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Nasce a pesquisa brasileira
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JOSÉ FERNANDO PEREZ Devo começar registrando que este país assistiu nos últimos 35 anos a um processo muito bem-sucedido de implantação de um sistema de pesquisa. Até a segunda metade da década de 60, o Brasil tinha alguns cientistas que eram verdadeiros heróis, lutando em seus laboratórios pela sobrevivência de seus grupos, sem massa crítica, com dificuldades para realizar seus projetos.
A partir de 1965, iniciou-se a pós-graduação. Esse processo, com todos os percalços e às vezes ineficiências, teve êxito. Poucos países no mundo conseguiram concretizar em tão curto espaço de tempo um sistema de pesquisa.
A história do Projeto Genoma é como uma fábula que nos mostra aonde chegamos, e as oportunidades e desafios que temos pela frente. Revela também que devemos ficar atentos e ousar mais em função da competência que o país já alcançou.
A implantação da pós-graduação deve-se à criação das agências federais de fomento, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e, no estado de São Paulo, a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Os senhores talvez desconheçam, mas quem é contribuinte precisa saber que 1% de toda a receita tributária do estado é investido em pesquisa científica e tecnológica por meio dessa fundação.
A Fapesp foi criada em 1962, no governo Carvalho Pinto. Os recursos inicialmente vinham de 0,5% da receita tributária, passando em 1989 para 1%, por iniciativa da Assembléia Legislativa. A fundação tem um grau de autonomia extraordinário, e seu órgão supremo é formado por um conselho de 12 membros. Todos eles são indicados pelo governador, com mandato de seis anos, com vencimento que expira de forma intercalada, de forma que a capacidade de determinado governo de influenciar na política institucional da fundação é limitada. Mas há uma presença fortíssima do estado, como deve ser, porque ela depende de verbas públicas. Essa atuação no entanto é diluída porque, se a política científica e tecnológica precisa de recursos, necessita também de estabilidade. E não pode ficar ao sabor das inevitáveis mudanças próprias do regime democrático, mas ter uma visão de longo prazo. E isso se conseguiu em São Paulo.
O primeiro milagre foi que o então governador Carvalho Pinto acreditou e investiu nesse modelo. Segundo milagre: essa cultura se implantou no estado de São Paulo. Os diversos governos que se seguiram cumpriram rigorosamente o dispositivo constitucional, os repasses acontecem mensalmente, com base na arrecadação do mês anterior, e há uma absoluta observância do princípio da autonomia, sendo os recursos de exclusiva administração da fundação. O repasse de 1% representa um valor anual de cerca de R$ 250 milhões.
É interessante observar que a lei que criou a Fapesp contém algumas pérolas que merecem registro. Não é só o respeito à autonomia, há também o fato de que a fundação não pode gastar mais do que 5% de seus investimentos em despesas de capital e de custeio. E devemos levar em conta que o artigo 3º da lei determina que a Fapesp forme um patrimônio rentável. O governador Carvalho Pinto acreditou tanto nesse conceito que fez uma dotação inicial à época equivalente a US$ 10 milhões. Isso, com a autonomia e com o fato de que não havia demanda qualificada para utilizar todos os recursos à disposição, permitiu a ela formar um patrimônio significativo. Hoje, para cada real que o estado repassa à fundação, há uma contrapartida de um real. Dinheiro advindo dos rendimentos de seu patrimônio. Ou seja, o investimento anual que a Fapesp faz no sistema de pesquisa do estado de São Paulo é de cerca de R$ 500 milhões. Se fizermos a aritmética corretamente, veremos que os recursos anuais repassados pelo governo são totalmente investidos em pesquisa, e as despesas de custeio são financiadas pelo rendimento do patrimônio.
Isso cria, é claro, uma situação muito especial no estado, comparada à de outras unidades da federação. Esse conceito de fundação foi de alguma forma replicado em outros 15 estados. Mas nenhum observa os dois preceitos básicos, a constância do repasse e a autonomia. São Paulo é o único que realmente faz um investimento desse porte e com essa regularidade. Por essa razão o estado responde por mais de 50% da produção científica do país, e permite ousadias maiores.
É importante registrar que São Paulo não é auto-suficiente no financiamento à pesquisa, pois depende pesadamente de recursos federais. O que o estado provê é uma contrapartida a esse investimento. Afinal de contas, somos parte da federação.
Embora a fundação receba muitos recursos, eles não correspondem à proporção da demanda qualificada que São Paulo apresenta. Diz-se que, pelo fato de termos a Fapesp, não precisamos de verbas da União. Isso é falso. O estado necessita desses recursos de forma decisiva. De qualquer maneira, eles criam oportunidades e ações muito especiais. A razão do projeto era propiciar um salto em nossa competência em biotecnologia, por um motivo óbvio: trata-se de uma área absolutamente estratégica. Cerca de 19% do PIB brasileiro pode estar relacionado à biotecnologia. É um campo do conhecimento em que o Brasil teve crescimento extraordinário nos últimos anos. Se verificarmos a produção científica mundial publicada em revistas internacionais há 15 anos em comparação com a de hoje, veremos que o Brasil saltou de 0,4% para 1,2%. Crescemos três vezes mais rápido do que a média internacional, e num período em que essa média ampliou-se de forma explosiva. O único país cujo crescimento se compara ao do Brasil e o supera um pouco é a Coréia.
Só há uma área em que o Brasil cresceu abaixo da média mundial: a da moderna biotecnologia associada à genética molecular. Não que tenhamos progredido pouco, o fato é que as potências líderes investiram pesadamente nesse campo, e a distância entre nós aumentou.
Na minha geração, a receita tradicional era enviar grupos de pessoas ao exterior para aprender. Mas isso leva muito tempo. Queríamos algo aqui e agora, já, para dar o salto. Outra estratégia possível seria instalar um instituto em que colocaríamos um grupo de eleitos para desenvolver a genética molecular brasileira. Depois de várias conversas, surgiu uma idéia que considero brilhante, dada pelo professor Fernando Heinegger, da USP: "Se fizéssemos um projeto genoma poderíamos atingir esses vários objetivos". Ou seja, o desafio era fazer ciência na fronteira do conhecimento, treinar laboratórios e trabalhar com problemas de relevância socioeconômica para o país.
