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Mulheres negras: as mais vigiadas, punidas e mal pagas
* Por Dina Alves
No Brasil, diz o senso comum, não é possível saber quem é negro ou quem é branco porque aqui todo mundo tem um pé na cozinha. Segundo esta perspectiva, ao contrário da África do Sul ou dos Estados Unidos, onde houve segregação institucional contra as gentes negras, o Brasil é um país livre de racismo. Ainda que, nem mesmo os propagadores do mito da democracia racial acreditem em tal falácia, ela continua a ser usada para pensar as relações sociais por aqui. Assim, negação do racismo e dominação racial caminham de mãos dadas no país do carnaval. Uma maneira de desvendar o mito da suposta democracia racial brasileira (ou seja, a falácia de que “ninguém sabe quem é quem”) é olhar às prisões e as alarmantes taxas de letalidade das mulheres negras do país. Enquanto o mito diz que não se sabe quem é negro ou quem é branco, o sistema de justiça penal localiza muito bem essa variável. Considere que, a atual política nacional de Segurança Pública situa o Brasil como o quarto país que mais encarcera e mata mulheres no mundo. Além de evidenciar a expansão da indústria da punição, o fato de que mulheres negras são as principais encarceradas revela a manifestação explícita da intersecção dos eixos de vulnerabilidade – delineados por raça, classe e gênero – na produção da categoria “mulher negra encarcerada” como indivíduos puníveis/matáveis. Atualmente, o país conta com uma população prisional feminina de 42 mil presas.
No período de 2000 a 2014, o aumento dessa população foi de 567,4% enquanto a média de crescimento masculino no mesmo período foi de 220,20%, refletindo, assim, a curva ascendente nacional do encarceramento em massa de mulheres. Deste total 68% são mulheres negras. A teia de captura do sistema prisional enclausura mulheres negras que têm o mesmo perfil: são pobres, moradores de comunidades e periferias, mães e acusadas por tráfico de drogas. Este, inclusive, é o principal tipo de infração em que elas são acusadas e capturadas pelo sistema. De acordo com o INFOPEN (2018), este tipo de crime corresponde a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres estão privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento. Isso significa que 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por tráfico. Elas são as mais vigiadas e as mais punidas no sistema de justiça criminal (Brasil, 2018, Alves, 2015).
O estado de São Paulo responde pela maior população de mulheres encarceradas, com o total de 35,6% da população carcerária feminina nacional. Além disso, 43% do total estão presas a espera de julgamento. Ao traçar o perfil das 14.810 mulheres encarceradas, é possível visualizar uma linha de cor e gênero nas prisões paulistas: 67% são negras; 50% têm entre 18 e 29 anos; as mulheres que não concluíram o ensino fundamental e as que foram condenadas com penas de até oito anos de reclusão compõem o universo de 63%. Apenas em 7% estão presas por crimes violentos; 15% por crimes contra o patrimônio, e 63% por crimes relacionados ao tráfico de drogas (ITTC, 2016).
Nesta mesma face do genocídio antinegro, o Mapa da Violência (2020) diagnosticou que os negros (soma de pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não-negros (soma de brancos, amarelos e indígenas) a taxa foi de 13,9, o que significa que para cada indivíduo não-negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos. Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada com as das mulheres não-negras. A insana guerra às drogas, responsável por estas assombrosas estatísticas, já produziu um desastre social e humanitário no país com mais de 812 mil pessoas privadas de liberdade, outras centenas de milhares de famílias destruídas, milhares de mortos/mortas nos chamados “confrontos” entre policiais e traficantes de drogas, e no aumento das altas taxas de mortes por intervenção policial, especialmente, no número de mulheres e crianças negras nesse contexto. As unidades prisionais e as carceragens das delegacias são verdadeiros “calabouços da tortura” e um dos maiores problemas sociais, culturais e políticos que o país enfrenta. Isso é uma política racializada da morte e a expressão maior do sistema de justiça criminal como a face mais horripilante do “racismo à brasileira”.
