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Um ano em obras
Quem passa apressado por uma unidade do Sesc São Paulo – na capital, no litoral ou no interior – talvez não note as crianças tomando sorvete, o casal lendo jornal, o pessoal praticando vôlei ou as turmas de sempre jogando conversa fora. Pare. Tome fôlego. Repare o espaço que acolhe o seu corpo, observe os horizontes revelados pelo partido arquitetônico. A cada esquina, parede – ou bem no meio do caminho, você pode se deparar com uma obra da coleção permanente da instituição – trabalhos de artistas nacionais, modernos e contemporâneos, incorporados ao Acervo Sesc de Arte Brasileira por meio de aquisições e doações.
Às vezes, é justamente quando a equipe responsável pela gestão dessa coleção remove uma peça do lugar que um sentimento de vazio se faz presente. Mas o que preenchia mesmo esse pedaço da área de convivência? Tem algo de diferente por aqui… Uma peça pode não estar mais onde "sempre" esteve por alguns motivos: Pode estar emprestada a uma exposição, por exemplo; pode ter ido passar por algum tipo de restauro; ou simplesmente ter mudado de unidade ou de localização dentro da mesma unidade – sempre com o objetivo de proporcionar as melhores condições para um adequado diálogo da obra tanto com o espaço quanto, fundamentalmente, com as pessoas.
Reflexo D’Água (1997), de Tomie Ohtake, ainda em 2018, no Sesc Vila Mariana | Foto: Everton Ballardin
O ano de 2018 termina em meio a um processo bastante importante de refação (do ato de refazer mesmo) do Reflexo D’Água (1997), o painel de Tomie Ohtake (1913-2015) sobre as paredes da área da piscina do Sesc Vila Mariana. A obra da artista plástica japonesa naturalizada brasileira está na unidade desde sua abertura, em 1997. A atual reforma no complexo ofereceu a oportunidade perfeita para conduzir a necessária substituição das linhas de ferro do painel. E o resultado poderá ser visto já no final de janeiro próximo.
Reconstruir determinadas obras não é algo estranho ao universo das artes. O projeto elaborado por Ohtake, o desenho das curvas da instalação, guarda essencialmente a obra da artista. A fatura (do ato de fazer mesmo) de Tomie Ohtake, nesse caso, está na concepção (no plano intelectual e estético) e não necessariamente na materialidade das peças. Portanto, não deve causar espanto a reconstituição do painel – a obra permanece. É de se pensar, no entanto, se o mesmo poderia ser dito, por exemplo, quanto às muito particulares pinceladas de tinta de um pintor sobre sua tela.
No alto, os pivôs de Artur Lescher, na entrada do Sesc Avenida Paulista | Foto: Carol Vidal
O ano que fica para trás foi também o ano da inauguração da novo Sesc Avenida Paulista. O dia 29 de abril de 2018, data da abertura da unidade, foi precedido de meses e meses de elaboração do que seria esse novo equipamento da ação socioeducativa do Sesc na capital. Pensou-se programação, arquitetura dos espaços, mobiliário, aparatos, dinâmicas, pessoas e… obras de arte. A coleção selecionada para o Sesc Avenida Paulista, como em todo o estado, faz parte da ação educativa da instituição em artes visuais.
Na unidade, o visitante é recebido, logo no térreo, pelos pivôs dourados flutuantes de Artur Lescher (1962), colocando a gravidade em suspeição, mas só por alguns instantes. A solidez do Astronauta (2015) de Erika Verzutti (1971) sugere outros percursos. E é percorrendo os corredores e andares – sim, até o famigerado mirante e as silhuetas de garrafas de vinagre serigrafadas em preto sobre placas de fibrocimento, da artista multimídia Dora Longo Bahia (1961) – que cruzamos diariamente também com obras de Waldemar Cordeiro (1925-1973), de Elida Tessler (1961) e de tantas outras figuras da arte brasileira.