A idéia inicialmente foi enunciada de maneira muito vaga. No dia 1º de maio de 1997, foi verbalizada com toda a informalidade que se possa imaginar. A partir disso, passamos à arquitetura de um projeto. Vejam bem, esse seria o maior programa científico do ponto de vista de investimento, cerca de US$ 13 milhões, sem precedentes na história da pesquisa brasileira. Trouxemos uma assessoria internacional, que considerou a proposta muito boa. Ficaram tão entusiasmados em participar do desenho do projeto que se tornaram verdadeiros colaboradores.
Foi então que surgiu uma direção para o projeto: estudar o código genético de algum organismo. O passo seguinte foi definir o objeto de estudo bactérias, vírus, plantas, gente, bicho, parasitas. Decidiu-se que deveria ser um organismo com código genético grande o suficiente para justificar a formação de uma rede, mas não grande demais, para não superar a competência ainda incipiente do sistema.
A idéia de fazer o genoma da Xylella fastidiosa apareceu logo nas primeiras reuniões. Trata-se de um organismo que produz uma doença na citricultura, uma atividade agrícola praticamente concentrada no estado de São Paulo. Conhecida como amarelinho, ela ataca 30% das plantas. Há perdas constantes de produção, e os citricultores convivem com a doença. O estudo da bactéria surgiu como uma opção ao atender às várias condições impostas. A citricultura paulista é responsável por US$ 1,7 bilhão de exportação de suco, envolve quase 400 mil empregos diretos e indiretos e tornou o Brasil o maior produtor de laranja do mundo. É interessante observar que houve uma participação proativa do Fundo Paulista de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), que se interessou por esse estudo. Num certo momento a Xylella foi quase excluída das opções, porque ela é fastidiosa. Não sou biólogo, sou físico, embora esteja convencido de que isso tudo é apenas um novo capítulo da física que se abre, mas descobri que o fastidioso não é um termo poético, é técnico. Significa que a cultura dela cresce muito devagar, o processo de multiplicação é lento, a tal ponto que se chegou a dizer que não haveria nenhum grupo no Brasil com competência para replicar essa bactéria em quantidade suficiente para fazer o projeto.
Foi nesse momento que entrou em cena o Fundecitrus, que mantinha contatos científicos com pesquisadores em Bordeaux, na França, liderados pelo professor Joseph Bové (pai daquele Bové que veio aqui incendiar plantações), um biólogo molecular que trabalha com plantas transgênicas e tinha experiência com a Xylella fastidiosa. Ele havia estabelecido a relação causal entre essa bactéria e a doença. Bové esteve no Brasil, a convite do Fundecitrus, não da Fapesp, e disse: "Eu sei fazer a cultura dela". E fez a oferta para um grupo de brasileiros ir a Bordeaux e em 15 dias se apropriar da metodologia, que é relativamente simples. Mais do que isso, deu um depoimento muito convincente, apaixonado, afirmando que o estudo da Xylella era uma hipótese cientificamente muito importante, porque seria o primeiro genoma de um patógeno vegetal, isto é, de um organismo que produz doença em plantas. Nenhum país do mundo tinha feito um programa desse tipo, e na época nem percebemos a importância que isso posteriormente adquiriria. Depois disso, a Xylella foi escolhida para o projeto, cujo principal objetivo era formar gente. Foi definido então que os pesquisadores que fossem participar (a maioria deles não tinha treinamento em seqüenciamento genético, embora fossem bons cientistas) seguissem esta regra: para entrar no projeto, o candidato precisaria ter experiência documentada de seqüenciamento, ou um projeto de pesquisa que posteriormente iria se beneficiar da incorporação dessa metodologia. Mais do que isso, teria de gerar certa quantidade de informação num intervalo determinado de tempo, com uma qualidade definida, caso contrário, o equipamento seria realocado para outro grupo. Eram condições draconianas, mas necessárias. É como construir uma auto-estrada. Cada um vai fazer um trecho, com qualidade determinada e em certo período de tempo. De outra forma, muda-se a empreiteira.
Era um trabalho muito específico, que envolvia um risco muito grande, muita visibilidade. O fracasso também seria visível. Fizemos o anúncio do programa no dia 13 de outubro de 1997, esperando receber cerca de 15 respostas, mas, para nossa surpresa, obtivemos cem. Como escolher os grupos, já que não poderíamos trabalhar com os cem? Em 16 de novembro, eles foram anunciados.
Foi um intervalo de tempo curtíssimo, sem precedentes em nenhum país do mundo: definir um projeto, montá-lo, escolher os grupos, comprar equipamento.
As atividades de seqüenciamento começaram em maio de 1998. A revista britânica "Nature" deu a notícia: "O Brasil vai seqüenciar o primeiro patógeno vegetal". Isso foi bom, evidentemente, mas criou uma responsabilidade muito grande, porque todo o mundo passou a ver o que faríamos. O fracasso era inaceitável, e tínhamos de cumprir o prazo estipulado.
Antes mesmo de começar o projeto, fizemos uma visita ao Instituto Nacional de Saúde e ao Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, onde tomamos conhecimento de alguns programas que estavam sendo desenvolvidos nessa área.
No cenário internacional, os Estados Unidos seqüenciavam suas plantas de valor econômico maior, o Instituto Nacional do Câncer fazia um estudo do câncer, o C-GAP, sobre genes expressos em tumores. Curiosamente, nessa visita já foi aventada a hipótese de, mais tarde, quando tivéssemos a competência, juntar-nos ao projeto norte-americano do câncer, se quiséssemos.
Em janeiro de 1999, formamos o grupo destinado a estudar as funções biológicas dos genes que estavam identificados. Em um genoma você tem de identificar os genes do organismo que têm suas funções biológicas, constroem as proteínas, pois precisamos saber o que cada uma dessas proteínas faz dentro daquele organismo. Por isso, estudamos as funções, o genoma funcional. Em maio de 1999, como tudo estava caminhando muito bem, decidimos lançar o programa do genoma da cana, idéia proposta pela Copersucar. Eram os agentes econômicos já procurando o sistema de pesquisa, identificando oportunidades.
