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Habitar Palavras: Rute Jacob

Quantas vezes enchi e esvaziei minha mala

      A primeira coloquei nela minha profissão, família, casa, carro...

      Meus ombros não aguentavam tanto peso, não me enxergava como ser humano, me desafiava em ser forte quase invencível. Sobrecarregava com sonhos de terceiros.

      Até que um dia fui obrigada a esvaziar a mala. Já acostumada com o peso, senti-me perdida. Esse vazio foi um aprendizado doloroso, não era mais suficiente, uma árvore sem raiz. Por que carregar tanto peso!

      Tudo que era tão importante e significativo tornou-se incompatível com meus sonhos de outrora.

      Assim cada um segue seu caminho e a mala se esvazia.

      O tempo não para, tem seus momentos, às vezes rápido ou vagarosamente, mas não para, e a mala é como o tempo, nos amadurece, e vêm as lembranças de um passado não tão distante, o que fiz dos meus sonhos na tenra idade?

      Chegou o momento de abrir a mala, repensar, amadurecer, não sou máquina, sou um ser humano que precisa resgatar os seus sonhos.

       Desta forma, o tempo trouxe o prazer esquecido. Então me dediquei à pintura, pintei tanto que na casa não já havia lugar nas paredes, e me realizava presenteando meus amigos.

       Em anos dourados, a dança veio preencher mais um lugar na mala, hoje meio descoordenada, me divertia como adolescente na sala, muitas vezes sem ritmo. Na música, me realizava entoando Elis, Lupicínio...

Canto individual, canto coletivo no Sesc, canto nas rodas com amigos.

Ginástica multifuncional. Estava completa: mente, corpo, alma e espírito.

O círculo de amigos se diversificava entre viagens longas e passeios turísticos.

        Estava vivendo uma vida sempre almejada. O prazer de degustar cada momento com amigos. Partilhando sonhos e experiências.

 

Pandemia (um olhar de incertezas e inseguranças)

    Teria eu que esvaziar a mala?

    Colocá-la num canto ou esquecê-la vazia em cima de uma guarda-roupa?

    Toda comunicação falada ou escrita trouxe angústias e incertezas, estamos enfrentando o desconhecido.

    Somos como zumbis, andando sem rumo.

    Teríamos alguma esperança na medicina? Afinal estamos nos século XXI.

    Países da Europa nos traziam notícias devastadoras, mortes assolavam seus países, tudo era muito novo, como combater?

    Presa sem condenação, uma sensação de impotência.

    Havia eu saído de uma cirurgia (câncer de mama). Com esperança de retornar às atividades que tanto me preenchiam.

    Não poderia absorver o pânico. Estava sendo obrigada ao isolamento, à solidão e insegurança.

    Minha mala começa encher com as incertezas do momento crítico que vivemos.

     O desemprego, a fome, a falta de hospitais, aparelhos, medicamentos trazem um olhar desanimador à população e a nós, idosos isolados.

     O calor tão aquecido congelou. E entre quatro paredes tivemos que nos reinventar.

     A tecnologia entra como ferramenta para amenizar as distâncias.

     Famílias se aglomeram em casa. O tempo parece longo demais.

     A ociosidade para alguns se torna um peso, a depressão é outro mal.

     Este é o momento de repensar, aniquilar o mau pensamento.

     Olhar com positividade. O mundo também precisa esvaziar sua mala.

 

Socorro!

    O mundo pediu socorro. Ninguém teve tempo para ouvi-lo.

     Os seres humanos estavam ocupados demais para atender suas súplicas. 

      O corre-corre do dia a dia, a “necessidade” de produzir cada vez mais e a busca frenética no ter.

      A natureza estava aprisionada, o mar se afogando no lixo, as árvores dizimadas, o ar sufocado pela poluição.

      Tempo de esvaziar a mala, silenciar os machados, descansar as águas, limpar o ar.

      Nada é fruto do acaso ou maldição.

       Tempo para refletir, acolher, solidarizar-se com nossos irmãos marginalizados por uma sociedade egoísta.

       Mãos que se doam com amor, abraços virtuais que não esquentam, mas aquecem corações.

        A visão benevolente do amor, colocando-se no lugar do outro.

        Famílias sem tempo, hoje sentam-se a mesa e o diálogo foi restabelecido. Filhos acordam com beijo de seus pais que carinhosamente compartilham os momentos de estudos.

        Os seres humanos estão unidos em suas fragilidades.

        O vizinho que antes não sabia seu nome, hoje é o amigo que nos serve.

        A individualidade que estava congelada derreteu-se aproximando os seres humanos como irmãos filhos do Criador.

        O mal existe e veio para transformar o mundo. Tivemos que nos adaptar a um outro modo de vida. A esperança vem em forma de vacina.

        Mala vazia, vida nova para enchê-la novamente.

 

Sobre o autor

Rute Jacob, nascida em 1950, dedicou boa parte de sua vida à educação, alfabetizando milhares de crianças ao longo de sua carreira. Procurou apresentar o mundo mágico dos livros às crianças, mantendo aí uma relação de muita cumplicidade e paixão pela literatura. Atualmente, se aventura pela escrita, tornando-a ferramenta de criação para novos territórios existenciais frente às dificuldades da vida. Aventura-se também na música e na pintura, acreditando que a relação com a arte torna o mundo mais possível.

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

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