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Etanol: o desafio do combustível verde

Álcool acena com revolução energética, mas há muitas questões a resolver

FRANCISCO LUIZ NOEL


Foto: Maverpita

Yes, nós temos etanol. Muita coisa mudou na imagem do Brasil desde o tempo em que Carmen Miranda respondia com a marchinha de João de Barro e Alberto Ribeiro – Yes, nós temos bananas, de 1938 – ao desdém com que estrangeiros comparavam o país a uma república de bananas. Sete décadas depois, americanos e europeus vêem os brasileiros com outros olhos – pelo menos quando o assunto é bioenergia. Diante da alta dos preços do petróleo e da apreensão com o aquecimento global, o mundo reconhece: o Brasil tem, sim, capacidade produtiva e tecnológica para liderar a corrida pela transformação do álcool em alternativa energética para o planeta.

O interesse internacional pelo etanol aponta para um mercado de 150 bilhões de litros anuais em 2020 – três vezes a oferta atual no mundo, estimada em 50 bilhões de litros. Embora os Estados Unidos tenham desbancado o Brasil na liderança da produção, com 18,2 bilhões de litros na safra passada, seu álcool está confinado ao país, enquanto o made in Brazil tem o mundo pela frente. Os EUA utilizam o milho, menos produtivo que a cana e apoiado por subsídio. Com 17,8 bilhões de litros na safra 2006/2007, encerrada em abril, o álcool brasileiro tem a seu favor a tecnologia canavieira, o clima tropical e a fartura de terras, ao passo que a expansão dos milharais americanos beira o limite.

Juntos, os dois países detêm 72% da oferta mundial de etanol. No Brasil, líder em exportações, com 3,2 bilhões de litros vendidos no exterior em 2006, são 325 usinas e 6,5 milhões de hectares de canaviais – a maioria, em terras paulistas. Nos EUA, com 113 usinas, o milho ocupa 31,7 milhões de hectares, tendo como pólo o estado de Iowa. Os americanos devem duplicar a produção em dois anos; o Brasil caminha para mais do que dobrar a sua em cinco anos. Em 2012, segundo previsões da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), o país deverá produzir 38 bilhões de litros. Serão mais 76 usinas e 3,5 milhões de hectares de canaviais, com investimento total de US$ 17 bilhões.

A escalada do etanol brasileiro tem lastro. Tudo começou em 1975, na primeira crise mundial do petróleo, quando o governo criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Após o entusiasmo inicial, o produto enfrentou crises de escassez, amargou o descrédito nos anos 1980 e foi ao fundo do poço. Em 1990, a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) marcou o fim da intervenção governamental no setor, que centrou fogo na fabricação de açúcar para exportação. O álcool continuou a ser misturado à gasolina, mas só recobrou força para valer em 2003, com o lançamento dos carros bicombustíveis (flex fuel), que provaram a viabilidade do etanol como alternativa para a frota automotiva.

A desregulamentação, nos anos 1990, pôs fim ao estabelecimento de cotas de produção e comercialização de álcool e açúcar, além de outras amarras, mas não deixou o setor sem amparo. "Apesar de não haver mais intervenção estatal no setor, prevalecendo o regime de livre mercado, medidas governamentais importantes têm contribuído para o sucesso do etanol", afirma o coordenador-geral de Açúcar e Álcool do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Alexandre Betinardi Strapasson. Símbolo dessa contribuição decisiva é a animação com que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem apregoado em encontros internacionais os benefícios do etanol, invocando as credenciais do Brasil para dar exemplo do uso dos biocombustíveis ao mundo.

Como apoio estratégico do Estado, as usinas dispõem de isenção da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), incidente sobre os derivados de petróleo. O produto beneficia-se, também, da mistura compulsória à gasolina – 23%, atualmente – e da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os flex fuel, que somam 12% da frota nacional de passeio e 84% das vendas de novos no país. Além de investimentos em pesquisa, infra-estrutura e logística, o amparo governamental inclui os créditos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que está destinando R$ 7 bilhões ao setor em 2007.

