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Entrevista
Pierre Lévy

Em entrevista realizada antes de sua conferência no Sesc Vila Mariana, o professor fala das limitações da propriedade intelectual, critica as visões catastrofistas em relação à Internet e afirma que a sociedade deve centrar esforços na direção da cooperação

O filósofo e escritor Pierre Lévy é considerado uma das principais referências da cibercultura na atualidade. Combinando uma formação humanística com experiências na área de tecnologia, é uma voz dissonante frente ao catastrofismo pregado pela intelectualidade francesa e por grande parte da comunidade acadêmica mundial em relação à crescente 'virtualização do cotidiano'. "Para mim, o papel dos intelectuais não é o de amedrontar o público ou criticar a realidade. O que podemos fazer é encorajar o máximo de pessoas a engajar-se em práticas emancipatórias", defende. Professor na Universidade de Ottawa, no Canadá, Lévy é autor de obras fundamentais para se compreender as questões implicadas com o surgimento da rede mundial de computadores, como O que é o Virtual (1996) e Cibercultura (1997), ambas lançadas no Brasil. Em seu último livro, Cyberdemocratie, ainda não traduzido para o português, o filósofo mapeia diversas experiências políticas, atividades militantes e comunidades virtuais na Internet que, a seu ver, promovem o desenvolvimento social e político do mundo contemporâneo. No final de agosto, o escritor realizou uma conferência no Sesc Vila Mariana, intitulada Internet e Desenvolvimento Humano. A seguir, trechos da entrevista realizada antes do evento.

O senhor acredita em uma evolução cultural que culminou na Internet?
Estou convencido de que há, de um modo geral, uma evolução cultural, que essa evolução cultural está intimamente ligada à história das formas de comunicação e que, por exemplo, um grande momento na história da humanidade foi a invenção da escrita. Bem, é um progresso positivo, nada mais. Todas as grandes civilizações que adotaram a escrita, como o Egito antigo, a Mesopotâmia, a China, tiveram nesse momento um grande crescimento demográfico. Quando se inventou o alfabeto, que é uma forma particular da escrita, foi possível colocá-la ao alcance de um maior número de pessoas. E isso também é um progresso. Possibilitou-se, por exemplo, a invenção da democracia; possibilitou-se a invenção de uma forma nova de conhecimento mais universal. Os gregos, que inventaram a geometria demonstrativa, utilizavam o alfabeto. As grandes religiões universais estão baseadas em textos alfabéticos. A etapa seguinte nessa história do progresso cultural foi a invenção da imprensa, que permitiu, evidentemente, a expansão do conhecimento e fez com que as pessoas tivessem acesso a saberes muito antigos ou distantes. Por meio da imprensa, pôde-se criar o jornal. Portanto, não haveria jornais se não houvesse imprensa; não haveria opinião pública; não haveria espaço público para discussão etc.

O senhor se considera um otimista em relação ao nosso atual estágio?
Atualmente estamos vivendo uma nova etapa dessa evolução cultural, que é o ciberespaço. Ele possibilita ainda mais a comunicação, uma comunicação mais interativa, mais global, de acesso a mais informação, e, sobretudo, uma comunicação direta entre as pessoas em nível mundial - evidentemente com todas as limitações provenientes das línguas, mas assim mesmo muito maior do que se não a tivéssemos. É nesse sentido que eu sou otimista. Isso não quer dizer, evidentemente, que a Internet resolve todos os problemas. Seria uma insensatez fazer tal afirmação. Ela cria novos problemas, mas são problemas que têm um nível de complexidade e de desenvolvimento mais elevados.

A diferença social no acesso à rede é um deles?
Há diferença social em todas as sociedades. A única coisa que se pode fazer é tornar essa divisão menos desumana. Trabalhar para reduzir a miséria, trabalhar para elevar o nível da educação. É um processo de longuíssimo prazo, que se estende por várias gerações. Como se sabe, a miséria é também uma cultura, ela se transmite. Portanto, é um trabalho de base que exige muita paciência. Não existe solução milagrosa. Todos devem trabalhar de acordo com suas funções. Os professores têm muito a fazer. Os políticos têm um trabalho essencial, que é fazer leis que favoreçam o desenvolvimento social. Os empresários também têm um trabalho muito importante. É algo que deve mobilizar o conjunto da sociedade através de uma abordagem cooperativa, mais do que uma abordagem de guerra social. Tanto de um lado como de outro. Esse é meu ponto de vista.