Em setembro daquele ano, decidiu-se entrar no genoma do câncer, como um projeto nosso. No Instituto Ludwig, em São Paulo, o grupo coordenado pelo professor Andrew Simpson desenvolvera uma metodologia nova, que identificava os genes expressos em tumores, e era diferente da usada no projeto norte-americano. O Instituto Ludwig, uma rede internacional de laboratórios com filial em São Paulo, apresentou à Fapesp o desafio de administrar um investimento de US$ 10 milhões. Eram US$ 5 milhões a fundo perdido colocados no sistema de pesquisa do estado de São Paulo, como reconhecimento da competência instalada. Recursos casados com outros US$ 5 milhões da Fapesp para um projeto muito ousado, paralelo ao norte-americano. Não era uma competição, pois a informação gerada seria complementar à deles.
A meta inicial, que era concluir o genoma em maio de 2000, foi atingida em janeiro daquele ano. Em junho o trabalho foi publicado na revista "Nature", e teve grande repercussão internacional. Vejamos como era a arquitetura do projeto. Tínhamos um coordenador, o professor Simpson, que trabalha no Instituto Ludwig, especialista em genética de câncer, e que passou a dirigir um programa de genética num patógeno vegetal. Isso revela duas coisas: primeiro, a capacidade do projeto de articular laboratórios de todas as áreas, e, segundo, uma das características da biotecnologia moderna, que é a de unificar a biologia. Todos os seres vivos têm DNA, e esse é o fator unificante.
Tínhamos então um coordenador e dois laboratórios, um na USP e outro na Unicamp, com a responsabilidade de treinar os demais da rede. Se tudo desse errado, esses dois teriam de fazer o trabalho, esse era o trato. À frente dos laboratórios, dois cientistas de primeiríssima linha, os professores Fernando Heinegger na USP e Paulo Arruda na Unicamp.
Bioinformática é uma palavra que entrou no vernáculo por causa desse projeto. Quando lançamos a idéia, a assessoria internacional alertou: "Vocês terão um gargalo, a bioinformática". Por quê? Porque fazer um genoma é como registrar um texto, é uma sopa de letrinhas escrita com apenas quatro letras do alfabeto. No caso da Xylella seriam 3,7 milhões de letras, mas só de quatro tipos, algo como escrever um longo texto usando apenas quatro caracteres. Fazer o genoma é ler, interpretar esse texto. Pegam-se várias cópias, como uma sopa de DNA, e corta-se tudo bem picadinho: as páginas não estão numeradas e não se sabe quem leu qual trecho de que exemplar. Tudo isso precisa ser juntado depois e ordenado. Essa é a tarefa da bioinformática, que organiza a informação que vem dispersa dos vários laboratórios. É um trabalho sofisticadíssimo, e supúnhamos não ter nenhuma competência nessa área.
Descobrimos, porém, dois jovens na Unicamp, nossos dois Joões, Setúbal e Meidanis. Eles vinham pesquisando teoricamente o seqüenciamento genético, simulando dados e provando teoremas. Nós os convidamos para participar e eles fizeram um trabalho brilhante. Ainda recentemente, no programa norte-americano da agrobactéria Tumefacies, feito na Universidade de Washington e competindo com a Dupont, a bioinformática é a da nossa rede, por causa da competência. Setúbal e Meidanis não só gerenciaram os dados de forma eficiente, como criaram novas ferramentas para isso.
Investimos, portanto, na Xylella, no genoma funcional, no projeto do câncer, no genoma da cana-de-açúcar e agora estão sendo concluídos mais dois. A Xanthomonas campestris é uma bactéria que produz o cancro cítrico, doença que existe não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na China. Ou seja, temos uma competência instalada que permite fazer muitos projetos desse tipo em 65 laboratórios de pesquisa no estado de São Paulo. A visibilidade nacional e internacional não tem precedentes. Se disséssemos na época que chegaríamos a esse ponto, seríamos chamados de megalomaníacos.
Falemos um pouco sobre o projeto do genoma humano, o câncer. A parte inicial terminou e agora o Brasil é o segundo maior país do mundo em depósito de informações sobre genes humanos, graças a esse projeto, atrás apenas dos Estados Unidos. Essas informações estão documentadas, em uma base de dados internacional.
E, de forma ousada, estamos reunindo nossos excelentes clínicos e cirurgiões de câncer, para usar a genômica de maneira mais sistemática na atuação no consultório. E estamos estudando correlações entre tipos de tumores, reação a tratamento, prognóstico, evolução e características genéticas. Isso está sendo montado agora como seqüência do projeto.
Quanto às patentes, foi submetido um registro de um conjunto de genes da Xylella. É muito interessante a biotecnologia. Estudamos um organismo que produz doença numa planta e descobrimos que há nove genes que produzem a goma xantana. Trata-se de um produto muito importante, como espessante para a indústria de alimentos, goma-arábica, e que serve também para lubrificação, especialmente na perfuração de poços de petróleo. Esses genes foram patenteados porque produzem, aparentemente de forma muito eficiente, essa goma.
Quanto à repercussão internacional, além da "Nature", que noticiou o projeto do câncer, a revista "Science" publicou matéria sob o título de "Cinderella Story". Cinderela é a jovem que não foi convidada para o baile, mas se casa com o príncipe. O "European Molecular Biology Network" cita "The boys from Brazil. Brazil, new mecca for genetics", frase forte de um jornal técnico. O "Los Angeles Times" fez comentário longo. A Melomaxylella fastidiosa, uma prima da Xylella, de outra linhagem, produz a doença de Pierce nas vinhas da Califórnia. Era como o amarelinho aqui, coexistiam pacificamente com ela. Só que agora apareceu um vetor novo. O antigo, que era o inseto que a transmitia, era fraquinho, só atingia a periferia do vinhedo. Mas surgiu um bicho maior, o glassy-winged sharpshooter, que perfura a planta e a mata. Várias empresas da região do vale central da Califórnia fecharam as portas por causa da doença. Então a American Vineyard Foundation entrou em contato conosco e pediu para seqüenciar o código genético dessa nova linhagem, e o recurso veio através do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Um laboratório americano, o JGI, protestou formalmente: "Por que o Brasil? Temos condições de fazer isso". A reclamação saiu na imprensa, no "San Francisco Chronicle". Um repórter desse jornal me telefonou: "Professor, uma empresa daqui diz que faz em uma semana ou um mês e de graça". O "de graça" já destrói o argumento de no Brasil ser mais barato. Respondi: "De graça não é negócio meu. Eles cobram o que querem, mas em uma semana ou um mês eles não conseguem, isso eu posso garantir. Podem fazer o rascunho, nós também faríamos isso em uma semana, mas o genoma completo não conseguem". Para resolver a questão o Departamento de Agricultura deu ao JGI duas outras linhagens para pesquisa, uma que ataca a amêndoa e outra que prejudica o oleandro, aquela planta ornamental com flores brancas, para eles fazerem, de graça, em uma semana. Três meses depois, estávamos tocando nosso projeto, houve uma teleconferência com o pessoal do JGI: "Terminamos nossa parte aqui com a amêndoa". E nós: "Parabéns". "Terminamos o rascunho, na verdade. Queremos saber se vocês podem fazer a bioinformática." Na verdade, eles estavam nos oferecendo a parte que é o desafio maior. Seqüenciar é cada vez mais uma commodity. O importante é gerar a informação, transformá-la em conhecimento. E o Brasil foi convocado para fazer isso.
