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elas, atrizes; representação e política

A atriz Andréia Barros, como Lélia Abramo. (Foto: Lia Bernini)
A atriz Andréia Barros, como Lélia Abramo. (Foto: Lia Bernini)

por amilton de azevedo*

Perto de completar 30 anos de relevante trabalho desenvolvido em São José dos Campos, o Teatro da Cidade convida o diretor Antônio Januzelli – o Janô – para dirigir o primeiro solo do grupo. “Ela, Lélia Abramo, atriz” (cujo título, assim como o solo, está em processo) realizou ensaio aberto dentro da mostra Cidade em Cena. Selecionada pelo edital na categoria B, de obras abertas à provocação, contou com a residência artística da dramaturga Michele Ferreira no mês de novembro.

Dentro de um processo que já dura três anos, Andréia Barros atua sob a provocação de Janô – com quem divide a assinatura da dramaturgia. Trata-se de uma encenação centrada, sem dúvidas, na presença da intérprete. Com cenografia, figurinos e iluminação simples, o espaço cênico é povoado e ganha distintas cores no jogo de Barros, que transita por, no mínimo, três camadas.

Ela, Andréia Barros, narradora e atriz em processo – nesse sentido, a obra flerta com um dado performativo dentro de uma estrutura eminentemente épica – que se encontra com Lélia Abramo no início da década de 1990. A própria Lélia, como narradora da própria trajetória. E, em uma dupla clivagem interessante, Barros interpreta Lélia interpretando suas personagens mais marcantes.

A linguagem narrativa sustenta o caráter biográfico – ainda que não traga efetivamente a materialidade documental, há essa natureza – presente em “Ela, Lélia”. A construção da trajetória do espetáculo apresenta escolhas interessantes. Na primeira cena, Dona Romana – de “Eles não usam black-tie”, estreia profissional de Lélia sob a direção de José Renato Pécora e ao lado de um grande elenco. Começa-se, então, introduzindo a atriz tardia – cuja carreira iniciou-se aos 47 anos – para depois ampliar para a história de toda uma vida.

Lélia Abramo nasceu em 1911 e faleceu em 2004. Para além das atuações marcantes trazidas no trabalho do Teatro da Cidade – Pozzo, de “Esperando Godot”, completa a dupla de personagens utilizadas na narrativa – suas filiações políticas, seja nos círculos familiares, seja em sua atuação na militância sindical, são rememoradas em perspectiva aos acontecimentos de sua vida, do Brasil e do mundo ao longo do século vinte.

Trata-se de uma biografia de peso, que exige fôlego da intérprete e do público que acompanha. A escolha pela narratividade e a fluidez entre os registros vocais e expressões faciais de Barros sustenta os aproximados sessenta minutos da obra. Considerando o caráter de ensaio aberto da apresentação em questão, cabe ressaltar elementos que já se mostram latentes, mas que podem ser melhor desenvolvidos.

A utilização de cenas protagonizadas por personagens interpretadas por Lélia ao longo do monólogo serve como uma possibilidade de redimensionar, fazendo uso das ficções da representação, as leituras da encenação; além de conferir uma dinâmica maior ao andamento da obra. Outra questão potencial se localiza no corpo de Barros. Assim como as diferentes entonações constroem o trânsito entre as personagens/narradoras, há uma possibilidade de trabalhar mais verticalmente sobre a narratividade do corpo – assim como uma maior precisão formal neste corpo nos momentos de transição. Talvez as outras pessoas evocadas possam também reverberar nesta gestualidade e expressividade corporal, como no potente gesto que simboliza a despedida do pai de Lélia.

Quanto ao discurso da encenação, é um grande acerto a escolha por construir, rigorosamente, uma trajetória que permite ao público estabelecer suas próprias relações daquela narrativa com a contemporaneidade. Nos recortes apresentados, a voz de Barros se coloca a serviço da história de Lélia, mas sem se isentar de um posicionamento crítico, político e até mesmo estético. Considerando a vida sendo contada, não poderia ser diferente.
 

*amilton de azevedo é artista-pesquisador, crítico e professor. Escreve para a Folha de S. Paulo e para sua página, ruína acesa. Responsável pela disciplina "Estudos sobre o ensino do teatro" na graduação do Célia Helena Centro de Artes e Educação.