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Ficcção inédita
Mergulho no anteontem

Salim Miguel


Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar
É ele quem me carrega
Como nem fosse levar
(Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho)


Estás chegando. Errado. Estão chegando. Tu e o outro. Faz pouco deixaste-deixaram a Ilha, o trajeto é curto, nem meia hora até o destino. Não querias. Impossível escapar à pressão, o outro é implacável, "já telefonei, ficou de nos esperar, vamos rever a terrinha, recuperar o passado". Inútil argumentar que trazes a terrinha, viva, dentro de ti; melhor ainda, não só a terrinha, mas, intocada, a cidade com seus viventes e tudo o mais que ela comporta. Nem necessitas fechar os olhos e ei-la por inteiro.
O carro avança. Uma curva e te deparas com o Grupo Escolar onde foste alfabetizado. É tua sala, são teus colegas, é a professora perto do quadro negro. Ela bate com uma varinha na mesa, pede silêncio, aponta a varinha em tua direção, diz alteando a voz, "vejam só, chegou aqui ontem, mal sabia uma palavra de português, é turco, agora já sabe falar, ler e escrever mais e melhor do que vocês". Faz uma pausa, te chama e te dá um tinteiro como prêmio. És tomado por um misto de emoção e revolta, procuras conter as lágrimas, foi o tinteiro ou aquele "turco", pois tu és libanês e começas a te sentir brasileiro.
O carro, em busca de onde estacionar, já contornou a pracinha, que é e não é mais a mesma. Perguntas pelo outro. Teu comparsa diz que primeiro precisa se situar e indica o riachinho, ali perto o mictório, mais para a direita a cadeia-delegacia, numa esquina o bar, onde o Gordo, patrício teu, vendia champanhe em copinhos de cachaça, ali perto a igreja.
Será alucinação? Se tudo que tens diante dos olhos se mostra diferente do que era, por que se mantém idêntico o casarão dos Born, com o salão de festas no pavimento superior, o bar em baixo, suas mesas de dominó, o bilhar?
Agora mesmo entraste, é o baile de aniversário do município, as mães sentadas em cadeiras à volta do salão, atentas às filhas, pois existem rapazolas que gostam de se grudar nas meninotas em flor e nunca se sabe se também elas não gostam.
Mal te demoras no salão. Desces, olhas os jogadores no bilhar, as bolinhas rolando num entra-não-entra na caçapa, vais peruar os homens nas mesas de dominó à espera de uma vaga, pedes ao rapaz do balcão que te sirva um conhaque.
Não sabes dançar, mas voltas ao baile. Intervalo da orquestra de Florianópolis; os músicos tomam refrigerante ou uma cervejinha, os crooners, Narciso Lima e Daniel Pinheiro afinam a voz, modulam, preparando-se para atacar uma canção do repertório de Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas... As mocinhas, ao lado das mães, parecem atentas às recomendações: "alguns não merecem confiança, te cuida daquele de cabeleira solta e olhar enviezado, não deves dançar com o de bigodinho retorcido, o de cabelinho raspado é uma peste". Amigos te provocam, "acabei de dançar com aquela lourinha que mora pros teus lados, perto do rio - e o outro bem sabe que tens um xodó por ela -, dei uns apertões, os biquinhos dos seios se grudaram no meu peito", e mais um, "aquela morena gostosona, que veio há pouco de fora, dançamos de rosto colado, ficamos bem no meio do salão, escondidos da fera da mãe dela, dei uma lambidinha na orelha e ela gemeu"...
És arrancado de teus devaneios, o outro te diz que está na hora de ir em busca do outro outro. Relutas. Queres recuperar a remota infância: cadê os banhos de rio, as peladas no campinho, as enchentes, a meninada passeando de bateira pela praça, becos e ruelas, cadê o corpo jamais recuperado, cadê as perigosas brincadeiras, a bateira trombando numa canoa e ambas virando, o quase pânico até atingir um rasinho.
