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O traço simples

Em sua sexta edição, a Bienal Naïfs do Brasil, realizada pelo Sesc em Piracicaba, consagra-se como o melhor painel do gênero na América Latina e dedica um módulo à obra de José Antônio da Silva, um dos artistas ingênuos mais respeitados no País e no exterior

Segundo romantizam os entendedores do estilo, a arte naïf existe desde o início dos tempos. Data da era em que o homem sentiu necessidade de criar espontaneamente, de registrar em imagens uma narrativa imediata de seu entorno e de seu cotidiano.
A designação surgiu bem depois: a história registra que o nome naïf (do francês, cujo significado é ingênuo) foi dado no Salão dos Independentes, em Paris, no final do século 19, numa referência direta à liberdade e ao descompromisso com que as cores e os traços tomavam a tela, desrespeitando escolas e tradições. Conta-se que o primeiro pintor naïf teria sido o francês Henri Rousseau, rejeitado pelos acadêmicos de sua época por não seguir as tais normas da pintura. No Brasil, embora se considere Cardosinho como o precursor dessa arte, o primeiro artista a ter significativo foi Heitor dos Prazeres, em 1951. Participou da primeira Bienal de Artes de São Paulo e também expôs na edição seguinte, em 1953. Outros nomes surgiram nesse período, como Cardosinho, Silvia de Leon Chalreo e José Antônio da Silva.
Mais tarde, já na década de 1970, ocorreu uma verdadeira explosão de pintores naïf brasileiros, com o surgimento de Waldomiro de Deus, Iracema Ardite, Agostinho Batista de Freitas, Maria Auxiliadora, Ivonaldo, Isabel de Jesus, Gerson Alves de Souza, Elza Oliveira de Souza, Crisaldo de Moraes, entre outros. "Esses artistas criavam sem nunca terem freqüentado uma aula de arte", explica Ricardo Puerta, arte-educador e professor da Faculdade de Belas-Artes de São Paulo. "Eles não possuíam referência alguma sobre as escolas artísticas do mundo e estavam alheios a quaisquer regras acadêmicas básicas do desenho e da pintura."
Conhecido também como primitivo moderno, o gênero é, segundo o professor, uma manifestação simples feita por pessoas igualmente simples e em geral retrata o universo rural. Exatamente por essas características, o Brasil é um terreno fértil para a sedimentação do estilo. Um bom exemplo dessa inclinação natural é o artista José Antônio da Silva. Considerado o maior naïf do País, ele é reconhecido e respeitado também no exterior; um verdadeiro contraste para quem foi criado de pés descalços na roça, capinando em sítios da região de Rio Preto, interior de São Paulo, semi-analfabeto e filho de gente humilde.

Estilo próprio
Porém, Jacques Ardies, proprietário de uma galeria especializada nessa arte, e autor do livro Arte Naïf no Brasil, juntamente com o crítico Geraldo Edson de Andrade, ressaltam que o cunho de arte simples dado ao estilo não necessariamente se refere à falta de instrução de seus artistas. "Muitos artistas naïf cursaram universidade, só que em outras áreas, e podem perfeitamente morar em centros urbanos", esclarece. "Só que escolheram não fazer faculdade de Artes, aprendendo na prática, pintando todos os dias, mostrando o que lhes é mais importante dentro do próprio universo e expressando suas emoções." É assim, segundo o galerista e autor, que esses artistas conseguem "contornar as dificuldades técnicas" e criar seu próprio estilo. É o caso da artista Ana Maria Dias que diz "Cursei um pouco da faculdade de Sociologia e de Educação Física, mas deixei os cursos porque queria me dedicar à pintura", conta. "Eu poderia ter cursado uma faculdade na área de artes, mas simplesmente não senti necessidade."
De acordo com Jacques Ardies, a produção brasileira é muito observada no cenário mundial de artes. "Porém, não porque seu povo seja simples, não possui referências artísticas ou coisas assim", destaca. "Mas pela própria sensibilidade do povo e nossa inclinação para as artes", ressalta.