A revista "Newsweek" escreveu: "O Brasil era o irmão pobre da pesquisa genômica, até que deu dois golpes de classe internacional: o projeto do câncer e o da Xylella". A "Economist" trouxe um artigo com um título que acho fantástico: "Samba, Futebol e Genômica". Repentinamente, a lista de coisas pelas quais o Brasil é famoso aumentou. O jornal "Le Figaro" também traz um texto saboroso: "Brésil parmis les grands", e termina dizendo que os Estados Unidos encomendaram aos brasileiros o seqüenciamento de uma linhagem da Xylella que ataca seus vinhedos, e que poderia um dia muito bem ameaçar a França e a Europa.
O interessante é que a "Nature" reconheceu não só a importância científica do trabalho, mas também um fato de política científica, ao afirmar que existe um conceito errado de que somente países industrialmente avançados têm a capacidade e recursos para fazer ciência na fronteira do conhecimento. Nós provamos que essa é uma das áreas mais competitivas. Além da repercussão internacional o mais importante é a nacional. O Brasil acordou para a ciência que se faz no país.
Quanto ao projeto da cana, fizemos um acordo com uma empresa belga, porque não temos uma similar ainda no Brasil. Aliás, é isso o que queremos agora, estimular a formação de um parque de empresas que trabalhem em biotecnologia, para fechar com chave de ouro esse processo. Em nenhum lugar do mundo a universidade desenvolve a biotecnologia do país, quem faz isso são as empresas, mas para que elas existam é preciso ter gente. E agora temos gente e uma vantagem competitiva que é nossa biodiversidade, nossa agricultura, nossa pecuária.
A empresa belga produz cereais transgênicos, a maioria gramíneas. Como a cana é uma gramínea, uma informação sobre um gene que regule seu ciclo celular pode ser essencial para controlar o ciclo de outro cereal e fazer um transgênico. Na Europa todos estão preocupados com os transgênicos, mas as empresas envolvidas nesse processo estão trabalhando com a hipótese de que essa histeria vai passar e, quando chegar o momento, quem tiver as patentes é que vai fazer a biotecnologia. Pelo acordo, ela vai usar apenas mil genes de nosso projeto para colocar no que eles chamam de um moinho de fenótipos, onde testam mil plantas novas por ano.
Na área de biotecnologia, temos sido contatados por muitas empresas de capital de risco, do Brasil e do exterior, que estão procurando descobrir novas oportunidades. Curiosamente, o primeiro banco que apareceu foi o Flemings, com cujo representante conversamos longamente. Na semana passada ele foi à Fapesp novamente, mas com um novo cartão de visitas. Tinha acabado de criar a própria empresa, que vai trabalhar com propriedade intelectual na área de biotecnologia.
Vamos lançar em breve um projeto para estudar o genoma do eucalipto. Um consórcio de empresas, formado pela Ripasa, Suzano, Duratex e Votorantim, que querem entender essa árvore, está interessado. E há um grupo que quer estudar o boi. O que está acontecendo é que se deflagrou o processo: setores industriais que percebem necessidades específicas de informação para gerar produtos melhores, ou grupos econômicos interessados em oportunidades de investimento. Isso nos leva a concluir que estamos criando um novo momento, uma nova fase.
Não precisamos mais mandar pesquisadores para fora do país. Não se trata de xenofobia. Pelo contrário, nossos bolsistas de doutorado têm, além da bolsa, recursos que lhes permitem passar de seis meses a um ano no exterior, o que é importante. Mas o bom curso de pós-graduação é aquele que tem o bom aluno. Se quisermos uma boa pós-graduação, precisamos ter bons alunos aqui. E a pesquisa necessita dos seus pós-doutores aqui.
Um caso paradigmático é o de uma moça que recebeu bolsa de pós-doutoramento nossa e foi estudar na Universidade da Califórnia, Irvine. Nossa bolsa tem uma cláusula que diz que, terminado o prazo, o estudante tem de retornar imediatamente ao país. Ela mandou uma carta, como aliás todos fazem: "Meu supervisor gostou tanto do meu trabalho, achou-me tão competente que me ofereceu a possibilidade de trabalhar num projeto maravilhoso, financiado pelo Instituto Nacional de Saúde. É uma oportunidade científica fantástica de continuar aqui". Há dez anos qualquer um me consideraria louco se eu dissesse que ela não poderia ficar, teria de voltar. Pois digo que essa é a única política consistente atualmente. Perguntei a ela: "Que projeto é esse que a senhora quer fazer?" "Nós estamos estudando os mosquitos transgênicos." "Que mosquitos são esses que a senhora vai estudar?" "Ah, apenas o da malária e da dengue." Nossa resposta: "Se esse projeto é bom, queremos financiá-lo aqui". Temos o programa chamado Jovens Pesquisadores em Ciências Emergentes, que permite ajudar a fixar talentos que são gerados por essa pós-graduação competente que temos aqui. A única forma de evitar a perda de cérebros é oferecer-lhes a oportunidade de desenvolver projetos à altura da sua ambição e competência. Pois bem, a moça mandou a conta, bem salgada, e estamos financiando seu projeto, aqui em São Paulo. São recursos para equipamento, material de consumo, verba para ela visitar quantas vezes for necessário seu supervisor nos Estados Unidos e para trazer quem ela quiser para trabalhar aqui. Essa é a nova filosofia. A relação com o exterior está num novo patamar e temos de apostar nisso.