Detalhe do objeto cinético de Palatnik, na mostra Maquinações (Sesc Carmo) | Foto: Alexandre Nunis
No 8º andar da unidade, na recepção da Odontologia, até pouco tempo atrás, aguardava, equilibradamente, junto aos demais pacientes, o curioso Objeto Cinético KK-7 (1966/2007), uma escultura eletromecânica de Abraham Palatnik (1928). Está tudo bem com a obra, podem ficar tranquilos! A ausência da peça no local é temporária – e por uma boa causa. Desde o final de novembro, ela compõe a mostra Maquinações, no Sesc Carmo, e poderá ser observada no espaço expositivo dessa unidade até 15 de fevereiro de 2019.
Na verdade, é bastante comum o intercâmbio e o empréstimo de obras de arte entre coleções de instituições distintas – de países distantes, muitas vezes – e até de coleções particulares para a montagem de exposições. Uma exposição de arte (sobre a obra de Lasar Segall, por exemplo, no Sesc 24 de Maio), graças ao recorte da curadoria e a parceria de acervos distintos, oferece a oportunidade de se ter reunidas, num único espaço, ainda que somente por alguns meses, obras que passam a maior parte do tempo fisicamente separadas – como membros de uma grande família que se reúnem somente nas festas de fim de ano ou em ocasiões extraordinárias.
Na entrada da exposição Lasar Segall: Ensaio sobre a cor, no Sesc 24 de Maio, a obra Figura de Mulher | Foto: Alberto S. Cerri
À exposição Lasar Segall: Ensaio sobre a cor (Sesc 24 de Maio), o Acervo Sesc de Arte Brasileira contribui com a Figura de Mulher (1911), logo na entrada do espaço, no 5ª andar da unidade. A pintura do artista de origem lituana (1899-1957) faz parte da coleção da instituição desde o final dos anos 70.
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Ao longo de 2018, obras do acervo permanente do Sesc São Paulo circularam entre unidades para comporem uma porção de mostras de artes visuais. A Mulata (1974) de Di Cavalcanti (1897-1976), por exemplo, está, desde o dia 1º de dezembro, no Sesc São Caetano, na atual edição do projeto Obra em Foco. Entre agosto e outubro, o Sesc Ribeirão Preto reuniu gravuras do acervo, normalmente alocadas em diferentes unidades do estado, para a mostra Gravado, uma exposição de trabalhos realizados a partir da década de 70 por artistas como Alex Fleming, Athos Bulcão, Maria Bonomi, Alfredo Volpi, Tomie Ohtake e muitos outros.
À Fundación Juan March, de Madrid, na Espanha, foi emprestado o Bar Novo (s/d) do Mestre Molina (1917-1998). Muitas das geringonças de Manuel Josette Molina nasceram nas oficinas do Sesc Pompeia e hoje fazem parte do acervo do Sesc. A bancada que cruzou o Atlântico compõe, até 13 de janeiro de 2019, a exposição Lina Bo Bardi: tupí or not tupí. Brasil, 1946-1992.
Máquina de Escrever (1949), de Geraldo de Barros | Foto: Everton Ballardin
Até outubro de 2019, o Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP apresenta Ecos Mecânicos: A máquina de escrever e a prática artística, uma mostra que investiga o emprego das saudosas máquinas de escrever em produções artísticas. Na coleção do Sesc São Paulo, há algumas séries fotográficas de Geraldo de Barros (1923-1998), entre elas, a obra Máquina de Escrever (1949), uma superposição de imagens em um único fotograma, realizada em homenagem ao radialista Homero Silva (1918-1981). A pedido do MAC-USP, a fotografia lhes foi emprestada no final de 2018 para o período da exposição.
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Há situações também em que artistas são convidados a produzirem obras especialmente para uma mostra – o que não significa que necessariamente a instituição que realiza a exposição deva ficar com esses trabalhos. Quando o encontro de uma obra com um espaço é tão acertado, no entanto, pode acabar acontecendo aí uma doação permanente. Foi o que ocorreu com o Tombo: Centro Novo (2017), da artista gaúcha Rochelle Costi (1961). Para São Paulo não é uma cidade, a exposição que inaugurou o Sesc 24 de Maio e esteve em cartaz até janeiro de 2018, Rochelle inseriu nas gavetas de um grande e pesado arquivo um mecanismo que, ao girar, revela diferentes ângulos de cenas do entorno da unidade. Passada a exposição, a obra permanece na unidade, tendo sido incorporada ao Acervo Sesc de Arte Brasileira. Ela está à disposição do público no espaço da biblioteca. Ora. Onde mais ficaria um arquivo?