O mercado
Na Galeria Ardies, hoje, é possível adquirir um quadro por um valor que varia de 2 a 3 mil reais, o que é considerado acessível em matéria de obra de arte. Mesmo assim, a galeria possui cerca de 70% de sua clientela composta de visitantes estrangeiros e personalidades nacionais, cujas identidades o galerista prefere não revelar.
Outro ponto paulistano do estilo é a Galeria Arte Brasileira, criada há 80 anos e desde então passada de pai para filho. "Somos os pioneiros em arte naïf", garante a proprietária Célia Gomes. A galeria divide o espaço entre naïf e arte popular em geral, de vários Estados brasileiros. Estão disponíveis na loja, em média, 40 quadros do gênero. Lá, um naïf custa de 90 reais (um pequeno, de 12 x 30 cm) a 3 mil reais (tamanhos maiores). "Já trabalhei com artistas como Waldomiro de Deus, Dalva de Magalhães e Alcidez", orgulha-se Célia.
Embora algumas galerias estejam se encarregando de introduzir a arte naïf às camadas mais altas da sociedade, as feiras e calçadas continuam sendo o grande pólo gerador de novos nomes. Na feira de artesanato que acontece aos fins de semana na cidade de Embu das Artes, a cerca de 40 km de São Paulo, é tarefa simples encontrar quadros do gênero. Só na praça central, local onde ocorre a feira, quatro artistas expõem regularmente. "Nasci em São Paulo, moro em Taboão da Serra, mas pinto praias e paisagens do Nordeste brasileiro", conta o artista Lúcio Alves Feitosa, um dos expositores da praça. "É o tipo de desenho que os compradores procuram." As obras de Lúcio custam entre 30 e 700 reais e parecem ter sido feitos por quem possui enorme intimidade com os lugares retratados. "Não copio de fotos", ressalta. "Só imagino como deve ser." Para não fugir à regra, 80% de sua clientela é composta de estrangeiros. Outro paulistano naïf, expositor em Embu desde 1975, é Márcio Vanni, que também retrata outros Estados do País, mas prefere viajar antes para conhecer os lugares e só depois reproduzir suas paisagens. "Já fomos muitos aqui na praça, mas alguns desistiram", lamenta. "Sabe como é, né? É muito difícil fazer arte no Brasil."
Mas o bucolismo de uma paisagem do interior ou o ar paradisíaco de uma praia do Nordeste não são os únicos temas dos artistas. Rodolpho Tamanini é um paulistano do bairro de Pinheiros que tem a metrópole como sua grande inspiração. Suas obras focam os principais edifícios da capital paulista. Além da imagem, as pinturas trazem um pequeno histórico de cada local, com os nomes dos arquitetos responsáveis, data de construção, entre outras informações. Assim, é possível apreciar em estilo naïf imagens do famoso edifício Copan, do estádio do Pacaembu, da Catedral da Sé, além de outros pontos históricos e famosos da paulicéia. "Eu sempre conversava com pessoas que viajavam para o exterior e voltavam contando a história do Coliseu e vários pontos importantes do mundo. E ficava pensando: 'Mas você conhece a história da igreja da Consolação?'", conta ele. Foi quando Tamanini teve a idéia de fazer essas obras em especial. "Foi um pouco antes do aniversário de 444 anos da cidade", diz.

A Bienal de Piracicaba
Sustentando o propósito de valorizar e revelar o que de mais significativo está sendo realizado pelos artistas naïf brasileiros, será inaugurada em 22 de novembro a sexta edição da Bienal Naïf do Brasil, realizada pelo Sesc. A mostra segue até 9 de março de 2003 e conta com um total de 160 obras expostas, divididas em quatro módulos. "Desde que o evento atigiu maior amplitude e grande repercução, temos procurado privilegiar trabalhos que possuam maior originalidade e criatividade apresentadas pelos autores", conta Antonio do Nascimento, técnico da unidade e curador da Bienal. "Por ser uma mostra aberta com número expressivo de artistas inscritos, as obras passam por processo de seleção com critérios definidos para recusar as que foram produzidas como se o artista estivesse seguindo uma receita ou fórmula que descobriu para pintar. Muitas obras com técnica apurada, nem sempre vem acompanhadas das qualidades inerenesda arte ingênua", esclarece Nascimento.
A edição desse ano contabilizou 204 artistas inscritos, com 408 obras vindas de 19 Estados brasileiros. O júri escolheu 43 deles, totalizando 70 obras, de 15 Estados. "Coloridas, algumas alegres e comunicativas, grande parte dos trabalhos apresentados ao Sesc recebeu muita atenção do júri", completa a crítica de arte e participante do júri, Radha Abramo. "Tanto pela solução artística dada à execução das obras como pelas idéias que elas transmitem."
Lélia Coelho Frota, escritora, antropóloga e crítica de arte afirma: "como membro do juri da edição 2002, foi uma satisfação constatar a abertura de oportunidades para o melhor conhecimento do trabalho dos artistas. Para citarmos um só exemplo, Carlos Alberto Oliveira, que está a autura dos demais aqui mencionados". "Quando a gente acha que já não tem mais muita coisa para fazer na vida, receber um prêmio como esse traz muita felicidade", conta Juracy Mello, 62 anos, moradora de Campo Grande (MS), artista premiada pelo conjunto das obras, com os quadros Fazenda Bonsucesso I e II. "Devo ter recebido o prêmio porque meu trabalho é muito cheio de detalhes. Nos desenhos dos quadros tem tudo o que tem numa fazenda mesmo: cachorro, papagaio, gato, peru, periquito... Levei um mês para fazer um deles e 20 dias para fazer o outro", explica dona Juracy.


Bienal homenageia grandes artistas
Além do módulo Selecionados, a bienal está dividida em três outros especiais: Mestres de Ontem e de Hoje, Eliza Mello e José Antônio da Silva. Nessas seções da mostra serão expostas obras de famosos artistas naïf, cujos trabalhos tornaram-se referência no gênero.
As telas foram garimpadas nos acervos do Museu de Arte Primitivista José Antônio da Silva, em São José do Rio Preto; do Museu de Arte Primitiva José Nazareno Mimessi, em Assis; do Museu do Sol, de Penápolis, além de coleções particulares.
O evento contará ainda com uma programação paralela de teatro adulto e infantil, espetáculos de dança, oficinas e workshops, palestras e depoimentos de artistas premiados e de curadores dos museus, além de um show de Inezita Barroso, Mazinho Quevedo, Renato Teixeira e Pena Branca (acompanhe a programação completa no Em Cartaz).