Com os ventos soprando a favor, o etanol brasileiro exibe, porém, uma vulnerabilidade: o passivo ambiental e social. Mais de três décadas não foram suficientes para usinas e fornecedores de cana se adequarem às normas ambientais e trabalhistas. "Não dá mais para produzir álcool como no século passado", adverte o professor de engenharia de produção Francisco Alves, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). "A hora é esta. Se é para o país tirar proveito da procura por biocombustíveis, a sociedade deve perceber que a produção precisa garantir melhores condições de vida e trabalho e menos impacto sobre o meio ambiente."

Posto lado a lado com o consumo dos derivados de petróleo, o de etanol tem a vantagem de poluir menos e assim colaborar para a redução da emissão dos gases de efeito estufa – entre eles, o dióxido de carbono (CO2). Nos primeiros 30 anos, com a substituição de 778 milhões de barris de petróleo, o Proálcool evitou a descarga de 644 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera, de acordo com números da Petrobras. Como recurso renovável, o álcool vem gerando empregos principalmente para trabalhadores com baixa escolaridade e qualificação profissional. Na safra, segundo cálculos da Unica, o setor sucroalcooleiro emprega 1 milhão de pessoas – 400 mil somente no estado de São Paulo.

Conexão caribenha

As desvantagens competitivas do álcool de milho ajudam a explicar o movimento do governo dos EUA em busca de parceria com o Brasil no negócio. Por trás da "diplomacia do etanol", em curso na Casa Branca, estudiosos de geopolítica e da matriz energética do mundo vêem também as perspectivas nada animadoras de pacificação do Oriente Médio, que guarda mais de 60% das reservas mundiais de petróleo. Fator de instabilidade dos preços e ameaça à oferta futura aos americanos, os conflitos na região estão longe de ter desfecho pró-EUA, como atesta a falta de resultados após quatro anos de intervenção militar no Iraque.

O presidente George W. Bush propôs aos americanos, em janeiro, a redução de 20% do consumo de gasolina ao fim de dez anos – desafio que abre ao etanol uma demanda de 132,5 bilhões de litros anuais em 2017. Diante da impossibilidade de os EUA retirarem esse volume de seus milharais – os americanos já consomem 20 bilhões de litros anuais –, Bush desembarcou no Brasil, em março, com uma proposta que estende a parceria brasileira a países da América Central e Caribe. Hegemônica na região, a Casa Branca tem como estratégia direcionar iniciativas conjuntas de empresas brasileiras e americanas para esses países, com vistas ao abastecimento dos EUA sem a taxação imposta atualmente ao etanol importado do Brasil.

"Aos Estados Unidos interessa expandir a produção de etanol na América Central e Caribe, que seriam fornecedores do produto, diversificando as fontes de produção e diminuindo, portanto, a vulnerabilidade externa em relação à importação de petróleo", afirma o físico José Goldemberg, do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da Universidade de São Paulo (USP). Isso é bom para os americanos e também para os brasileiros, ele avalia. "Para o Brasil, América Latina e Caribe seriam bons mercados para exportação da tecnologia desenvolvida no país – e não só dos equipamentos necessários, mas também do know-how gerencial de grandes projetos", afirma.

A chegada do etanol brasileiro aos EUA via América Central e Caribe já é realidade. No ano passado, 24% das exportações brasileiras de álcool foram para o mercado americano após escala em países como El Salvador e Jamaica, totalizando 770 milhões de litros. Na triangulação, o álcool hidratado comprado no Brasil foi desidratado e reembarcado como anidro, para substituir o poluente aditivo de origem fóssil éter metil-terc-butílico (MTBE, na sigla em inglês) na mistura com a gasolina americana. Como a oferta de etanol de milho ficou abaixo da demanda, os EUA também importaram, com sobretaxa, 1,6 bilhão de litros do Brasil – seis vezes o volume comprado em 2005.

