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O corpo e o tempo da música
*Por José Calixto
O pulso musical nada mais é que a mera alternância entre som e silêncio. A característica temporal da duração é a base de toda a música. É possível ter música sem melodia, sem harmonia, mas jamais sem pulsos, sem gerar ritmos, sem tempo. Mesmo que muito flutuantes, eles estão sempre lá.
A arte do ritmo e do pulso encontra seu terreno mais fértil na música escrita para percussão. Vibrando junto com os percussionistas do Duo Contexto & Convidados no Festival Sesc de Música de Câmara pudemos viajar para os mundos longínquos da música contemporânea.
Com entrada tardia no centro da sala de concertos, a música de percussão tornou-se um símbolo moderno da arte dos sons. Desta forma, este foi o concerto mais contemporâneo de todo o Festival. A peça mais antiga, e que encerrou o concerto, foi Ionisation de Edgard Varèse, escrita em 1931. Ela foi executada de maneira brilhante pelos convidados do Duo, com a maestria de realizar a peça sem regente. Esta obra permanece muito atual, lembrando a esfera militaresca de ontem e de hoje: tocam os alarmes. O público aplaudiu intensamente o concerto que ali se encerrava.
De início, o célebre Duo Contexto, formado por Ricardo Bologna e Eduardo Leandro nos conduziu aos tempos fluidos e ornamentados de Le livre des claviers de Manoury. Olhando a performance dos instrumentistas nessa peça, já podíamos sentir um pouco da atmosfera que viria dali em diante: o corpo dançante e expressivo de Ricardo e a magia de Eduardo Leandro. A segunda peça, Musique de Table de Thierry de Mey, nos apresentou esses elementos de maneira depurada: a dança das mãos, o ilusionismo visual, a expressividade dos ritmos reduzida aos variados timbres de uma mesa percutida pelas mãos. Esse ambiente fantástico foi elevado à peça de Peter Klatzow, executada com maestria pelo duo, que nos transportou para profundas ressonâncias, ecos e lugares desconhecidos. Na sequência a grandiosa obra Codex troano de Roberto Victório, artista provocador e inconformado, foi brilhantemente executada por todos os músicos presentes, realizada também sem regente único. O grupo fez toda a plateia pulsar junto, atingindo com choques, surpresas e texturas musicais, aos ouvintes que participavam daquela experiência. Na sequência, o duo voltou ao centro do palco, para homenagear a memória de Eduardo Guimarães Álvares, executando com emoção e perfeição técnica a obra deste compositor que é referência para toda uma geração da música brasileira.
O ritmo, o pulso e a percussão sempre estiveram no centro de experiências fortes como o transe religioso, a festa embriagante, as paradas militares e manifestações populares. A força com que o pulso atinge os músicos e os ouvintes é capaz de nos transportar a estados alterados de nossa percepção e consciência, propiciando propriamente novas corporalidades e modos variados de sentir e pensar. O corpo vive do ritmo, do coração, respiração, dos fluxos e sinapses. O tempo é ele mesmo, uma fluidez contínua de pulsos e ritmos. A música nasce do corpo que vibra e do tempo. No caso deste concerto em questão, toda essa característica fundamental da arte musical pode ser lembrada e experienciada. O público agradece muito!
*José Calixto é músico, compositor e educador. É mestre em Filosofia na FFLCH-USP e Doutorando em Música na ECA-USP.
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