Passando a limpo 2018, não se poderia deixar de mencionar também o retorno, em junho, da cortina de Burle Marx (1909-1994) ao Teatro Sesc Anchieta, no Sesc Consolação. O fato remonta à inauguração dessa unidade histórica, em 1967, e à relação de amizade do artista plástico e paisagista com o arquiteto que projetou o edifício na Rua Dr. Vila Nova, Ícaro de Castro Mello (1913-1986). Ícaro fora presenteado, ainda na época da construção da unidade, com a pequena tela (de 93 x 181 cm) que Burle Marx utilizou para projetar a ilustração do pano de boca de cena. A obra permaneceu na família Castro Mello até alguns meses atrás, quando foi incorporada ao acervo da instituição e passou a ser exibida ao público na entrada do teatro, a poucos metros da cortina.
Foi também em 2018 que o Sesc Ipiranga, por sua vez, recebeu de volta o políptico (do latim para "várias dobras") de Amélia Toledo (1926-2017), um conjunto de cinco painéis de cores e tamanhos diferentes que retorna à parede de tijolos da entrada da unidade. A obra, concebida especialmente para esse espaço, esteve lá desde a inauguração, no início dos anos 90. Nas reformas de 2013, aproveitou-se a oportunidade para encaminhar os painéis a um ateliê de conservação e restauro. É verdade que o Sesc Araraquara também exibe uma Amélia Toledo (no universo da arte é comum se referir às obras de um artista simplesmente pelo nome desse artista). O políptico de Araraquara está na central de atendimento da unidade desde sua inauguração, no ano 2000. São também cinco painéis, mas as cores e os tamanhos dos suportes se estruturam de maneira diversa da obra reinstalada no Sesc Ipiranga – cada Amélia Toledo num diálogo bem particular com o espaço que ajuda a compor.
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Uma coleção de arte é mesmo um corpo vivo e dinâmico, de maneira alguma imune à passagem do tempo, às recomposições dos espaços e à própria evolução do fazer artístico e da reflexão sobre a arte e a sociedade. Em 2018, várias unidades do Sesc São Paulo passaram por diferentes níveis de reorganização das obras do Acervo Sesc de Arte Brasileira que acolhem – num processo que, certamente, não se encerra por aqui.
Obra de Marina Abramovic no hall do espaço cênico do Sesc Pompeia | Foto: Malu Mões
A ampliação da fotografia Lugares de Poder: A Caverna (2013/2015) de Marina Abramovic (1946), por exemplo, mudou de endereço, foi transferida, em dezembro, do hall do auditório do Sesc Pinheiros para o hall do espaço cênico do Sesc Pompeia, unidade que, em 2015, recebeu a artista sérvia na mostra Terra Comunal. O 3º andar do Sesc Pinheiros apresenta agora seis obras da goiana Shirley Paes Leme (1955) que passaram, esse ano, a fazer parte do acervo. São duas pinturas feitas a partir do congelamento de fumaça sobre tela; uma instalação elaborada a partir de filtros de ar-condicionado de carros da cidade de São Paulo; e três curiosas peças em que o contraste do picumã (o termo vem do tupi e remete a teias de aranha enegrecidas pela fuligem), colhido pela artista, sobre folhas de papel é que forma desenhos, espécies de rabiscos.
Ainda no Sesc Pinheiros, há poucas semanas, o foyer (ou antessala) do Teatro Paulo Autran, passou a receber os espectadores com uma porção de obras do capixaba Hilal Sami Hilal (1952), entre elas, a labiríntica Sherazade (2009), que esteve, ainda em 2018, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF), na mostra Tarefas Infinitas. A escultura de Hilal é composta por 15 livros unidos entre si, desafiando conceitos de finitude e infinitude, brincando com o sem-fim – um convite, quem sabe, a deixar-se levar pelas tramas de tantas histórias inacabadas.
Detalhe de Sherazade, obra de Hilal Sami Hilal, no Sesc Pinheiros | Foto: Vitor Penteado