Mercado a conquistar

O que parece ser itinerário natural para a constituição de um mercado global de etanol depende, contudo, de um passo-a-passo que só está começando. "Não adianta pensar que vamos produzir 30 bilhões ou 40 bilhões de litros, botar na esquina e achar que todo mundo vai correr para o álcool brasileiro", alerta o ex-presidente da Petrobras e ex-ministro da Infra-Estrutura Ozires Silva. "O negócio não é tão fácil. Teremos de enfrentar problemas de regulamentação oficial e contar com a vontade política de governos estrangeiros, ou seja, vamos precisar da aceitação para a importação de energia, coisa que os países não gostam de comprar fora."

Na largada rumo à transformação do álcool em commodity, Ozires avisa, é ilusão sonhar que outros países vão se lançar à empreitada tecnológica de mover seus carros somente a etanol. "A primeira etapa seria de adição do álcool anidro à gasolina, como fizemos aqui nos anos 1970", afirma.

Por enquanto, observa o secretário-geral da Unica, Fernando Moreira Ribeiro, "faltam mercados livres e sobram barreiras tarifárias" ao álcool brasileiro, a exemplo da imposta na alfândega americana, de US$ 0,54 por galão (3,8 litros). "O etanol só se tornará uma commodity quando as medidas protecionistas de países produtores, como os Estados Unidos, deixarem de existir. O mesmo se aplica aos membros da União Européia e ao Canadá", diz.

O dirigente da Unica concorda ainda que a dianteira do Brasil na produção de álcool combustível não deve levar a acalentar sonhos de que o país dominará o novo mercado. "A prioridade do setor sucroalcooleiro é o mercado interno. Abastecer de etanol o mundo não é tarefa de um só país, nem em ficção científica", ele adverte aos ufanistas.

A exemplo dos EUA, onde 2,5% da frota de passeio é flex fuel e utiliza o E85 (85% de etanol e 15% de gasolina), europeus e asiáticos têm muito a misturar para diminuir o consumo do derivado de petróleo. Em março, o Conselho Europeu aprovou o uso de fontes renováveis como alternativa para a redução de 20% das emissões de CO2 até 2020, com base nos patamares de 1990. Com a decisão, que cada país vai traduzir em ações concretas, os biocombustíveis vão responder por 10% da energia consumida em transporte nas 27 nações da União Européia (UE). No caso do etanol, a demanda estimada para 2020 é de 13 bilhões de litros por ano.

O real interesse da Europa pelo etanol vai ser posto à prova em julho, em Bruxelas, durante a Conferência Internacional sobre Biocombustíveis da UE, que tem como convidado especial o presidente Lula. Os governos europeus participam de nova rodada de conversas em outubro, no Panamá, no Seminário América Latina-UE sobre Energia Renovável. Até agora, a UE esteve mais voltada para a substituição do diesel mineral pelo biodiesel – outro renovável com produção em alta no Brasil. Países como a França adicionam à gasolina percentuais irrisórios de álcool de beterraba, ainda mais caro que o de milho.

Outro mercado potencial é o Japão, que pretende usar etanol em termelétricas e iniciar a mistura de 3% à gasolina, tencionando chegar a 10% – percentual correspondente a mais de 6 bilhões de litros por ano. Preocupados com a garantia de fornecimento, os japoneses vêm firmando parcerias de produção no Brasil. Uma delas, em março, uniu a Mitsubishi e a São Martinho, segunda no ranking sucroalcooleiro nacional, num contrato de exportação de etanol por 30 anos. Em outra aposta japonesa, a Mitsui juntou-se à Petrobras para participar da construção de usinas até 2011, num investimento de US$ 8 bilhões, financiado pelo Japan Bank for International Cooperation (JBIC).