Para terminar vou contar um caso que é emblemático. Recebemos uma delegação da Universidade de Oxford, cujo reitor foi visitar a USP, e fui convidado para a reunião. Oxford estava interessada em fortalecer a cooperação com a USP, queria receber mais alunos de pós-graduação. O próprio reitor dizia: "Sabemos que o curso é muito caro, mas oferecemos um desconto". Fui obrigado a interferir, já que estava lá não na condição de professor mas na de diretor científico da Fapesp. "É claro que deve interessar à USP estreitar seus vínculos com a Oxford, é claro que deve interessar à Fapesp financiar relações entre a USP e a Oxford, mas temos de repensar essa situação. Se queremos fazer algo útil, tem de ser em forma de projetos, não pode mais ser essa relação de quem envia e de quem recebe." Falei um pouco do momento que vivemos e tive a ousadia de afirmar: "Talvez fosse interessante que os senhores conversassem com o professor Andrew Simpson, que é coordenador de nosso Projeto Genoma. Ele por acaso é súdito de Sua Majestade e tem opiniões muito singulares sobre onde fica atualmente um dos melhores lugares do mundo para fazer pesquisa".
É claro que aqui ainda não é um dos melhores lugares do mundo para fazer pesquisa, mas não há outra forma de fazer pesquisa científica e tecnológica se não for agindo como se assim fosse.
Debate SAMUEL PFROMM NETTO Roger Bastide escreveu um livro magnífico a respeito de nosso país e intitulou-o Brasil, Terra de Contrastes. Recorro ao título por um problema que sua exposição suscitou. Refiro-me ao contraste que existe entre a excelência do que se produz em ciência no país e a indigência do conhecimento científico da quase totalidade da população, além da pobreza do ensino de ciências que é proporcionado às crianças nas escolas brasileiras. É muito penosa a impressão que causa esse baixo nível de ensino e de aprendizagem. Pode-se falar até de um analfabetismo científico e tecnológico generalizado no Brasil, ao mesmo tempo que surpreendentemente, como acontece no caso do Projeto Genoma, o país é reconhecido pela comunidade internacional pelo altíssimo nível que caracteriza a produção científica em seus centros de excelência.
À mesa do conhecimento, tem-se a impressão de que pouquíssimos se banqueteiam e a imensa maioria dos brasileiros morre de inanição. Sabe-se que em outros países, particularmente nos Estados Unidos, as últimas décadas assistiram a um grande esforço na direção do que os norte-americanos batizaram de Science for all Americans, liderado pelas mais respeitáveis entidades científicas e educacionais daquele país, com investimentos muito generosos em programas e iniciativas de alfabetização científica e tecnológica para toda a população, com ênfase nas crianças e nos professores do ensino elementar.
Em recente tese de doutorado na PUC de Campinas, que tive a honra de orientar, uma brilhante estudante, Irani Marchiori, mostrou com base em pesquisa quantitativa empírica que entre nós não são os reis, mas é o povo que está nu em relação a essa alfabetização científica e tecnológica.
Nos anos 70, Buckminster Fuller, que até hoje não foi traduzido para a língua portuguesa (é um dos gênios do século 20), dizia com muita razão que a tripulação da espaçonave Terra não é composta de uns poucos, mas de todos os seus habitantes. Somos todos responsáveis, dizia ele, e não apenas alguns tripulantes superdotados. Fuller advertia igualmente (e, é bom lembrar, no início da década de 70) que o preparo de qualquer cidadão para ser um bom tripulante demanda não só programas direcionados para o saber e o fazer científicos e tecnológicos, mas necessariamente um híbrido de alfabetização científica e tecnológica universal com a generalização em escala mundial de programas centrados na área ética, na formação do caráter, na responsabilidade moral e nesse sacrossanto respeito à vida a que se referia Albert Schweitzer. Pobre Fuller se vivesse em nossos dias e presenciasse a dura realidade. Ciência e tecnologia estão sobrando, mas o senso ético em relação aos irmãos que existem no mundo inteiro é zero.
Educação científica e moral para todos os brasileiros é algo que não parece interessar muito à inteligência do país. Como o senhor vê esse contraste tão aberrante? Há alguma perspectiva concreta de mobilização e de ação para uma ciência com consciência compartilhada por todos os brasileiros?
PEREZ Essa angústia de educador é minha também. Mas não é exclusiva do
país. Durante uma visita que fiz a um laboratório na Universidade de Washington, em
Seattle, o professor Leroy Hood, inventor do seqüenciador automático de DNA, dizia o
seguinte: "A educação básica neste país (Estados Unidos), como é bem conhecido,
é muito ruim, e em ciência ela é péssima. Se o sistema de pesquisa não se envolver
nesse desafio, não chegaremos a parte alguma". Essa frase me tocou muito porque aqui
também, talvez mais do que lá, não chegaremos a parte alguma se não houver esse
envolvimento.
Mais do que despertar essa consciência, a Fapesp vem tomando algumas providências, que,
embora pequenas, têm o objetivo de criar uma cultura de co-responsabilidade do sistema de
pesquisa em relação aos destinos da educação científica. Várias iniciativas
concretas já foram adotadas, das quais vou citar três. Uma delas é o Programa Fapesp de
Ensino Público, em que se financia uma parceria. Não se trata de uma escola usada como
laboratório de observação, são parcerias reais entre pesquisadores da universidade e
escolas da rede pública, fazendo atividades de pesquisa, gerando conhecimento, mas que
possam redundar em benefícios mensuráveis da atividade pedagógica. Da mesma forma, há
um programa, feito com a Capes, o Pró-Ciência, que já propiciou o treinamento de um
número grande de professores de ciências da rede pública. E, ainda mais
emblematicamente, um programa que a Fapesp acabou de criar e pelo qual está financiando
dez centros de pesquisa, inovação e difusão, que têm uma missão complexa: as
pesquisas têm de ser multidisciplinares, é preciso haver transferência de conhecimento
para o setor público ou privado e desenvolvimento de atividades de difusão que envolvam
iniciativas inovadoras na área educacional.
