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Tecelagens, rendas, costuras e bordados
Inaugurada dia 15 de outubro, no Sesc Vila Mariana, a exposição EntreMeadas propõe uma imersão no universo da artesania brasileira e reúne um conjunto variado de técnicas tradicionais e iniciativas contemporâneas. Com curadoria da jornalista e historiadora do design Adélia Borges, a mostra valoriza a pluralidade da cultura material e imaterial do país e repensa o lugar do artesanato nos dias atuais, ao percebê-lo enquanto um possível agente de transformação econômica e emancipação social.
Em vez de reforçar a tradição da cultura popular de localidades emblemáticas na produção de manufaturas – como a região mineira ou a nordestina –, EntreMeadas volta-se à região do Estado de São Paulo, lançando luz sobre as produções de tecidos, cestarias, adereços corporais e objetos decorativos que têm fortalecido as cadeias produtivas de diferentes comunidades e contribuído com o desenvolvimento regional por meio do artesanato. A partir de um levantamento de pesquisa e de mapeamento de mestras, artesãs e coletivos de diversas localidades paulistanas, a mostra traz à tona saberes ligados à fatura de rendas, bordados, tramas e tecelagens que emergem na região de maior industrialização do país.
Nesse sentido, o projeto curatorial invoca um interessante antagonismo entre a temporalidade do fazer artesanal (e seus procedimentos técnicos) e toda a velocidade e otimização dos sistemas produtivos fabris e mecanizados. Mas ao invés de assinalar esses ofícios manuais via uma perspectiva arcaica – de pensar a atividade do artesanato como um fazer distante das lógicas modernas –, a exposição sugere um campo de produção que converge com as demandas da atualidade socioeconômica. Assim, entre um universo de técnicas populares, de memórias pessoais e coletivas e de patrimônios vivos da identidade cultural do Brasil, incluem-se também projetos ligados ao âmbito do empreendedorismo criativo, responsáveis por viabilizar melhoria de renda e condições de autonomia financeira para grupos comunitários.
E o lugar da mulher se transforma frente a esse cenário. Se historicamente a práxis manual reforçava o imaginário social que associava a mulher ao espaço doméstico, hoje podemos anotar o transbordamento dessa prática, já que ela ultrapassa os limites da esfera privada, atingindo o campo social. As dinâmicas de coletividade que sempre acompanharam esses trabalhos deslocam-se do ambiente familiar e alcançam novas conformações por meio da estruturação de sedes de trabalho e da organização de agremiações e corporações, o que revela, consequentemente, instâncias de colaboração, compartilhamento e politização. Desse modo, as tarefas manuais passam a ocupar um papel significativo no processo de autonomia do universo feminino, contribuindo com a profissionalização.
Além do mais, observa-se a atuação de coletivos ligados ao espaço urbano como nas Bordadeiras do Jardim Conceição, situadas em Osasco, ou no grupo Piradas no Ponto, reunido em São Paulo, no Parque Trianon. A prática artesanal se faz presente também em instituições públicas como na Cooperativa Lili, que aproxima mulheres da Penitenciária Feminina II de Tremembé, evidenciando esforços na comercialização de produtos e de geração de renda.
Vale ainda assinalar uma forte ligação entre atividade artesanal e entorno natural. Percebe-se o aproveitamento de recursos locais, como no trabalho das artesãs dos quilombos Ivaporunduva e Sapatu, em Eldorado, que fazem uso da plantação de banana, ou no coletivo Arte e Vida, no Vale do Ribeira, que tem utilizado espécies nativas de milho como fonte para tingimentos e colorações.
Além de homenagear e defender a visibilidade das produções desses coletivos e mestras artesãs, a exposição busca mostrar a qualidade de suas produções. Entre a complexidade da cultura têxtil, a delicadeza de rendas e bordados, a tessitura de tramas e trançados, EntreMeadas oferece acesso a um amplo conjunto de trabalhos autorais que evidenciam o caráter plural e primoroso das técnicas que configuram a produção popular.
Assim, a proposta de Adélia Borges atua como tributo a essas tradições identitárias locais, ao mesmo tempo em que as apresenta em um processo de revisão e atualização frente à urgência dos tempos atuais. Por fim, ao propiciar um contato com o domínio de experimentação de fios, rendas, linhas e fibras, a exposição sublinha a resistência de um campo de atuação, ainda marginalizado por instâncias mercadológicas hegemônicas, mas que reivindica seu espaço, ao mesmo tempo em que começa a conquistar políticas de reconhecimento e sua consequente valoração.