O primeiro fruto dessa parceria será colhido pela Petrobras este ano, com a exportação de mais de 50 milhões de litros de álcool anidro para o Japão, aplainando o terreno para a remessa de volumes maiores. Disposta a liderar as vendas externas de etanol, a estatal toca um programa de investimentos de US$ 1,6 bilhão em projetos de produção e logística. Um dos principais é um alcooduto de US$ 232 milhões para o escoamento do produto de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e estados do centro-oeste em direção ao porto de São Sebastião (SP). Além da rede de dutos, a Petrobras quer operar um sistema de transporte de etanol em barcaças na hidrovia Tietê-Paraná.

Inflação do etanol

O alcooduto e a hidrovia são promessa logística que vai ao encontro dos investimentos bilionários iniciados por usinas e grupos nacionais e estrangeiros – na maioria voltados para o sudeste e o centro-oeste. Nas duas regiões, onde estão 75% da produção nacional de açúcar e álcool, a corrida de investidores para o ingresso no mercado do etanol elevou às alturas os valores das usinas e outros ativos do setor. A "inflação do etanol" transformou em página virada o tempo em que uma das marcas do crescimento do setor eram as aquisições, seguidas de ampliações, com a conseqüente concentração do capital sucroalcooleiro.

Uma das últimas operações desse tipo ocorreu em abril, quando a Cosan, a São Martinho e a Usina Santa Cruz compraram juntas a Santa Luiza, de Motuca (SP), por R$ 99,1 milhões. Dois meses antes, a asiática Noble, gigante do agronegócio, adquirira a Petribu Paulista, em Sebastianópolis do Sul, por US$ 70 milhões. A usina será duplicada, para produzir 30 milhões de litros de etanol. A temporada de compras parece, porém, chegar ao fim. Para entrar no negócio sem se associar a quem já produz, investidores brasileiros e estrangeiros – americanos, ingleses, italianos, dinamarqueses e japoneses, entre outros – terão de botar usinas de pé, em empreitadas que podem durar até quatro anos.

O tempo de frutificação de um projeto – da encomenda da usina à compra da terra, do equacionamento da oferta de cana à licença ambiental – é compensado pelas perspectivas de rentabilidade com a internacionalização do etanol. Um dos muitos casos de interesse externo pelo filão é o fundo de investimentos liderado pelos ex-presidentes da Petrobras e da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Henri Philippe Reichstul e David Zylbersztajn. Integrado por neófitos endinheirados como os americanos Steve Case, fundador da American Online (AOL), Vinod Khosla, criador da Sun Microsystems, e James Wolfenson, ex-presidente do Banco Mundial, o fundo pretende aplicar US$ 2 bilhões na construção de 15 usinas.

Maior produtora de açúcar e álcool do país, graças a aquisições feitas nos últimos anos, a Cosan é uma amostra de que a hora é de pôr mãos à obra. A empresa, que faz do usineiro Rubens Ometto o oitavo brasileiro mais rico, com patrimônio de US$ 2 bilhões, segundo a revista norte-americana Forbes, tem 17 usinas, emprega 37 mil trabalhadores na safra e mói quase 30 milhões de toneladas de cana. Em face da sobrevalorização dos ativos do setor, a Cosan anunciou a construção de três usinas em Goiás, como parte de investimentos que incluem outras unidades e somam US$ 1,7 bilhão. A São Martinho também constrói em Goiás, investindo R$ 343 milhões.

A valorização das usinas é acompanhada pela alta dos preços da terra para compra ou arrendamento. Em São Paulo, que produz 62% da cana nacional, a investida do etanol avança palmo a palmo sobre pastos e lavouras de grãos. Em regiões como a de Ribeirão Preto, de acordo com levantamento do Instituto FNP (IFNP), o valor do hectare mais do que dobrou em relação ao de 2002, subindo de R$ 9 mil para R$ 21 mil nas negociações de venda. Na região de Araçatuba, no oeste paulista, com tradição pecuária, o hectare passou de R$ 4 mil para mais de R$ 8 mil. O salto foi de R$ 3 mil para R$ 6,2 mil na região de Presidente Prudente, no extremo oeste.