Como o senhor vê a questão da exclusão digital? Há alguns meses uma pesquisa revelou que apenas 17% das escolas brasileiras possuem computador e somente 7% têm acesso à Internet.
Há dez anos, a web nem existia. A Internet existia, mas menos de 1% da população a utilizava - professores universitários na Europa, nos Estados Unidos etc. Não era um fenômeno social mundial. Há países que estão mais adiantados que outros, mas o movimento tende a se alargar. Que apenas 7% das escolas estejam ligadas à Internet não quer dizer grande coisa. Há dez anos não havia nenhuma. O que conta é a evolução, é o movimento, a tendência. Claro, é preciso trabalhar para que daqui a dois anos sejam 25% e daqui a cinco anos talvez 30%. Não se pode transformar uma realidade social de uma forma mágica ou automática. Custa caro, exige esforços de formação, exige mudança de mentalidade e transformações institucionais.

O senhor considera a Internet a principal entrada para a comunidade do saber?
Sim, desde que as pessoas que participam dessas comunidades tenham as ferramentas intelectuais de base. Não se deve esquecer que a Internet não tem nenhum interesse se você não souber ler nem escrever. Não basta saber decifrar um texto, mas compreendê-lo; saber formular um problema e procurar a informação para resolvê-lo na Internet. Se você não souber formular um problema, mesmo se você souber procurar a informação, a pesquisa é menos útil. Portanto, tudo isso requer um desenvolvimento intelectual. Isto é, a Internet é a porta de entrada, é um suporte, um meio, mas requer aprendizados que devem ser adquiridos individualmente - mesmo a capacidade de cooperar com os outros, de dialogar, de trocar conhecimentos. Esta nova civilização da inteligência coletiva passa por um esforço individual.

Como o senhor acha que a propriedade intelectual se insere no universo da Internet?
Devemos tentar observar o que realmente está acontecendo. As possibilidades de acesso gratuito a uma informação de boa qualidade nunca foram tão grandes e estão crescendo continuamente porque as universidades, os museus e as instituições culturais colocam uma enorme quantidade de material on-line. Existe sim a questão da propriedade intelectual, mas se deve considerar que, se nos colocarmos na perspectiva do desenvolvimento do acesso ao conhecimento, a propriedade intelectual hoje em dia não é um grande obstáculo. Se a questão é ter música de graça é outra coisa. Eu penso que a propriedade intelectual é, em geral, uma coisa boa porque ela protege e, sobretudo, incentiva as pessoas que criam novas idéias, sejam elas idéias artísticas ou técnicas - não importa. Não se deve esquecer que é impossível ter a propriedade intelectual de uma idéia abstrata. Portanto, todas as idéias abstratas são propriedade comum por definição. As idéias científicas e todas as idéias concretas, os textos, as músicas, as imagens ou mesmo os programas informáticos, são apropriadas, tornam-se propriedades públicas depois de um certo tempo, por definição.
A propriedade intelectual é algo bem limitado. E mesmo no caso em que há propriedade intelectual, é preciso distinguir muito bem a situação em que o proprietário da idéia é um pesquisador, um artista ou alguém que trabalha por conta própria. Um músico, por exemplo: se ele possui os direitos, dificilmente será contra a propriedade intelectual. E há também o caso muito particular das grandes multinacionais do disco e do cinema, que controlam uma parte bem específica do patrimônio de idéias da humanidade.