O mundo, porém, foi feito em sete dias. Somente agora começamos a ter massa crítica em
nosso sistema de pesquisa. Considero essencial o exercício da cidadania, que cada vez
mais passa por uma educação científica mínima. A população é chamada a se
posicionar sobre os transgênicos, e é um posicionamento que tem de ser equilibrado, bem
informado. Não pode ser baseado no clima que é criado por interesses políticos ou até
econômicos. Então essa preocupação é correta, e as agências de fomento e o sistema
de pesquisa precisam assumir essa responsabilidade e definir formas de atuação eficazes.
OLIVEIROS S. FERREIRA Professor Perez, o senhor continua tendo recursos estatais para financiar as pesquisas que já estão em andamento? Isso é importante porque imagino que o senhor encontra o problema de fuga de cérebros na área estatal, nas universidades, pessoas atraídas pela iniciativa privada. Outra questão refere-se às patentes, se os senhores têm (imagino que tenham) o cuidado de registrá-las, inclusive como modo de aumentar o patrimônio. E, por último, a lei das concorrências não criou problemas para a aquisição de material?
PEREZ A situação de São Paulo de fato é singular. No que tange a recursos
para financiamento dos custos dos projetos equipamentos, material de consumo,
serviços técnicos especializados de terceiros, que não envolvam o pagamento de recursos
humanos , eu diria o seguinte, com todas as letras: não há demanda qualificada
reprimida no estado de São Paulo. Há, sim, demanda qualificada no número de bolsas,
devido a certa anomalia. Creio que precisamos de um novo pacto federativo no que diz
respeito a financiamento à pesquisa, pois houve um decréscimo no investimento de bolsas
federais para São Paulo. Aumentou no resto do país e diminuiu em São Paulo. Com isso a
Fapesp não está conseguindo absorver essa taxa de crescimento que vem se observando nos
últimos anos. Assim, de fato há um déficit de bolsas, mas isso imaginamos que seja
transitório. Sou otimista: se esses fundos criados pelo governo federal para
financiamento à pesquisa de fato se materializarem na proporção que se espera, vamos
ter talvez um novo salto na próxima década.
Quanto às patentes, nosso sistema acadêmico nunca prestou atenção a essa questão.
Não se sabia quando nem como fazer. O registro representa um custo, um item de despesa.
Precisamos saber como ganhar dinheiro com patentes, e isso não é simples. Assim, poucas
foram registradas, pouquíssimas no exterior, e mesmo assim não se sabe o que fazer com
elas. Mas é uma questão que agora será resolvida. A própria Fapesp tomou a iniciativa
de implantar a Internet em São Paulo, era uma necessidade, uma carência, e criamos um
escritório de patentes exatamente para acompanhar os projetos que são financiados pela
fundação, para detectar os que têm potencial de propriedade intelectual a ser
defendida. E não é só isso; além de assegurar a propriedade, buscamos encontrar formas
de licenciar para gerar recursos. Somos, porém, ainda incipientes nessa atividade.
Mencionei que a Coréia é o único país que teve desenvolvimento comparável ao nosso,
na parte científica. Coréia e Brasil são ambos responsáveis por 1,2% da produção
científica internacional. Só que a Coréia deposita 1% das patentes nos Estados Unidos,
e o número do Brasil é 1/30 do da Coréia. Por que, se temos a mesma qualidade
científica? A primeira coisa a entender é que a maioria desses depósitos de patentes,
seja pela Coréia seja pelos Estados Unidos, não são feitos pelo sistema acadêmico: 97%
deles são realizados por empresas que têm seu sistema de pesquisa. Um pouco menos de 3%
das patentes que têm origem em universidades são muito importantes, mas a falta de
desenvolvimento tecnológico no país não é culpa da universidade. Ela tem de gerar
gente competente; quem faz tecnologia é empresa, no mundo inteiro. Quem faz o produto é
a empresa, a universidade gera conhecimento. É claro que precisa fazer isso também junto
com empresas.
Temos um programa para financiar projetos em parceria entre universidades e empresas. Mas
eles são custeados ou não com base na qualidade do conhecimento que é gerado. Também
se leva em conta a importância para a empresa, pois ela vai pagar parte dos custos. Essa
relação é delicada, não pode ser voltada, digamos, para sugar a universidade, tem de
ser enriquecedora. Existe um projeto da Unicamp, em parceria com a Serrana, para
desenvolvimento de um pigmento à base de fosfato, processo muito sofisticado do ponto de
vista tecnológico. Feito o projeto e registrada a patente, a Serrana paga à Unicamp royalties
pela não-utilização da patente; talvez crie uma planta industrial para produzir tintas
à base de fosfato. Mas o que é interessante é o depoimento do grupo da Unicamp:
"Aprendemos boa química no projeto". Ou seja, é um círculo virtuoso que é
possível também aqui.
Outro projeto é um software para correção de sintaxe, que envolve pessoal de
informática, de lingüística e foi feito em parceria entre a Itautec-Philco e a
Universidade de São Carlos. A prova da qualidade do produto é que existe um ícone
chamado Revisor e lá aparece o crédito à Fapesp, que financiou o projeto. Outro
indicador é que a Microsoft licenciou o produto para o Word em português. E o grupo
continua fazendo projetos ainda mais sofisticados nessa linha. Então essa relação
possível que existe no exterior começa a ficar mais intensa aqui também.
Aliás, dentro dessa linha do que é possível, lançamos um programa de apoio à pesquisa
em pequenas empresas. Nós o anunciamos praticamente junto com o Projeto Genoma, e havia
muito ceticismo porque ele financia projetos que têm de produzir inovação tecnológica.
A pesquisa deve ser desenvolvida dentro de uma pequena empresa, não na universidade, e
redundar em um produto com valor comercial. Analisado sob essa ótica, não há garantia.