"A pecuária está sendo empurrada pelos canaviais. A tendência é os preços continuarem subindo no oeste paulista até chegar perto do valor da terra nas regiões tradicionais de cana, como as de Ribeirão Preto e Piracicaba. Nesses locais, onde não há mais áreas disponíveis, o preço tende a se estabilizar", avalia no IFNP a analista de mercado Jacqueline Dettmann Bierhals, responsável por levantamento bimestral do valor da terra. O movimento ascendente é comum a outros estados em que a cana está abrindo fronteiras. "No Mato Grosso, no Triângulo Mineiro e em Goiás ainda deve ocorrer uma boa valorização", prevê a analista.

Mais do que a lei da oferta e da procura, o que aquece o mercado fundiário é a perspectiva de bons lucros associada ao etanol. Os preços da terra mantêm sintonia com a cotação dos produtos agrícolas, subindo ou descendo de acordo com a gangorra financeira das bolsas de mercadorias. "Há muita indexação no campo. A terra é cotada em sacas de soja, arrobas de boi ou toneladas de cana", explica Jacqueline. E exemplifica: "Quando a soja andava valorizada, a terra para o plantio também estava. Mas, como o preço despencou de 2003 para cá, o valor do hectare caiu 50%". Com a febre da cana, que só faz subir, o mercado fundiário reage no sentido contrário.

Energia x alimentos

As repercussões da parceria Brasil-EUA na geopolítica latino-americana puseram na ofensiva dois arquiinimigos dos Estados Unidos – o presidente de Cuba, Fidel Castro, e o da Venezuela, Hugo Chávez. No Granma, jornal do Partido Comunista, Fidel condenou em 29 de março o uso de terras agrícolas para a produção de energia e acusou os americanos pela fome futura no planeta. Em artigo no Washington Post, o presidente Lula rechaçou o temor da falta de alimentos. Mas Fidel voltou à carga no jornal cubano, dizendo que Bush e Lula não saberiam dizer de onde virão o milho e "outros cereais" que saciarão a sede dos EUA por etanol.

Mesmo mirando as críticas nos americanos, Fidel e Chávez não deixaram de fustigar o Brasil. Antes da visita de Bush, porém, os dois presidentes latino-americanos haviam anunciado a construção de 11 usinas de etanol na Venezuela e o plantio de 280 mil hectares de canaviais, com base na experiência de Cuba e do Brasil. Ainda assim, tendo em vista o desempenho estratégico das exportações de petróleo na economia venezuelana, Chávez fez de tudo para impedir elogios aos biocombustíveis no documento final da Cúpula Energética da Comunidade Sul-Americana de Nações, em abril, na Venezuela. Só não conseguiu porque o Brasil fez valer sua força de pressão.

O avanço dos milharais destinados ao álcool nos EUA não deixa de alimentar, no entanto, impactos nos preços agrícolas. Líder mundial na produção de milho, ingrediente de uma cesta de produtos que vai dos sucrilhos matinais ao adoçante dos refrigerantes, o país tem no cereal uma das principais fontes de nutrição. De toda a produção, 55% têm esse destino, 20% vão para o etanol e o restante para exportação. Em meio à euforia do álcool, o grão dobrou de preço em 2006. E segue em alta, pressionando outros preços até no vizinho México, onde inflacionou as tortillas – base da dieta nacional – e provocou protestos de rua, levando o presidente Felipe Calderón a negociar com os plantadores.

A tensão deflagrada pelo aumento da demanda do milho, decorrente da entrada em operação de novas usinas de etanol, tende a crescer. De acordo com as previsões relativas às lavouras da primavera divulgadas em março pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês), os produtores tencionavam plantar 36,6 milhões de hectares de milho em 2007 – 15,5% a mais que em 2006. Em contrapartida, a área com soja nos EUA deve ser 11% inferior à do ano passado, ficando em 27,1 milhões de hectares – a menor desde 1996. Tendência semelhante, que ameaçava a oferta alimentar de milho, fez a China pôr em banho-maria a construção de usinas em 2006.