Para contextualizar melhor estes dados quero apresentar um exemplo pelas quais as políticas de segurança pública atual, com foco na guerra às drogas e no controle dos corpos das mulheres negras, se articulam e deixa registros importantes sobre a produção racial da delinquência feminina negra. Relato aqui a experiência de Janaína Aparecida Quirino de 36 anos, negra, mãe de oito filhos, que foi presa grávida no dia 11 de novembro de 2017, sob a acusação de tráfico de drogas. No dia 14 de fevereiro de 2018, o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública contra o município de Mococa (SP) para esterilizar Janaína sob a justificativa de que ela seria incapaz de ter controle sob sua sexualidade e que suas práticas apresentavam periculosidade à sociedade. A biopolítica racial de controle de corpos (como o de Janaína) demonstra a produção política de um corpo-abjeto (mulher favelada negra e traficante de drogas) destituído ontologicamente da sua condição de pessoa, cidadã e, no limite, humana. No processo para sua esterilização, ela não consta como vítima, ré ou autora. Ou seja, ela não existe aos olhos da lei. Veja que a ação foi proposta contra o município da sua residência e não contra a pessoa que deveria decidir sobre seu corpo. No entanto, a hipervisibilidade ao seu corpo faz parte da política racializada de combate às drogas, (ou combate aos eleitos inimigos da nação?). Isso demonstra que as mulheres negras são invisibilizadas na garantia de direitos e hipervisíbilizadas na política de punição. Ou seja, mesmo “invisíveis” em uma sociedade racista, elas são hipervigiadas.
Nesse sentido é importante dizer que, em uma sociedade marcada por hierarquias de raça, classe, gênero e sexualidade, (o patriarcado branco é sua principal expressão de poder), as dinâmicas de punições são informadas por uma episteme racial que retroalimentam o imaginário de operadores da justiça que, de forma desigual e intencional, distribuem a morte e a punição. Um exemplo disso é observar as motivações em sentenças de processos criminais de mulheres acusadas de tráfico de drogas. Na pesquisa “Rés negras, juízes brancos” foi possível observar esta perseguição histórica. Em diversas sentenças judiciais analisadas, os magistrados se utilizaram de representações patológicas (traficantes, perigosas, personalidade deformada para o crime), nas suas narrativas judiciais racistas para justificar as punições contra mulheres negras presas (Alves, D. 2017). Investidos destas representações patológicas eles reproduziram e sustentaram um regime de produção de verdades em que os processos criminais foram julgados apenas com testemunhos de policiais. Nestes processos, por exemplo, mulheres perderam a guarda dos seus filhos, os benefícios estatais como bolsa família, além do reforço da etiqueta da estigmatização de serem presidiárias. A punição destas mulheres não se resume, portanto, ao aprisionamento dos seus corpos nas prisões estatais. Além delas perderem as guardas dos seus filhos, estes são jogados à própria sorte em casas de acolhimentos, sistema socioeducativo e albergues, num verdadeiro sistema de “punição invisível”.
A insana guerra às drogas e a perseguição as mulheres negras como Janaína, nos permitem entender que suas prisões, longe de ser motivadas por crimes é devido a sua “temibilidade”. A “temibilidade” de pessoas pobres, racializadas, moradoras de territórios criminalizados, desempregadas, que encontram descompasso com a leniência jurídica a favor de jovens brancos e ricos, envolvidos com o tráfico de drogas ou em casos de corrupção e lavagem de dinheiro, como no caso do Fabrício Queiroz, por exemplo, que teve o privilégio da prisão domiciliar com base na resolução do CNJ 62*. Este direito não foi estendido às mulheres grávidas e lactantes no sistema de justiça pelo país que aguardam julgamento para cumprir pena domiciliar durante a pandemia do novo coronavírus. Nesse sentido podemos perceber como as categorias de opressões operam enquanto fenômenos historicamente determinantes e determinados e se mantem atualizados e reconfigurados na produção de discriminações múltiplas. Foi punida porque é uma mulher negra, pobre, favelada e vítima da política racializada da “guerra às drogas”.
*O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a resolução 62, em que recomenda aos magistrados que reavaliem as penas da população prisional e de adolescentes em medidas socioeducativas, aplicando entre outras medidas, o relaxamento da prisão para cumprimento domiciliar ou concessão de liberdade provisória. Os beneficiários seriam, justamente, o grupo de risco e as pessoas que cometeram crimes sem violência ou grave ameaça.
* Dina Alves é advogada, atriz, feminista negra abolicionista e coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do IBCCRIM.
**O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a resolução 62, em que recomenda aos magistrados que reavaliem as penas da população prisional e de adolescentes em medidas socioeducativas, aplicando entre outras medidas, o relaxamento da prisão para cumprimento domiciliar ou concessão de liberdade provisória. Os beneficiários seriam, justamente, o grupo de risco e as pessoas que cometeram crimes sem violência ou grave ameaça.
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