Já no carro, com aquele outro, a conversa se espraia, toma os mais variados rumos - e o veículo também. O primeiro outro, provocador de tudo que está acontecendo, quer chegar até a casa onde morou, vis-à-vis à tua. Nenhuma delas agora existe, contudo ei-las intocadas aqui.
Montado em pêlo no Sultão, mais veloz do que os oitenta cavalos que te trouxeram da Ilha, agarrado a suas crinas, de novo tu, mas a esta altura nem bem sabes qual tu és, sobrepairas a cidade, as vilas, as praias, as roças.
Duas forças em ti se digladiam, por um instante o presente é mais forte. Um dos outros pergunta pela casa, a segunda, mais para perto da ponte, onde moraste. Apontas: "é ali". E a noite te envolve... Estremunhado abres a janela, mal divisas o acampamento de ciganos. A lua parece incidir apenas sobre a ciganinha que se banha nua, numa bacia de alumínio. O corpo esplende, ela se abaixa, massageia a coxa, os miúdos seios se aproximam de tua boca.
O carro acaba de ultrapassar a nova ponte, se dirige para São Miguel, que nunca se conformou em ser mero distrito; antes de chegar à antiga sede do município, reduzida, pelo traçado da BR-101, a uma igreja e a um casarão senhorial, numa elevação à esquerda tu vês a casa do preto velho Ti Adão, sábia e centenária figura mitológica, que de novo repete, "te aprecata, mô fio".
Num restaurante, bem à beira da praia, com o odor de maresia-esperma chegando até vocês, o outro dos três, antes do almoço, pede uma cachacinha e proclama, "ela é que me mantém assim inteiro aos 85 anos".
Pouco adianta insistir no hoje, o ontem e o anteontem são mais fortes, nem necessitam lutar para se impor. O mar, atração permanente; te arriscas, nadas bem, em braçadas firmes, compassadas. É o tranqüilo, verde-azulado mar que te leva; avanças mais. Distantes na praia ou no bar, minúsculos, os outros. Sem nenhum aviso prévio, a cãibra em uma, logo a seguir na outra perna. Não te assustas; boias, esperando que a cãibra se vá. Em vão, ela só faz aumentar. Das pernas, sobe para as coxas. Agora, sim, um início de pânico. Tentas calcular, estás mais perto da praia ou da fortaleza de Anhatomirim, lugar de pavores e assombros. Não há nada em que possas te agarrar. Te esforças, respiras, ergues um braço pedindo socorro, mas qual daquelas longínquas figuras irá ver teu gesto... De novo afundas, e imagens, fragmentos de cenas vividas ou imaginadas, breves como relâmpagos, num tumulto, surgem e somem. Não mais te esforças, nem pensas, ou pensas "bem gostaria de viver mais um pouco".
É hora de findar o interminável almoço e prosseguir na peregrinação em busca da cidade perdida. As cachacinhas funcionaram. Estás-estão lá no alto, de onde mal se ouve o marulhar das ondas e as pessoas são minúsculas borboletas, navegando num céu azul sem nuvens. É bom flutuar assim, é bom entretecer o que foi, o que é, o que será. Pairando a teu lado, Ti Adão, que te sussurra ao ouvido, "te aprecata, mô fio, cuida do que tu diz, já nem sei se sou eu mesmo, o ex-escravo filho de escravos, ou um outro que não te cansas de reinventar". Sorris. Dispensável explicar que tua sina é sonhar e reinventar a realidade.
Necessário pousar. Re-pousar. Tranqüilamente deslizas pelas águas intemporais do Rio Biguaçu, que são sempre as mesmas sendo outras e, destino dos rios, se encaminham inexoravelmente para o mar-oceano.

Salim Miguel é jornalista e autor de Eu e as Corruíras (Florianópolis, Ed. Insular, 2001) entre outros.