O Brasil parece estar livre do problema, graças à profusão de terras agricultáveis. "Há cerca de 90 milhões de hectares disponíveis para a atividade agrícola no país, sem necessidade de ocupação de áreas nativas. A cana tem utilizado espaços principalmente onde havia plantações de soja e pastagens subaproveitadas, num ritmo de 10% ao ano", diz Strapasson, do Ministério da Agricultura. Ambientalistas têm alertado que, tangidas pela expansão canavieira, a produção de grãos e a pecuária podem invadir áreas intocadas do cerrado e da Amazônia, se houver descuido dos órgãos ambientais.

O avanço da tecnologia é a aposta do setor sucroalcooleiro para otimizar o uso da terra e elevar a produtividade. Passada a fase dos investimentos governamentais em pesquisa, por meio do Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-Açúcar (Planalsucar), nos primórdios do Proálcool, vem crescendo nos últimos anos a participação das usinas, com foco no aprimoramento de cultivares, técnicas agrícolas e processos industriais. Sucessora do Planalsucar, a Rede Interuniversitária para Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa), com 140 pesquisadores em sete universidades públicas e várias parcerias estabelecidas com empresas, não arrisca números do total investido na área. Nos EUA, nada menos de US$ 1,6 bilhão deverão ser aplicados até 2012.

Uma das vertentes de pesquisa no Brasil e nos EUA é a obtenção de etanol a partir de lignocelulose, com bagaço e outras fibras, como a palha de milho. "O uso de materiais celulósicos abrirá uma nova fase para o etanol. No caso brasileiro, dependendo da tecnologia, poderemos aumentar a produção em 30% a 40% ou até dobrá-la, sem expandir as áreas de cultivo", diz Moreira Ribeiro, da Unica. Um dos estudos é feito pela Petrobras, numa usina em pequena escala, no seu centro de pesquisas, no Rio de Janeiro. Mais caro, o processo que utiliza lignocelulose precisaria sofrer redução de custos para ter viabilidade comercial.

Outra linha de pesquisa diz respeito ao uso do etanol como energético primário para motores elétricos, que devem substituir os convencionais nas próximas décadas. "É preciso destinar parte dos investimentos atuais em tecnologia aos combustíveis do futuro, como o hidrogênio, que pode sair do álcool", defende o ex-ministro Ozires Silva, diretor-presidente da Universidade de Santo Amaro (Unisa), em São Paulo. Em 2003, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apresentou um protótipo de carro a célula de hidrogênio extraído do etanol. Os ganhos energético e ambiental da inovação podem ser garantia de vida longa ao álcool, num século marcado pela valorização das energias limpas e renováveis.


Canavial esconde questão social

Condições precárias de trabalho e queimadas são marcas que seguem associadas ao etanol brasileiro. A lentidão das melhorias iniciadas nos últimos anos mostra o lado perverso da produção do combustível apregoado como saída para o século 21. Exemplo do paradoxo ocorreu em 19 de março: enquanto o presidente Lula afirmava em Goiás que "os usineiros estão virando heróis mundiais", o Ministério Público do Trabalho autuava em 13 irregularidades a Usina Renascença, que mantinha 90 canavieiros em condições degradantes, em Ibirarema, no oeste de São Paulo.

O número de multas por infrações trabalhistas nos canaviais do estado chegou a 600 em 2006, a maioria contra fornecedores de cana. As irregularidades mais comuns vão do recrutamento sem registro em carteira à falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), da inexistência de instalações sanitárias ao transporte inseguro e clandestino. Essa situação, na verdade, se verifica também em outros estados. Em 29 de março, fiscais encontraram 409 bóias-frias – entre eles, índios guaranis e terenas – em situação degradante na Usina Centro Oeste Iguatemi, em Iguatemi (MS).