Investimento em pesquisa é de risco. Para elaborar esse programa copiamos o conceito que
nos Estados Unidos se chama SBIR (Small Business Innovative Research). Por lei aprovada
pelo Congresso norte-americano, todas as agências federais de fomento com orçamento
superior a US$ 100 milhões (se a Fapesp funcionasse lá, estaria coberta por essa lei)
são obrigadas a financiar programas de inovação tecnológica em pequenas empresas,
projetos de pesquisa. É a idéia de usar conhecimento como instrumento de competitividade
e de eficiência na inovação tecnológica. Os Estados Unidos mobilizam US$ 2 bilhões
por ano nessa modalidade. Quando dissemos que faríamos um programa desse tipo no Brasil,
no meu conselho sete vozes declararam: "Isso não dá certo aqui, não haverá
projetos com essas características". Anunciamos o programa durante três meses, e
internamente se apostava que receberíamos meia dúzia de projetos. Foram 80. Desses, 60
mereciam análise. Foram enviados a dois assessores, daqueles bravos, mal-humorados, do
ambiente acadêmico, e 32 receberam parecer francamente favorável de ambos, ou pelo menos
um francamente favorável e o outro com objeções e reservas que não seriam excludentes.
Conclusão: estamos financiando atualmente 180 pequenas empresas.
O financiamento é feito em duas etapas. A primeira é um estudo de viabilidade, com
duração de seis meses. A pequena empresa pode receber até R$ 75 mil para fazer esse
estudo. Se for bem-sucedida, candidata-se para a segunda fase e apresenta um plano de
negócios, de como pretende ganhar dinheiro com a inovação. Nesse estágio, a empresa
pode receber mais R$ 300 mil, e ainda damos bolsas. Aqui temos um conceito diferente, pois
estamos enfrentando o grande desafio de política científica e tecnológica do país, que
é fazer migrar o centro de gravidade do sistema de pesquisa, que está concentrado no
ambiente acadêmico, ampliar as fronteiras para fora dos muros da academia. Por isso temos
poucas patentes.
Essa cultura tem de ser criada e esse tipo de programa ataca o mal pela raiz, porque os
projetos serão feitos não na universidade, mas dentro da empresa. Poderia até sofrer
objeções ideológicas, já que é dinheiro público colocado no setor privado. A
resposta é: assim é feito nos Estados Unidos, reclamem lá, que é o centro do
liberalismo. Aqui temos de agir assim também, e estamos atrasados.
IRANY NOVAH MORAES Gostei de uma frase sua, de que a pós-graduação não depende do professor, depende muito mais do aluno. É verdade. O pior é quando ocorre o encontro do professor que não quer ensinar com aluno que não quer aprender. Mas, se o aluno tem potencial, ele empurra o professor ou este deixa a orientação. Gostaria de saber sobre direitos autorais. Com tanta gente fazendo pesquisa e descobrindo coisas interessantes, o nome do autor aparece ou ele perde a individualidade?
PEREZ A autoria dos trabalhos é preservada, os autores publicam seus artigos e têm os direitos respeitados. A questão mais séria é a da propriedade intelectual, um desafio a enfrentar.
ROBERTO PAULO RICHTER Existe um órgão chamado Ministério Público. É preciso tomar cuidado ao passar recursos para a iniciativa privada, mesmo que se trate de uma fundação sem fins lucrativos, porque pode haver problemas, já que o que está em jogo é dinheiro público. Mas queria falar sobre o amarelinho, porque me lembro de um debate político ocorrido em 1998, na televisão, em que o então governador Mário Covas afirmou que ia resolver o problema dessa doença e questionava o outro candidato sobre o assunto. Pergunto: passados quatro anos, como é que vai a saúde da dona Xylella fastidiosa?
PEREZ Obviamente, o uso político do assunto tem pouco a ver com a atividade de
pesquisa, apesar de estarmos muito orgulhosos do apoio que o governador Covas sempre deu a
essas iniciativas. Ele se distinguiu nesse aspecto. Embora não tenha liberado mais
dinheiro para a Fapesp, deu uma dimensão política e social de valorização da atividade
de pesquisa. É importante que governantes façam isso.
A Xylella era um organismo absolutamente desconhecido do ponto de vista
científico, nem mesmo sua cultura se conseguia fazer. Normalmente, nos projetos de genoma
conhece-se muita coisa do organismo e então se faz a pesquisa. Estamos realizando um
estudo da Xylella que é como vai ser feito no futuro com a maioria dos organismos,
partindo do genoma para trás. Primeiro, em função da informação genética,
descobriu-se que essa bactéria é muito ávida de ferro. Então, o caldo de cultura tem
uma solução muito simples: adiciona-se certa quantidade de ferro, e isso tem um efeito
mágico. Ela não é mais fastidiosa, quer dizer, fastidiosa é a taxa de
crescimento dela dentro da planta. Essa informação é muito relevante porque, para
começar a manipular geneticamente essa bactéria, precisamos de formas muito eficientes
de cultura. Essa é a primeira informação genômica: já se consegue fazer
transformações genéticas na bactéria. Há uma série de hipóteses muito importantes
sobre quais são os genes responsáveis pela patogenicidade. Num projeto desses, quer-se
saber qual é o gene que, quando é tirado da bactéria, faz com que ela deixe de ser
patogênica. São os genes críticos, esse é o alvo. Então já obtivemos alguns
resultados muito promissores.
É curioso que a natureza, apesar de sua riqueza, não apresenta tantos genes. Esse mesmo
gene aparece numa bactéria que infecta a pata das abelhas. Ao retirá-lo dessa bactéria,
ela deixa de ser patogênica. Nós testamos hipóteses desse tipo. Mais do que isso,
estamos tentando entender a relação entre a bactéria e o hospedeiro. Aliás, o próprio
setor de citricultura está muito interessado em investigar isso na laranja.
O Brasil está numa posição de liderança no estudo de genomas em relação a patógenos
vegetais, mas não podemos dizer que temos uma solução em vista para o problema do
amarelinho. O uso político disso não é recomendável.
ROBERTO PENTEADO Pudemos perceber que a genética molecular cresceu pouco no
Brasil. Sua importância internacional decorre sobretudo da localização dos genes
causadores de doenças hereditárias. A solução está no DNA recombinante para
prevenção e erradicação, pois as enfermidades genéticas que afetam a humanidade são
cerca de 6 mil.