Esses problemas envolvem, portanto, questões jurídicas. Como determinar se isso vai ser um campo jurídico diferenciado?
Como se trata de uma rede mundial, num dado momento vamos ser obrigados a chegar a uma jurisdição mundial sobre esses problemas. E, claro, hoje existem cada vez mais acordos para se chegar a esse ponto. Hoje ainda há direitos conflitantes, mas estamos progressivamente caminhando para uma situação de harmonização dessa questão jurídica. Não se deve esquecer, porém, que o direito são apenas as regras do jogo, e que há muitas maneiras de participar de um jogo respeitando suas regras. Se nós observarmos os programas livres, eles respeitam perfeitamente as regras da propriedade intelectual. Podemos imaginar uma cooperativa de músicos que fazem um acordo entre eles, que dizem que todos podem utilizar as músicas uns dos outros. É preciso, portanto, distinguir bem o direito e o modo de utilizá-lo. Eu creio que a inovação está sobretudo nesse segundo ponto; e também que há muitas maneiras de mutualizar a criação respeitando perfeitamente as regras do direito. Ninguém é obrigado a ceder os direitos a uma grande empresa, ou a música, ou as imagens. Portanto, é necessária uma evolução cultural, e é uma evolução onde cada um seja responsável pelo que faz.

Após um certo deslumbre com as possibilidades da internet nos anos de 1990, a rede parece padecer de uma certa crise, ao menos no aspecto econômico. Como o senhor vê essa questão?
Bem, a economia é um fenômeno cíclico. Quando se fala em economia, há altos e baixos. Quando há um novo setor, há um boom de investimentos. Basta surgir um novo mercado que se passa a investir. Muitas vezes há mais investimentos do que é necessário. Assim, estabelece-se uma seleção natural, cria-se um ciclo. Não é pela razão de estarmos na fase baixa do ciclo que o setor não existe mais, é apenas uma fase que tende a subir, descer e subir novamente. Pessoalmente eu me situo em uma escala antropológica, não em uma escala conjuntural. Meu interesse científico e filosófico me leva a temas que são universais, não só no espaço, mas também no tempo, com tendências longas.

A que você credita uma certa resistência dos intelectuais em relação à Internet?
O que são os intelectuais? Pessoas que escrevem nos jornais, que publicam livros, que falam na televisão... Com a Internet, todo o mundo pode publicar. Todos podem construir seu site. Portanto, eles perdem o privilégio da publicação. É uma questão de interesse. Como poderíamos dizer, é um universo cultural que desaba quando somos os privilegiados de um sistema ameaçado. Evidentemente quando estamos nessa situação temos menos tendência a ver o que está nascendo. O que estou tentando fazer é olhar mais para isso. O que me interessa é que, em todo caso, estou mais inclinado a uma cultura que coloca a inteligência coletiva ou a cooperação intelectual como um de seus valores centrais.

A busca da qualidade da informação, da veracidade, inclui-se entre essas metas?
Isso, evidentemente, resulta de um processo de procura coletiva. Por exemplo, a verdade mais prestigiosa, que é a verdade científica, resulta do trabalho da comunidade científica. Alguns levantam hipóteses, outros procuram testar essas hipóteses. Dizemos: "não, sua hipótese não é boa". Procuramos outras hipóteses. Há um progresso constante e também uma concorrência constante entre diferentes pontos de vista, diferentes teorias. Se não houvesse essa concorrência, se houvesse, por exemplo, uma situação onde uma coisa é verdadeira porque a autoridade disse que é verdade, teríamos bem menos chance de encontrar, de melhorar a verdade.

O senhor acredita então que a resistência dos intelectuais é apenas fruto de um oportunismo?
Eu procuro sempre ver as coisas de um ponto de vista pragmático. Isto é para mim o papel dos intelectuais, que não é o de amedrontar o público ou criticar a realidade. A realidade é a realidade. Em contrapartida, o que podemos fazer é encorajar o máximo de pessoas a engajar-se em atividades, em práticas emancipatórias. Assim, nessa perspectiva, eu acredito que os melhores usos possíveis da internet são aqueles que devemos praticar. Isto é, a Internet é um movimento geral e se encaminha para uma maior liberdade de expressão. Há realmente mais liberdade de expressão e deve-se continuar nessa direção. Meu problema é em qual direção focalizar os esforços. Acredito na direção da iniciativa, da autonomia, da liberdade, da cooperação, do diálogo. Como a Internet oferece maiores possibilidades nessa direção, é preciso aproveitá-la. Esse é o meu ponto de vista. As coisas mais horríveis podem ocorrer, é claro. Quanto mais se trabalhar na direção contrária, menores serão as chances de que essas coisas ocorram.