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Memória
Joffre Dumazedier, le père de la civilisation du loisir

"O pai da civilização do lazer", anunciou o jornal Le Monde em manchete, comunicando a morte do professor e teórico francês, dia 25 de setembro último, num hospital nos subúrbios de Paris. É uma perda também para o Brasil

Internado pouco antes, os quase 88 anos de idade não resistiram nem lhe concederam uma nova chance, como nos últimos anos em que ele foi constantemente internado. Dumazedier nasceu em 1914, numa família humilde. Perdeu o pai, que mal chegou a conhecer, na tristemente famosa Batalha de Verdun. Sua mãe, além do tirocínio para educar sozinha um filho naqueles anos difíceis, reconheceu os predicados que o levariam ao famoso Lycée Voltaire, no qual se encaminhou para a área de Letras.
Paralelamente, o jovem Dumazedier envolveu-se com o movimento operário francês, tendo sido um dos principais animadores do nascente movimento Auberges de la Jeunesse, ponta-de-lança da parcela do movimento operário que via, no tempo livre crescente, um espaço para a afirmação do direito dos operários ao lazer.
Nos seus depoimentos, não cansava de lembrar que a bolsa conseguida no Lycée Voltaire foi marcante em sua vida não apenas pela porta que se abria como também pelo travo amargo que ficaria: o que aconteceria com seus colegas de infância que, privados de formação, via aos poucos transformarem-se em marceneiros, pedreiros, artesãos, operários?
Esses mesmos deserdados do sistema educacional, ele encontraria alguns anos depois na 2ª Guerra Mundial, entre os milhares engajados na Resistência. Atuou no front das ações e na retaguarda (serviços de meteorologia para informações aos aliados), mas o que lhe interessava mesmo era a formação dos deserdados. Ali ele iniciou o seu método de treinamento mental. O que vai mal? Para que caminho seguir? O que fazer? Que resultado esperar? Tal método, com essas questões centrais, que ele divulgou em diferentes países após a guerra, sob os auspícios da Unesco, foi em 1988 recomendado pela organização como base para a educação de adultos.
Finda a guerra, Dumazedier recusou todas as honrarias e medalhas. Sua formação literária pouco o ajudaria na missão que se lhe afigurava como a mais clara para sua vida: a educação de adultos. Por isso, compreender melhor a realidade foi a ambição que o levou aos Estados Unidos, onde estudou com Lazarsfeld, Katz e David Riesman. Voltando à França, já sociólogo caminhando para a maturidade, iniciou uma ampla sondagem de 20 anos, em Annecy, na tradição americana de estudos em cidades médias, na qual se baseia o seu pensamento e a totalidade de sua produção. Em 1961, publicou Vers une Civilisation du Loisir? (Ed. Seuil, traduzido no Brasil como Lazer e Cultura Popular, pela Perspectiva, em 1974), Sociologie Empyrique du Loisir (Ed. Seuil, traduzido no Brasil, também pela Perspectiva, com o título Sociologia Empírica do Lazer), Société Éducative et Pouvoir Culturel (certamente um de seus mais proféticos livros que, talvez por isso mesmo, teve tão pouco eco) e La Révolution du Temps Libre (Ed. Méridiens-Klinckseck, traduzido no Brasil pela Studio Nobel, em 1995, com o título A Revolução do Tempo Livre).
Na totalidade desses livros, o lazer da população revela-se em toda a sua amplitude e importância. Num tempo livre cada vez maior, em algumas sociedades até maior do que o tempo de trabalho, as pessoas buscam descansar, entreter-se e desenvolver-se por meio de uma ampla e diversificada gama de atividades de lazer, físicas, manuais, intelectuais, artísticas e sociais. Esse lazer, até então visto como inconseqüente e sem expressão, foi mostrado como tempo estratégico para a sociedade e, sobretudo, para a educação dos adultos.
De 1956 a 1990, Dumazedier teve uma importante atividade acadêmica, da qual resultaram a criação da equipe de Loisirs et Modèles Culturels, no Conselho Francês de Pesquisa Científica (CNRS); a criação da cadeira de Sociopédagogie de L'éducation des Adultes, des Loisirs et de L'animation Socioculturelle, na Sorbonne, e do Comitê de Lazer da Associação Internacional de Sociologia. Não contente com isso, como intelectual que integra organicamente reflexão e ação, empenhou-se na afirmação do movimento do lazer - criou e dirigiu durante 22 anos a florescente associação Peuple et Culture - e da animação cultural em diferentes países.
O Brasil marcou muito sua vida. Aqui veio, em 1960, no primeiro governo Arraes, para divulgar seu método de treinamento mental, tendo então como aluno aplicado alguém que aperfeiçoaria a sua ferramenta e a transformaria em método de alfabetização de adultos, o nosso saudoso Paulo Freire. Voltou no final da década de 1970, a convite do Sesc de São Paulo, organização que tomou como referência no Brasil. Ele via no Sesc o formato institucional mais adequado em qualquer sociedade para atuar educativamente no campo do lazer, já que, para ele, apenas uma organização privada, sem fins lucrativos, reunia as condições de credibilidade para a missão.
No Sesc de São Paulo, por longos oito anos, dirigiu seminários; formou profissionais (aqui no Brasil e na Universidade René Descartes, em Paris); estimulou a programação; auxiliou na estruturação do centro de estudos do lazer e do tempo livre, de uma linha de publicações; assessorou uma ampla pesquisa sobre práticas culturais no tempo livre na cidade (então média) de Americana, que pudesse oferecer um contraponto aos resultados que vinha obtendo em Annecy.
Sua generosidade intelectual era bastante conhecida. Afrontou sem êxito o conservadorismo sociológico em favor da aceitação das idéias controvertidas de Michel Maffesoli, o, como ele gostava de chamar, nouveau sociologue, que desvelava uma metodologia extraordinária para o estudo do lazer e da vida cotidianos em contraponto ao épico da ação econômica e política. Via nos novos que chegavam a certeza da continuidade do seu trabalho. Daí seu empenho na formação de alunos e, sobretudo, de formadores, o melhor caminho para, segundo ele, compor um sistema de educação não-formal, que preenchesse os inevitáveis vazios e mazelas da educação formal.