Charles Darwin, quando apresentou seu trabalho Origem das Espécies em Cambridge,
foi questionado: "O senhor é descendente do macaco por parte de pai ou de
mãe?" Os caminhos científicos atuais são promissores, sobretudo pelos resultados.
PEREZ Na realidade, o impacto da genômica sobre a sociedade ainda está para
ser avaliado. Existe um livro que gosto de citar, escrito pelo físico Freeman Dyson, que
compila uma série de palestras proferidas na biblioteca pública de Nova York. Um livro
feito para um público não-especializado. O nome é O Sol, o Genoma e a Internet,
os instrumentos da revolução deste novo milênio. Dyson é um dos físicos teóricos
mais importantes do último século e sempre faz estudos e projeções do futuro. Ele
traça utopias de como se poderão obter fontes de energia alternativa usando a
biodiversidade e a biomassa, sem ter monocultura. Pode-se assim imaginar soluções muito
criativas em absoluto respeito à biodiversidade.
É um mundo novo que se abre, sobre o qual ainda é impossível estabelecer os limites dos
benefícios, principalmente em termos de prevenção. No caso do câncer, por exemplo,
atualmente o processo de formação de tumores é basicamente entendido, no nível
genético. São genes que desempenham certas funções na célula e elas se reproduzem de
forma ilimitada. O câncer hoje é curável. Se houver detecção precoce, consegue-se
tratar. Então a capacidade de desenvolver novos testes, como por exemplo para o câncer
de próstata, testes não-invasivos, é importante. Isso certamente tem tudo a ver com a
genômica moderna, com o genoma humano. Recentemente um grupo da Universidade de São
Paulo patenteou o uso de um conjunto de genes para detecção mais eficiente de câncer de
próstata.
JOSEF BARAT Parece que o segredo de toda essa montagem foi a formação de um sistema de pesquisa que articulou vários laboratórios. Esses laboratórios estão restritos ao estado de São Paulo ou existe uma abrangência nacional? Dentro da sua tese de que hoje é mais importante ficar e fazer o trabalho aqui, imagino que essa articulação em rede de Internet está facilitando muito o projeto.
PEREZ A Internet foi um instrumento essencial para o projeto, que não existiria
sem ela. Estamos falando na primeira rede de 34 laboratórios, em Jabuticabal, Mogi das
Cruzes, Campinas, e o laboratório de bioinformática da Unicamp que recebe informações.
Trata-se de um projeto que só é possível neste momento. Na realidade usamos uma
deficiência nossa, que é a falta de massa crítica, e a transformamos num elemento
competitivo. Trabalhar em rede é uma coisa muito respeitada. Essa capacidade de operar de
forma cooperativa é uma nova dimensão da pesquisa atual, há até uma certa ética nova
nesse cooperar em vez de competir. Nosso projeto seria impossível nos Estados Unidos.
Aqui foi possível por causa de nossas deficiências, pois temos de juntar esforços.
Nisso a Internet desempenha um papel essencial, cultural e técnico.
A genômica também saiu de São Paulo. O governo federal criou uma rede, seguindo o
modelo paulista. Essa rede está fazendo projetos; o nosso da cana já tinha envolvimento
com outros estados, principalmente Pernambuco e Alagoas, que têm interesse nesse produto.
Mas não podemos financiar fora de São Paulo, por uma restrição legal. Aliás, voltando
ao comentário de Richter, estamos cientes de que existe o Tribunal de Contas, o
Ministério Público, e fazemos tudo em estrita legalidade.
BARAT A Fapesp pode trabalhar por meio de convênios, inclusive com outros estados?
PEREZ Sim. No caso desse projeto da cana fizemos convênios com fundações de Pernambuco e de Alagoas. Eles financiaram os pesquisadores de lá, mas tiveram acesso à nossa base de dados via Internet. Eles faziam mais essa atividade de garimpagem de dados. O projeto da cana constitui a maior base de dados de genomas de plantas do mundo. A quantidade de informação é enorme. O grande desafio é transformar essa informação em conhecimento útil. Volto à analogia: o genoma é um texto, em que há trechos que são palavras, os genes, digamos, 3,7 milhões de letras e cerca de 2,7 mil palavras, que têm seus significados biológicos. Depois de descobrir as palavras, precisamos saber qual o significado delas, qual seu papel dentro da célula. Pega-se então gene por gene, palavra por palavra, compara-se com o significado que existe nos diversos bancos de dados do mundo e procura-se a importância de cada uma dentro da planta. Isso é garimpagem de dados, um trabalho sofisticado de bioinformática que propiciou também a participação de pesquisadores em outros estados.
MÁRIO AMATO A tecnologia está fazendo alguma coisa no campo da longevidade, curando doenças, trazendo benefício ao ser humano, principalmente no Brasil? Pergunto também se não seria o caso de estudar alguma coisa para minorar o sofrimento dessa geração de jovens que matam, que são violentos. Porque prender e usar violência contra violência não adianta. Não é isso uma doença grave que precisaria ser cuidada cientificamente? Não haveria uma forma para recuperar essas pessoas além da educação, que leva muito tempo?
PEREZ Ao cientista não resta outra opção epistemológica que não seja reducionista. Não que eu seja reducionista, mas o ato de fazer ciência é eminentemente reducionista, tudo tem de ser compreensível em termos científicos. Então não posso chegar ao limite dessa questão comportamental como o senhor está propondo. Mas li recentemente um artigo de James Watson, o descobridor da estrutura da molécula do DNA, no qual afirma que agora as pesquisas sobre o genoma humano devem se concentrar nas doenças que até há bem pouco tempo eram consideradas males da alma. Estou falando de esquizofrenia. Existe uma hipótese séria de que a esquizofrenia, pelo menos a propensão, seja definida por algum conjunto de genes específicos que teriam de ser determinados. Assim como se cuida de um doente compensando em seu organismo o que falta, como no caso da diabetes, uma proteína que existe a mais ou a menos poderia ser contrabalançada e regulada até por terapias gênicas. Então acredito que algumas doenças da alma possam ser tratadas. Aliás, sou fiel ao Antigo Testamento, o homem foi criado à imagem e semelhança do Senhor, e isso implica algumas missões, em particular a busca permanente do conhecimento.