O etanol nacional tem, ainda, outra questão a macular sua imagem. Desde que foi adotada a remuneração por produtividade (ver PB nº 372), os canavieiros precisam cortar até 15 toneladas de cana por dia para ganhar em torno de R$ 800 mensais, num esforço repetitivo que reduz sua vida de trabalho e causa problemas de coluna e pés, além de câimbras e tendinite. Desde 2004, ocorreram 19 mortes no campo, em situações associadas à sobrecarga no corte – causa que a Unica contesta, sob o argumento de que não há comprovação médico-legal.

Há três décadas estudando a labuta nos canaviais, a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, livre-docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que a febre do etanol flagra o Brasil numa encruzilhada. "De um lado, estão a produção, os grandes investimentos; do outro, a questão social e ambiental, desconhecida da população", resume. Ela chama a atenção para o aumento do trabalho dos canavieiros – na grande maioria, migrantes do nordeste –, que até os anos 1980 cortavam de seis a oito toneladas de cana por dia. "O trabalhador agora concorre com as máquinas", lamenta.

O fim do pagamento por produtividade é defendido pelo Ministério Público do Trabalho, enquanto a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) propõe a convivência dessa remuneração com um limite diário de corte. Para a melhora das condições laborais, a Unica vem difundindo os princípios de responsabilidade socioambiental entre as usinas e desaconselhando a terceirização, fonte de desrespeito aos direitos trabalhistas. O secretário da entidade, Fernando Moreira Ribeiro, diz que, "através da livre negociação, diversos benefícios foram assegurados aos canavieiros nas últimas décadas".

No plano ambiental, também há muito a fazer. Além das queimadas para a colheita, o professor de engenharia de produção Francisco Alves, da Ufscar, aponta outros problemas a enfrentar. Entre eles, o risco de contaminação de lençóis freáticos pelo vinhoto (resíduo da moagem, na proporção de 12 litros por litro de álcool), usado como fertilizante nos canaviais; os danos históricos a reservas legais e de preservação permanente nas fazendas e a aplicação de agrotóxicos, incluídos produtos despejados por aviões para a maturação da cana. A Unica contesta. "Do ponto de vista agronômico, a cana-de-açúcar no Brasil é uma cultura que apresenta um dos mais baixos índices de erosão de solo, contaminação de águas e uso de agrotóxicos", afirma Moreira Ribeiro.

Vilãs ambientais, as queimadas têm relação indissociável com o corte manual, pois facilitam o trabalho e afastam os animais peçonhentos, embora influam no teor de sacarose e gerem problemas respiratórios entre a população. Dos 425 milhões de toneladas de cana da safra 2006/2007, o corte à mão correspondeu a 75%, mobilizando quase meio milhão de trabalhadores.

Empresas como a São Martinho vêm investindo pesado na mecanização da colheita, reduzindo sensivelmente o volume de cana queimada. "Somos líderes na mecanização da colheita. Na atual safra, colheremos cerca de 80% de nossa cana de maneira mecanizada e crua. Dos 9,5 milhões de toneladas que almejamos processar em 2007, aproximadamente 7,6 milhões de toneladas serão colhidas assim, sem queima", orgulha-se o presidente do grupo empresarial, João Guilherme Sabino Ometto.

Queimar ou não queimar? A questão está no centro de outra situação paradoxal vivida pelo setor sucroalcooleiro, envolvendo também órgãos ambientais e sindicatos de trabalhadores. Quanto mais a colheita for mecanizada e dispensar o fogo, menos empregos serão abertos nos canaviais – efeito que o professor Francisco Alves sugere combater com intensificação da reforma agrária. Na Unica, Moreira Ribeiro equaciona o dilema:

"Se essa redução da queima controlada da cana for mantida no ritmo atual, de acordo com a legislação vigente, o setor deverá contratar menos mão-de-obra, mas, ainda assim, serão mais 400 mil trabalhadores até 2012, para atuar em todos os níveis da cadeia, do corte no campo ao setor administrativo na usina. Entretanto, se essa redução for acelerada, como prevêem alguns projetos de lei, o número de contratações deverá ser bastante reduzido, talvez até por volta de 200 mil em 2012".

 

 

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