais importante, tanto que fornece para as montadoras de todo o país."

De fato, o setor de autopeças tem relevância muito maior para a economia do ABC do que as empresas do segmento domiciliadas em outros lugares do país para as cidades que as sediam. Só como termo de comparação, o valor adicionado (um dos índices mais importantes usados na elaboração do ICMS) do setor automotivo no ABC tem 50% de sua fonte nas montadoras e 50% nas indústrias de autopeças. No vale do Paraíba, sede de unidades da Volkswagen e da General Motors, por exemplo, a relação é de 98% para as montadoras e 2% para as autopeças.

Inflexão

O temor de governantes, empresários e sindicalistas do ABC é que o atual processo de recuperação venha a sofrer uma inflexão, caso a economia brasileira não reaja da maneira esperada. O risco, de fato, é muito grande, já que a indústria do ABC continua fundamentalmente voltada para o atendimento do mercado interno, ao contrário de outros novos pólos industriais do país – principalmente no sul e no nordeste –, que já foram montados para produzir artigos de exportação.

Boa parte do esforço das prefeituras, de alguns anos para cá, tem sido, aliás, voltado para tornar a indústria da região menos dependente da cadeia automotiva e mais diversificada, investindo, inclusive, na atração de empresas de alta tecnologia. É o caso de Santo André, onde a operadora de telefonia móvel TIM aplicará R$ 262 milhões até 2008 e criará 2,5 mil novos postos de trabalho. O complexo tecnológico já entrou em operação, utilizando um espaço da Prysmian (antiga Pirelli Cabos), do mesmo grupo da TIM, com 500 empregados. Será o maior call center da companhia no país.

A EDS, especializada em terceirização de serviços de tecnologia da informação (TI), também vai centralizar suas operações num novo complexo localizado em São Bernardo do Campo. Até o final de 2007, serão transferidos progressivamente para a nova unidade cerca de 4 mil empregados que hoje trabalham em diversos escritórios da empresa na Grande São Paulo.

"Perto de 1,5 mil funcionários atuarão exclusivamente no atendimento do mercado externo", afirma Chu Tung, presidente da EDS, que está em São Bernardo desde 2001, quando inaugurou um data center que concentra hoje cerca de 600 profissionais e responde por 50% dos serviços de infra-estrutura, processos e desenvolvimento de sistemas realizados no país. Naquela época, a empresa investiu US$ 30 milhões no empreendimento.

As prefeituras estão ainda se empenhando na criação de pequenas companhias de base tecnológica. Inaugurada em 2002, a Incubadora Tecnológica de Santo André reúne atualmente 15 empresas e está em busca de novos associados. A de Mauá tem hoje 14. Ambas contam com o apoio do braço paulista do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

As companhias que integram atualmente as incubadoras são, em sua maioria, do próprio ABC. "Todas elas têm em comum a geração de produtos ou serviços com alta tecnologia agregada", resume Fausto Cestari Filho, secretário executivo da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, entidade que é uma das coordenadoras dos projetos.

As cidades estão igualmente investindo na multiplicação de shopping centers no espaço de antigas fábricas e na atração de grandes empresas do setor comercial. Dentre os maiores investimentos anunciados nessa área, um dos principais foi o das Casas Bahia, a maior organização do varejo brasileiro, que está aplicando R$ 20 milhões na instalação de um centro tecnológico de 8 mil metros quadrados em São Caetano do Sul.

Já Santo André pretende desenvolver os pequenos centros comerciais da cidade. Para isso instituiu o projeto Cidade Policêntrica, que inclui palestras gratuitas dirigidas a comerciantes, prestadores de serviços e pequenos empresários de quatro bairros, que concentram mais de 1,2 mil estabelecimentos comerciais. "Nossa expectativa é capacitar cerca de 3 mil pessoas até o final do projeto, em 2008", afirma o diretor de Desenvolvimento Econômico da prefeitura da cidade, David Gomes de Souza.

Em São Bernardo, a preocupação tem sido melhorar a já caduca infra-estrutura de transporte e logística. Com a ajuda do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a prefeitura investirá US$ 245 milhões no sistema viário da cidade e numa conexão com o Rodoanel, a futura via de contorno da Grande São Paulo (já em obras) e que ligará as mais de dez grandes rodovias que cruzam a região, vindas de todos os pontos do país.

"Com acesso garantido ao Rodoanel, São Bernardo terá condições de atrair empresas com mais facilidade", afirma o secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo do município, Fernando Longo. 

 

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